Esperança e Critérios de Vida

Comissão Diocesana Justiça e Paz de Coimbra

1. Vivemos dias marcados pela dúvida e pela incerteza, que afectam os indivíduos e as instituições e perturbam sobremaneira as relações sociais e económicas e as decisões políticas. Em face deste espectro, que amarga a existência e tolhe a razão, a CDJP (Comissão Diocesana Justiça e Paz) de Coimbra julga oportuna uma palavra de esperança, fundamentada na fé em Jesus de Nazaré, que centrou a sua mensagem no convertei os vossos critérios de vida (Mc 1,15), na capacidade de superar as crises, que marcaram a nossa História colectiva, e na força transformadora dos valores éticos por que pugnamos e que tantos reclamam como essenciais à vida em sociedade.

Reconhecemos que a presente situação mundial é complexa e grave, marcada por uma crise, mais estrutural do que conjuntural, e por uma globalização económica e financeira desregulada, que inverte a ordem dos valores, ao colocar os interesses económicos e a especulação acima da dignidade e dos direitos das pessoas, com efeitos perversos sobre sociedades, indivíduos e decisores políticos.

As sociedades em geral – e a ocidental em particular – vivem demasiado centradas em interesses imediatos e egoístas, com a consequente perda do sentido do bem comum e de referenciais éticos estruturantes. Parece prevalecer o comodismo de quem desiste de construir o futuro, conformando-se, como agora nos referiu Bento XVI, com uma dinâmica social que “absolutiza o presente, isolando-o do património cultural do passado e sem a intenção de delinear um futuro”. É uma cultura do efémero, permeável à publicidade manipuladora, à corrupção sob múltiplas formas, ao endividamento irresponsável.

Portugal, em concreto, é um país que soma a esta cultura um conjunto de deficiências preocupantes, entre as quais se destacam:

– situação periférica e escassos recursos naturais nem sempre aproveitados da melhor forma;

– fraco desenvolvimento económico;

– população envelhecida e acentuada queda da natalidade;

– débil vontade na procura de qualidade e excelência individual, institucional e colectiva

– com demorada aplicação da Justiça,

– com níveis preocupantes de iliteracia e insucesso na Escola,

– com falta de equidade no acesso aos cuidados de Saúde, apesar dos padrões de qualidade reconhecidos internacionalmente;

– assimetria económica (a maior da União Europeia) em que quase dois milhões de pobres contrastam com titulares de remunerações ou prémios exorbitantes, sem relação com resultados das empresas, reformas escandalosas, com curtíssimas carreiras contributivas, e outras mordomias e benefícios, fruto, em grande parte dos casos, de clientelismo político-partidário;

– problemas graves, persistentes e estruturais, ao nível do emprego e das condições de trabalho, que remetem um número preocupante de concidadãos para a exclusão.

 

Na génese desta situação encontram-se diversas razões, tais como:

– a inexistência de um projecto, ambicioso e inovador, para o desenvolvimento do país, que seja credível e mobilizador dos cidadãos na construção de novos paradigmas;

– a falta de lideranças credíveis empenhadas na prossecução dos princípios do Estado de Direito Social, sem submissão a conveniências eleitoralistas ou promoções pessoais;

– a existência de uma débil sociedade civil, demasiado acomodada nos seus “direitos” e reticente às mudanças;

– a incapacidade para alcançar consensos político-sociais suficientemente alargados, que possibilitem o empreendimento de reformas há muito diagnosticadas como essenciais para o desenvolvimento sustentado do país;

– o aproveitamento ineficiente dos fundos europeus e das comparticipações estatais e das oportunidades históricas que os mesmos constituíram;

– a conivência das elites financeiras que, displicentemente e escondendo a realidade, aliciaram os cidadãos com propostas de empréstimos ao consumo e nunca de poupanças,

– o desenvolvimento de uma economia paralela alimentada, por exemplo, por pequenos e grandes negócios que não pagam impostos ou pela conivência de quem não pede factura dos bens e serviços que compra,

– sintomas de uma corrupção sistémica que se estende desde os patamares mais elevados da administração até ao cidadão comum.

Acresce que a actual situação orçamental e o nível de endividamento ao estrangeiro são terreno fértil para crescente especulação financeira, o que coloca Portugal – a par com outros países – em graves dificuldades para alcançar maior credibilidade no concerto das nações e para conseguir empréstimos internacionais, a fim de fazer face ao pagamento da dívida e das despesas não cobertas pelas receitas fiscais. Basta lembrar que no Orçamento de Estado para 2010 as despesas dos juros eram já superiores a cinco mil milhões de euros.

 

 

2. A situação acima referida condicionou as medidas políticas, necessárias e urgentes, que são do conhecimento público. Reconhecemos que, num contexto de interdependência e de globalização, controlado pela especulação financeira, essas decisões se tornam cada vez mais difíceis e complexas, parecendo-nos indispensável que sejam acompanhadas de uma procura activa de consensos.

De facto, o esforço de equilíbrio das finanças públicas deve manter-se associado à correcção das grandes desigualdades na repartição da riqueza e do rendimento. Assim, é fundamental que o Estado cumpra o seu papel na regulação social, em particular no combate à pobreza e na protecção dos desempregados. Além disso, na reorganização das empresas e das instituições, do sector público e do sector privado, importa promover maior rendibilidade dos bens e serviços e melhorar o grau de eficiência e eficácia humana, económica e energética.

Por exigência do bem comum, compete ainda aos que mais ganham, podem e sabem estar à altura da solidariedade e das responsabilidades que podem e devem assumir.

Portanto, exige-se que, em todas as medidas, o direito do pobre seja sempre o primeiro a ser salvaguardado, evitando a deterioração da já difícil situação em que se encontram os mais fragilizados.

 

 

3. A CDJP deseja, neste momento de desalento e de dúvidas, trazer uma palavra de esperança, pois acredita que os portugueses, tal como têm feito ao longo da sua História, saberão superar as dificuldades e assumir os sacrifícios, fazendo valer as suas energias e potencialidades.

Em nome da esperança, somos chamados hoje a um novo esforço que impõe mudanças radicais, a nível pessoal e colectivo. O futuro está também nas nossas mãos, e isso exige a generalização de um ambiente social de comportamentos éticos, que deve assentar:

– numa forte consciência de que todos temos alguma responsabilidade na actual situação, pois, “é por demais fácil alijar sobre os outros a responsabilidade das injustiças se se não dá conta ao mesmo tempo de como se tem parte nelas e de como a conversão pessoal é algo necessário, primeiro que tudo o mais” (OA 48);

– em novos estilos de vida, que alterem hábitos consolidados de consumismo, de falta de cidadania, de degradação da Natureza, de modo a garantir um desenvolvimento sustentável e a manutenção da Terra habitável pelas gerações futuras;

– “numa justa liberdade perante os bens materiais” (FC 37), nomeadamente perante o dinheiro, um instrumento para a nossa qualidade de vida e não um deus que nos escraviza e aliena;

– na disponibilidade para acolher o outro como companheiro na construção da sociedade, sem o hostilizar ou recear como um concorrente, enriquecendo-nos mutuamente com as diversidades individuais e grupais;

– numa confiança responsável na solidariedade, cimento estruturante da coesão social, inerente a uma cidadania comprometida e interventiva;

– em formas novas de organizar a sociedade, fundadas no serviço ao bem comum, a  começar pelas instituições, nacionais e internacionais, reguladoras dos mercados financeiros;

– na multiplicação de iniciativas inovadoras de quem acredita na nossa capacidade para encontrar soluções para grande parte das dificuldades que nos atingem;

– uma atenção séria para que os principais responsáveis da crise em que vivemos não sejam os primeiros beneficiários da mesma;

– na procura de um “desenvolvimento económico, social e político, autenticamente humano”, baseado no “princípio da gratuitidade como expressão de fraternidade” (CV 34).

Em nome da mesma esperança, decorrendo o Ano Europeu da Luta contra a Pobreza e a Exclusão Social e vivendo o único tempo da História em que temos recursos mais do que suficientes, é imperativo combater estereótipos e preconceitos colectivos sobre a pobreza e cuidar de todos os habitantes da Terra “sem privilegiar nem excluir ninguém” (CA 31), por exigência

– da promoção da dignidade inviolável de cada pessoa,

– do destino universal dos bens, que “Deus criou para uso de todos” (GS 69) e

– da indispensável coesão social, pacificadora e geradora de uma justa equidade.

Sabemos que uma das principais causas da pobreza é o desemprego. Por isso, urge tomar medidas adequadas para que o emprego se torne, como é de facto, o factor mais decisivo na inclusão. Efectivamente, como diz Bento XVI, “a exclusão do trabalho por muito tempo ou então uma prolongada dependência da assistência pública ou privada corroem a liberdade e a criatividade da pessoa e as suas relações familiares e sociais, causando enormes sofrimentos a nível psicológico e espiritual”. E continua, recordando “a todos, sobretudo aos governantes que estão empenhados a dar um perfil renovado aos sistemas económicos e sociais do mundo, que o primeiro capital a preservar e valorizar é o homem, a pessoa, na sua integridade: com efeito, o homem é o protagonista, o centro e o fim de toda a vida económico-social” (CV 25).

Neste contexto, é de condenar tanto quem contrata a recibo verde, com salários indignos, ou ilegalmente, como quem recusa propostas de emprego e continua a receber apoios sociais, bem como quem permanece “de baixa” sem estar doente.

 

 

4. A Comissão está convicta de que a crise, tendo sempre uma gravosa carga negativa, é ou pode ser uma oportunidade estimuladora de um mundo diferente, até porque na sociedade portuguesa há muitas pessoas e organizações que dão um testemunho de vida nesse sentido:

– cuidam fraternalmente dos outros, sobretudo dos mais frágeis, contribuindo activamente para a construção de uma sociedade mais justa e solidária,

– partilham gratuitamente saberes e competências técnicas e profissionais em apoio de pessoas e situações mais vulneráveis,

– acreditam na nossa capacidade de inovar e empenham-se em construir alternativas, por exemplo, reestruturando empresas ou ocupando novos nichos do mercado;

 – assumem o compromisso de ser agentes de uma História comum e com o seu testemunho de vida estimulam colegas e amigos,

– persistem mesmo perante fracassos ou falta de resultados imediatos, muitas vezes  servindo-se das dificuldades para descobrir caminhos novos.

O trabalho que temos pela frente começa no coração de cada um e concretiza-se nos vários espaços de influência e poder de que todos dispomos. Um trabalho que exige diálogo, projectos em comum, colaboração em rede. Se foi a “rede” que gerou esta crise é em “rede” que vamos vencê-la, tendo presente a sentença evangélica de que não é possível “colocar vinho novo em odres velhos”.

As comunidades eclesiais são especialmente chamadas

– a testemunhar os valores de “um reino de verdade e de vida, de santidade e de graça, de justiça, de amor e de paz” (GS 39) e a convicção de que “a «cidade do homem» não se move apenas por relações feitas de direitos e de deveres, mas antes e sobretudo por relações de gratuidade, misericórdia e comunhão” (CV 6),

– a ser voz das vítimas de injustiças silenciosas e silenciadas (cf. JM 20),

– a estimular espaços de debate e de consciencialização da gravidade da situação e da necessidade de uma conversão de mentalidades e atitudes.

Saibamos, pois, ser exigentes na ética, connosco e com os outros, e ser solidários com aqueles que necessitam. Sejamos os construtores do futuro, norteados pelo sentido de justiça e de paz que o Verbo de Deus inscreveu em cada um de nós.

“Soou a hora da acção. Estão em jogo a sobrevivência de tantas crianças inocentes, o acesso a uma condição humana de tantas famílias infelizes, a paz do mundo e o futuro da civilização. Que todos os homens e todos os povos assumam as suas responsabilidades” (PP 80).

 

Coimbra, Julho de 2010

Abel da Conceição dos Santos Pinto

Alberto Lopes Gil

Carlos Alberto das Neves Joaquim

Carlos José Rodrigues de Paiva

João Luís Pereira Soeiro de Campos

José António Henriques dos Santos Cabral

José Dias da Silva

Maria Teresa dos Reis Pedroso de Lima Oliveira

 

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