Esperança – Dúvida, certeza, verdade

António Salvado Morgado, Diocese da Guarda

Foram abertas as portas do Jubileu da Esperança e, com o espírito centrado na bula papal da sua proclamação publicada no passado mês de Maio, desde há meses fomos ouvindo e repetindo as palavras do apóstolo Paulo [Rm 5,5] «A Esperança não engana». É com elas que o Papa Francisco inicia aquela bula e, como é habitual em documentos similares, são elas que, em latim, dão o nome ao documento papal: «Spes non confundit».

Desde agora a Esperança é nome de Jubileu, essa palavra que, significando peregrinação, penitência e perdão, lembra também júbilo a significar gritos de alegria, de festa, de paz, de reconciliação e liberdade.

Li e reli várias vezes a bula papal e fui parando a cada parágrafo a confrontá-los com a realidade vivida, em Portugal, na Europa, em cada continente, no mundo. Tanto nos parágrafos mais teóricos, como nos aspectos práticos de desafios e apelos; tanto na programação do ano jubilar com a calendarização dos grandes manifestações, como nos pequenos momentos dos encontros pessoais propícios a um sorriso, a um gesto de amizade, um olhar fraterno, escuta sincera ou serviços gratuitos; tanto nos desafios a transformar os sinais dos tempos em sinais de esperança onde o mal e a violência parecem ofuscar o muito bem que se faz no mundo, como nos apelos feitos aos governos e às nações; tanto na pretensa instituição de um «Fundo Global» para acabar com a fome no mundo, como no pedido de formas de amnistia para reclusos e no convite ao estabelecimento do perdão das dívidas que, mais do que magnanimidade é uma questão de justiça porque existe uma verdadeira “dívida ecologia” particularmente entre o Norte e o Sul da superfície da terra. [16]

E nestes «apelos em favor da Esperança» Francisco envia uma mensagem muito especial para os cristãos constituídos em Igreja. Evocando o primeiro grande Concílio ecuménico realizado em Niceia e completando-se neste ano mil e setecentos anos da sua celebração, o Papa não deixa de acentuar que «o Ano Jubilar poderá ser uma importante oportunidade para tornar concreto este modo sinodal, que a comunidade cristã sente como expressão cada vez mais necessária para melhor corresponder à urgência da evangelização» [17] de que todos os batizados se devem sentir corresponsáveis de acordo com o próprio carisma e ministério.

E acrescenta o Papa que, se «O Concílio de Niceia teve a missão de preservar a unidade, então seriamente ameaçada pela negação da plena divindade de Jesus Cristo e da sua igualdade com o Pai.», tendo acabado os padres conciliares por se reconhecerem no «Símbolo da Fé» empregando a expressão «Nós cremos», este concílio «constitui também um convite a todas as Igrejas e Comunidades eclesiais para avançarem rumo à unidade visível», acabando o Papa por lembrar que Niceia também pode ser «um apelo a todos os cristãos do Oriente e do Ocidente para darem, resolutamente, um passo rumo à unidade em torno duma data comum para a Páscoa.» [17]

Não sei se estou a interpretar bem, mas parece que o Papa Francisco, sabendo que há ainda quem considere a sinodalidade uma noção confusa e perigosa para a universalidade da comunidade dos crentes, não só deseja que o Ano Jubilar possa ser vivido também como tempo de assumpção por todos da sinodalidade da Igreja, dando vida ao Documento Final do Sínodo, como espera que a Igreja ganhe neste Ano Jubilar uma unidade maior de fé. «Rumo à unidade visível», escreve o Papa. Ou seja, com Esperança, pretende-se que, vivenciando a sinodalidade em forma jubilar, não só evite qualquer divisão na Igreja que, aqui e ali, parece, por vezes, assomar, mas se aprofunde e crie maior unidade na fé dos crentes, mesmo, ou sobretudo, contando com a diversidade de situações e pluralidade de contextos, de culturas e tradições que fazem a experiência vivida das comunidades que proporciona pluralidade de caminhos. O Documento Final da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, num muito interessante parágrafo, usa a bela expressão em título «A unidade como harmonia» [34-42] para expressar a ideia de que a unidade não é uniformidade, mas a integração das diferenças e diversidades manifestas no exercício real da sinodalidade que ultrapasse um certo eurocentrismo que muitos parecem ter dificuldade em compreender e, particularmente, em abandonar.

Daí a bula abrir com a frase paulina «A Esperança não engana».

Aceita-se sem qualquer dúvida, e a bula papal não deixa de o lembrar logo de início, que «Todos esperam» e que «No coração de cada pessoa, encerra-se a esperança como desejo e expectativa do bem», mas, perante a complexidade do presente e a imprevisibilidade do futuro, o ser humano oscila entre sentimentos contrapostos, da «confiança ao medo, da serenidade ao medo, da certeza à dúvida.» [1], se é que não se deixa cair num cepticismo e pessimismo que alimenta a ansiedade de que tanto se escreve e lhe rouba toda a possibilidade de felicidade. Por isso, não será despicienda a pergunta: mas será mesmo verdade que «A Esperança não engana»? Não haverá razões para a dúvida perante a complexidade de um mundo que parece ter perdido muitas razões para ter esperança e onde tudo parece incerto? Embora de modo discreto e sem formular estas perguntas num modo tão explícito, é por aí que começa a bula da promulgação do jubileu que Francisco quer que seja ocasião para reavivar a esperança, que seja, de verdade, um «Jubileu da Esperança».

É verdade que vamos ouvindo e dizendo que «a esperança é a última a morrer», mas também sabemos, de experiência pessoal e alheia, que há esperanças que já nos deixaram desencantados, frustrados mesmo. Tomamos, então, consciência de que havíamos colocado a esperança em objectos que não a mereciam. Daí que se imponha a pergunta: Qual o fundamento para a certeza da verdade daquele enunciado paulista? A resposta é dada no início e no final da bula.

Tal como Paulo aos Romanos, o Papa Francisco pretende trazer «uma palavra de esperança» ao mundo conturbado de hoje e fazer do Jubileu uma ocasião de esperança que se funda na fé em Jesus Cristo Morto e Ressuscitado e que, alimentada pela caridade, não cede a dificuldades, mesmo quando ela parece desmoronar-se ou parece afugentada pela pressa que gera intolerância, nervosismo e até violência gratuita. Por isso Paulo pôde assim dirigir-se aos Romanos com estas palavras: «Gloriamo-nos também das tribulações, sabendo que a tribulação produz a paciência, a paciência a firmeza e a firmeza a esperança.» [4]

Francisco, como Paulo, acentua bem este entrelaçamento entre a esperança e a paciência num número de pouco mais de uma página da bula jubilar em que a palavra «paciência» aparece dez vezes. Não teremos dúvida de que o Papa tem em mente a sociedade contemporânea em que tudo parece ser medido pela pressa, pelo imediatismo do aqui e agora. Mas não deixaremos de pensar que Francisco olha também e particularmente para a Igreja em que o caminho sinodal percorrido parece desapontar porque a meta que alguns haviam traçado terá ficado muito aquém do que haviam sonhado quando o processo foi lançado há mais de três anos.

Numa pressa de encontrar soluções rápidas para corresponder aos diagnósticos, também muitas vezes apressados, teremos a tentação de muito confiar nas próprias forças e esquecermos que a paciência é também fruto do Espírito Santo, cujos caminhos não são os caminhos sonhados pelos homens. Num Ano Jubilar, apoiado na paciência de Deus para com os humanos, o peregrino da Esperança que não engana é convidado a fazer a redescoberta da paciência humilde no caminhar conjunto da sinodalidade da Igreja. Foram escancaradas as portas jubilares para a certeza da verdade da Esperança pela qual fomos salvos.

Lisboa, 9 de Janeiro de 2025

António Salvado Morgado

morgado.salvado@gmail.com

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