«Esperança»: Autobiografia do Papa aponta resistências dentro da Igreja e defende inclusão de divorciados e homossexuais

Francisco assume dificuldades nas reformas da Cúria Romana, particularmente da gestão económica

Foto: Lusa/EPA

Cidade do Vaticano, 14 jan 2025 (Ecclesia) – A primeira autobiografia do Papa Francisco, que chegou hoje às bancas, assume resistências ao pontificado, dentro da Igreja, e defende posições sobre divorciados e homossexuais

“Na Igreja, são todos convidados, mesmo as pessoas divorciadas, mesmo as pessoas homossexuais, mesmo as pessoas transexuais”, escreve Francisco na obra intitulada ‘Spera’ (Esperança) na qual Jorge Mario Bergoglio recorda a sua vida desde a infância em Buenos Aires ao atual pontificado.

“Se o Senhor diz todos, quem sou eu para excluir alguém?”, acrescenta.

O papa recorda a primeira vez que um grupo de transexuais foi ao Vaticano e “saíram a chorar, comovidas”.

“São filhas de Deus! Podem receber o batismo nas mesmas condições dos outros fiéis e nas mesmas condições dos outros, podem ser aceites na função de padrinho ou madrinha, bem como ser testemunhas de um casamento. Nenhuma lei do direito canónico o proíbe”, sustenta.

Num capítulo intitulado ‘Todos fora e todos dentro’, o Papa reconhece que “existem sempre resistências, na maioria das vezes ligadas a um escasso conhecimento ou a alguma forma de hipocrisia”.

“Penso na exortação apostólica ‘Amoris laetitia’ — que escancarou as portas para os novos desafios pastorais no campo da família — e naquela nota acerca da possibilidade de aceder aos sacramentos por parte dos divorciados, que fez com que alguns rasgassem as vestes. Os pecados sexuais são aqueles que a alguns causam mais rebuliço. Mas não são de facto os mais graves”, assinala.

A obra aborda a polémica com a declaração ‘Fiducia supplicans’, do Dicastério para a Doutrina da Fé sobre as bênçãos aos irregulares, que assinou em dezembro de 2023.

“Abençoam-se as pessoas, não as relações”, precisa o Papa.

Francisco lamenta que mais de 60 os países no mundo criminalizem homossexuais e transexuais, “uma dezena até com a pena de morte, que por vezes é efetivamente aplicada”.

“A homossexualidade não é um crime, é um facto humano e a Igreja e os cristãos não podem, por isso, permanecer indolentes diante desta injustiça criminosa”, escreve.

O Papa alerta, depois, para a anulação das diferenças, criticando a “teoria do género”, e considera “inaceitável qualquer prática que torne a vida humana — que desde a conceção é um dom e um direito inalienável — um objeto de contrato ou de mercantilismo, tal como acontece com a chamada maternidade de substituição”.

 

Ao longo do capítulo, Francisco insiste na ideia de que “todos são chamados” e critica os que “gostariam de fazer da casa do Senhor um clube com seleção à entrada”.

“O Evangelho dirige-se a todos e não condena as pessoas, as classes, as condições, as categorias, mas antes as idolatrias, tal como a idolatria da riqueza que torna as pessoas injustas, insensíveis ao grito de quem sofre. Até o Papa é de todos. Dos pobres pecadores em primeiro lugar, a começar por mim”, realça.

Francisco diz que a missão dos ministros da Igreja é acompanhar e “não excluir”, referindo que em mais de 50 anos de sacerdócio apenas uma vez lhe aconteceu “não dar a absolvição”, porque a pessoa saiu antes do confessionário.

“A soberba é o mais inquietante dos vícios, uma autoexaltação que envenena o sentimento de fraternidade e revela a patética e absurda pretensão de tornar-se Deus”, alerta.

O Papa conta ainda o episódio de um jovem japonês que batizou na sacristia, depois de o acompanhar no discernimento e espiritual, ou quando foi batizar, como cardeal, “os sete filhos de uma senhora sozinha, uma pobre viúva que era empregada doméstica”.

“A nossa fé não se detém diante das feridas e dos erros do passado, mas vai para lá dos preconceitos e pecados”, indica.

O livro analisa o “fenómeno do tradicionalismo” e as novas regras para a celebração com missal pré-conciliar, em latim, que “deve ser expressamente autorizada pelo Dicastério para o Culto” e em casos particulares.

“Não é saudável que a liturgia se torne ideologia”, justifica o Papa.

Francisco diz que está em causa a “ostentação de clericalismo, que na verdade não é mais do que a versão eclesiástica do individualismo”.

“A liturgia não pode ser um rito, em si mesma, separada da pastoral. Nem o exercício de um espiritualismo abstrato, envolto num nebuloso sentido do mistério. A liturgia é encontro, e é um recomeço em direção aos outros”, sustenta.

O Papa entende que o Concílio Vaticano II, concluído em 1965, “ainda não foi inteiramente compreendido, vivido e aplicado”.

A Igreja não é uma corte, não é lugar para acordos, favoritismos, manobras, não é a última corte europeia de uma monarquia absoluta. Com o Vaticano II, a Igreja é símbolo e instrumento da unidade de todo o género humano”.

 

Olhando para os quase 12 anos de pontificado, Francisco diz que “as decisões mais difíceis, mais dolorosas, foram tomadas após consultas e reflexões, procurando unanimidade e numa via sinodal”.

“A reforma da Cúria Romana foi a mais difícil e a que registou durante mais tempo as maiores resistências à mudança, por exemplo, na gestão económica”, revela.

“Fui chamado a uma batalha, sei que devo travá-la, mas não é, de modo algum, uma luta pessoal e muito menos solitária”, acrescenta.

O Papa recorda o seu predecessor, Bento XVI, como “um pai e um irmão”,

“Tivemos sempre uma relação autêntica e profunda e, para lá de qualquer lenda construída por quem se aplicou a dizer o contrário, ajudou-me, aconselhou-me, apoiou-me e defendeu-me até ao fim”, afirma.

Francisco lamenta a “instrumentalização” do momento da morte do Papa emérito, a 31 de dezembro de 2022, e nos dias do funeral, no início de 2023.

“Foi uma coisa que me fez sofrer”, admite.

‘Spera’, editado pela Mondadori, é publicado em mais de cem países, incluindo Portugal (Nascente), e foi escrito com Carlo Musso, ex-diretor editorial de não-ficção da Piemme e da Sperling & Kupfer.

Ao longo de mais de 25 capítulos e 300 páginas, Francisco reflete sobre temas como os conflitos na Ucrânia e no Médio Oriente, as migrações, a crise ambiental, a política social, a condição da mulher, a sexualidade, o desenvolvimento tecnológico, o futuro da Igreja e o diálogo entre religiões.

A obra conta com algumas fotos privadas e inéditas, provenientes do arquivo pessoal do pontífice.

O cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio, então com 76 anos, entrou para o conclave de 2013, a 12 de março, e foi eleito no dia seguinte como sucessor de Bento XVI, assumindo o inédito nome de Francisco.

OC

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