Especial: Vaticano repudia «Doutrina da Descoberta» e apela ao respeito de todos os povos indígenas

Nota conjunta dos Dicastérios para a Cultura e a Educação e para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral aborda apropriação histórica de territórios, por parte das potências europeias

Foto: Lusa/EPA

Cidade do Vaticano, 30 mar 2023 (Ecclesia) – O Vaticano publicou hoje uma nota em que “repudia” as políticas e princípios históricos conhecidos como “doutrina da descoberta”, que serviram como fundamento para expulsar povos indígenas dos seus territórios.

“A Igreja Católica repudia os conceitos que não reconhecem os direitos humanos inerentes aos povos indígenas, incluindo a doutrina que ficou conhecida, legal e politicamente, como a ‘doutrina da descoberta’”, indica uma nota conjunta dos Dicastérios para a Cultura e a Educação (presidido pelo cardeal português D. José Tolentino Mendonça) e para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral.

A questão liga-se a documentos papais, do séc. XV, utilizados para justificar a apropriação de territórios indígenas, por parte das potências europeias; o conceito chegou a ser aplicado nos processos entre os novos Estados da federação americana e os povos nativos.

A nota do Vaticano, divulgada esta quinta-feira, recorda que o conceito jurídico de “descoberta” foi debatido pelas potências coloniais a partir do século XVI e “encontrou particular expressão na jurisprudência dos tribunais de vários países do século XIX”, segundo a qual a descoberta de terras pelos colonos conferia um “direito exclusivo de extinguir, por meio de compra ou conquista, o título ou a posse destas terras pelas populações indígenas”.

Entre as bases para esta “doutrina” são referidos documentos papais, como as bulas ‘Dum Diversas’ (1452, de Nicolau V, que, entre outras, concede a Portugal o domínio sobre os territórios “subtraídos aos muçulmanos e aos infiéis”), ‘Romanus Pontifex’ (Nicolau V, 1455) e ‘Inter Caetera’ (Papa Alexandre VI, 1493).

A ‘doutrina da descoberta’ não faz parte do ensinamento da Igreja Católica. A pesquisa histórica demonstra claramente que os documentos papais em questão, escritos num período histórico específico e ligados a questões políticas, nunca foram considerados expressões da fé católica”.

A nota conjunta assume que as referidas bulas papais “não refletiam adequadamente a igual dignidade e os direitos dos povos indígenas”.

“A Igreja está consciente também do facto que o conteúdo destes documentos foi manipulado com fins políticos pelas potências coloniais em competição para justificar atos imorais contra as populações indígenas, às vezes realizados sem oposição das autoridades eclesiásticas”, indica o documento.

No decorrer da história, acrescenta o texto, os Papas “condenaram atos de violência, opressão, injustiça social e escravidão, incluindo os atos cometidos contra as populações indígenas”.

O Vaticano sublinha que esta posição já estava presente na bula ‘Sublimis Deus’, de Paulo III, de 1537: “Definimos e declaramos (…) que os chamados Índios e todos os outros povos que forem em seguida descobertos pelos cristãos em caso algum devem ser privados da sua liberdade ou da posse dos seus bens, mesmo que não sejam de fé cristã; e que podem e devem, livre e legitimamente, gozar da sua liberdade e da posse dos seus bens; nem devem ser de forma alguma escravizados; caso contrário, o ato será nulo e sem qualquer efeito”.

Foto: Lusa/EPA

O tema marcou a viagem do Papa e os seus vários encontros com líderes de povos indígenas no Canadá, entre 24 e 30 de julho de 2022, onde passou pelas cidades de Edmonton, Quebeque e Iqaluit – que abriga o maior número de Inuítes, junto ao Ártico.

No início de uma celebração, dois manifestantes seguraram uma faixa pedindo o fim da “Doutrina da Descoberta”.

“É justo reconhecer estes erros, consciencializar-se dos efeitos terríveis das políticas de assimilação e do sofrimento vivido pelas populações indígenas, e pedir perdão”, assinala agora o Vaticano.

Segundo a nota conjunta, a Igreja “adquiriu uma maior consciência” dos sofrimentos destes povos, “devido à expropriação das suas terras, que consideram um dom sagrado de Deus e dos seus antepassados, e às políticas de assimilação forçada promovidas pelas autoridades governamentais da época, que visavam eliminar as suas culturas indígenas”.

A Santa Sé convida os católicos a “promover a fraternidade universal” e a “abandonar a mentalidade colonizadora”.

“Muitos cristãos cometeram atos criminosos contra as populações indígenas, pelos quais pediram perdão em várias ocasiões os últimos Papas”, refere a nota, com nove pontos.

A Igreja, indica o Vaticano, “compromete-se a acompanhar os povos indígenas e a promover esforços destinados a favorecer a reconciliação e a cura”.

O texto conclui-se com uma referência aos princípios contidos na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.

“A implementação destes princípios melhoraria as condições de vida e ajudaria a proteger os direitos dos povos indígenas, além de facilitar o seu desenvolvimento no respeito pela sua identidade, língua e cultura”, sustentam os Dicastérios para a Cultura e a Educação e para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral.

OC

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