Evocações dos «magos» assinaladas com músicas de porta em porta, de norte a sul de Portugal
Lisboa, 05 jan 2023 (Ecclesia) – “O Cantar os Reis” é uma tradição portuguesa que muitos não conhecem, não sabem quando surgiu e por que razão acontece, mas tem como objetivo comemorar o nascimento de Jesus e junta, longo do mês de janeiro, grupos que vão de porta em porta para louvar Jesus, Maria e José.
Segundo a tradição cristã, o Dia dos Reis é aquele em que Jesus Cristo, recém-nascido, recebera a visita de «uns magos», três reis, que ocorrera no dia 6 de janeiro.
Em algumas localidades do país, o “Cantar os Reis” mobiliza grupos de pessoas que fazem animação em espaços públicos, como acontece em Ovar, cujos registos do início da tradição remontam aos finais do século XIX, por volta dos anos de 1890 e 1893.
Segundo o vice-presidente da Câmara Municipal de Ovar, Domingos Silva, este é um costume que teve raízes nas “janeiras” e que foi evoluindo ao longo do tempo, de forma “muito própria”, adquirindo influência das tunas académicas.
Embora o Dia de Reis se celebre a 6 de janeiro, Ovar tem a particularidade de “Cantar os Reis” entre o dia 1 e o dia 7 de janeiro ou entre o dia 2 e 7 de janeiro, tendo em conta os grupos.
As troupes adultas e infantis percorrem as casas particulares, cafés, instituições, na freguesia de Ovar e, nos últimos anos, nas que a rodeiam.
O autarca explica que a tradição “tem características muito próprias”, porque as troupes apresentam-se acompanhadas de instrumentos de corda e de sopro, nomeadamente flautas, violas, violinos, bandolim e interpretam três números em cada localidade que visitam.
“O primeiro é o designado por saudação, a troupe chega a uma casa e, portanto, saúda o dono da casa e diz que vem cantar a mensagem de Natal; o segundo número é uma mensagem, propriamente dita, e então as troupes e os autores das letras encontram sempre motivos para, até com alguma atualidade, retratarem também alguma atualidade social, sobretudo, que se vive; e o último número é a chamada despedida, em que a troupe agradece ao dono da casa e espera que seja retribuída, obviamente de uma forma figurada”.
As troupes são constituídas por grupos de amigos, instituições, associações, coletividades, e algumas somam décadas e décadas de formação.
Esta não é uma tradição de palco, mas desde os finais da década de 80 que a Câmara começou a receber as troupes no seu espaço.
Dada a dimensão dos encontros, estes tiveram de passar a realizar-se no Centro de Arte de Ovar: no dia 6 vão ser recebidas as troupes adultas, às 20h30, e dia 7 de janeiro as troupes infantis, pelas 15h.
“Há uma adesão muito grande por parte da comunidade a esta tradição. Só assim é que se percebe que ela se mantenha”, assinala o vice-presidente da Câmara Municipal de Ovar.
O “Cantar os Reis” de Ovar está inscrito desde 2020 no Património Cultural Imaterial de Portugal, e segundo o vice-presidente Domingos Silva, as pessoas sentem muito “orgulho” de “ostentar este símbolo”.
A norte do país, mais propriamente em Guimarães, a tradição de Cantar os Reis mantém-se viva pela mão do Corpo Nacional de Escutas (CNE), em especial do Agrupamento 1259 de Sande, São Clemente.
José Crespo é o dirigente do agrupamento e revela que, no dia 7 de janeiro, o Centro Paroquial de São Clemente vai acolher o tradicional encontro de Reis que acontece há 20 anos, e que só foi interrompido durante dois anos devido à pandemia da Covid-19, regressando em 2023.
“Cada grupo apresenta as suas reisadas e passa uma tarde de tradição”, explica José, que adianta que anualmente assistem à iniciativa uma média de 400, 500 pessoas.
“Isto aqui ainda é uma coisa que muita gente gosta de ouvir. E como há poucos encontros de reis e pouca gente a cantar reis, as pessoas mais idosas, principalmente, correm tudo para ir ver um encontro. Nós vamos fazer aqui na nossa freguesia ou na nossa paróquia, mas em redor da nossa paróquia também se faz mais alguns. Mas onde se fizer, está sempre muita gente a assistir”, disse, em entrevista à Agência ECCLESIA.
Na edição deste ano, são 11 os grupos que vão “Cantar os Reis”, sendo eles associações, grupos corais das igrejas, das paróquias e ainda associações de ranchos folclóricos.
Durante quatro horas, entre as 14h30 e as 18h30, o público escuta as quadras dedicadas aos reis e canções populares, em que cada grupo tem apresentações de 15 minutos.
De acordo com José Crespo, esta é uma forma de não deixar cair a tradição no esquecimento, acrescentando que naquela paróquia, de dia 6 até 20 de janeiro, se mantém um hábito: “Nesse período, nós vamos cantar os reis às portas, aqui nas pessoas, amigos, pais e amigos do agrupamento”.
Sobre a adesão dos jovens a este momento, o dirigente garante que muitos deles participam no “Cantar os Reis” ao lado dos mais velhos.
Em Alenquer, a tradição perdura desde o século XIII até hoje e destaca-se pela originalidade.
“Temos uma tradição muito antiga, secular aqui no concelho de Alenquer que é o ‘Pintar e Cantar os Reis’ que narra a odisseia dos Três Reis Magos na perseguição da estrela até chegarem ao local do nascimento do Menino Jesus”, explica Eduardo Silva, guia das visitas ao Presépio Monumental de Alenquer.
Neste concelho, além de se “Cantar os Reis”, pintam-se várias terras, num roteiro noturno que acontece de cinco para seis de janeiro.
O ponto de encontro é no dia 5 de janeiro, às 22 horas, na Praça Luís de Camões, em Alenquer, e depois segue-se uma viagem gratuita de autocarro, onde são percorridos vários pontos do concelho, cantando, pintando e convivendo ao mesmo tempo.
Segundo explica a Câmara Municipal de Alenquer, os “reiseiros”, aqueles que cumprem a devoção de evocar o ritual, cantam e pintam várias representações e, de acordo com a localidade, desenham-se diferentes símbolos.
São eles os corações e vasos floridos que representam a composição dos agregados familiares; a estrela do Oriente; as inscrições e siglas “B.R” (Bons Reis), “BRM” (Bons Reis Magnos/Magos), “V.R.” (Viva os Reis/Viva a República), “B.F.” (Boas Festas) e o ano da celebração; os desenhos que representam profissões e outras atividades e, nalguns casos, o Vaso do Grupo, onde se inscrevem as iniciais dos nomes de quem participou no ritual; As cores que predominam são o vermelho e o azul.
Eduardo Silva conta que “é precisamente nesta tradição do ‘Pintar e Cantar os Reis’ que não existe a vaca e o burro do presépio, existe o boi e a mula. Os animais são os mesmos, os significados também, portanto o boi aparece como sinónimo de força e de bondade e a mula em sinal de humildade entre os animais”.
Esta manifestação cultural e social já integra o inventário nacional do Património Cultural Imaterial desde 2021 e a candidatura para inscrever a tradição como Património Cultural Imaterial da Humanidade, da UNESCO vai avançar este ano, adianta a autarquia.
LJ/PR