Processo entre a receção da denúncia e o julgamento do caso está definido em vários documentos
Lisboa, 07 mar 2023 (Ecclesia) – A Igreja tem vindo a definir novas regras para tratar dos casos de abuso sexual de menores, que preveem o sigilo do processo, a possibilidade de aplicação de medidas cautelares e o direito à presunção da inocência.
1. Quem pode apresentar uma denúncia às autoridades eclesiásticas?
Qualquer pessoa pode fazer chegar uma denúncia à Igreja Católica. Em 2019, Francisco instituiu a “obrigação” de denúncia, aos membros do clero e institutos religiosos, sempre que alguém “saiba ou tenha fundados motivos para supor” a existência de abusos sexuais – sem que se possa colocar em causa o segredo de Confissão.
2. Quem recebe estas denúncias?
Segundo o manual com 164 pontos, (vade-mécum) divulgado pelo Vaticano em 2020, cada bispo deve acolher, analisar, avaliar e aprofundar, com a devida atenção, todas as denúncias, independentemente da forma ou do canal utilizado. Por iniciativa do Papa Francisco, as dioceses católicas criaram comissões próprias para estes casos, com especialistas de várias áreas.
As normas exigem uma “cuidadosa avaliação dos factos”, sublinhando a necessidade de “acolhimento, escuta e acompanhamento” das pessoas que se apresentam como vítimas.
3. E se a denúncia chegar de forma anónima?
Uma das novidades do vade-mécum do Dicastério para a Doutrina da Fé relaciona-se com as denúncias anónimas, que deixam de ser automaticamente descartadas. Refere-se ainda que não é aconselhável descartar a priori uma denúncia “proveniente de fontes cuja credibilidade possa parecer, à primeira vista, duvidosa”.
4. Quais são as normas da Conferência Episcopal Portuguesa para o tratamento de casos de abuso sexual de menores e adultos vulneráveis?
As diretrizes da CEP datam de 2020 e determinam que o manual do Dicastério para a Doutrina da Fé deve ser “integralmente aplicado”, apontando à necessidade de “escutar, acompanhar e garantir uma adequada assistência médica, espiritual e social às vítimas dos abusos e aos seus familiares”.
5. Que ações se seguem à receção de uma denúncia?
As regras em vigor determinam a abertura de uma investigação prévia, caso a denuncia seja considerada, “pelo menos, verossímil” (saltem verisimilis, no texto original). Os bispos devem iniciar a investigação e aplicar as necessárias medidas cautelares para evitar a continuação de eventuais abusos, dando conhecimento do caso à Santa Sé.
6. Os casos devem ser comunicados às autoridades civis?
Mesmo na ausência duma obrigação explícita, do ponto de vista jurídico, o Vaticano recomenda que a autoridade eclesiástica apresente denúncia às autoridades civis competentes, “sempre que o considere indispensável para tutelar a pessoa ofendida ou outros menores do perigo de novos atos delituosos”. Essa cooperação não pode ir contra o sigilo sacramental na Reconciliação.
7. A que crimes dizem respeito estes abusos?
Em causa estão acusações de forçar e/ou realizar atos sexuais com um menor de 18 anos ou com uma pessoa vulnerável, bem como de posse ou divulgação de “material pornográfico infantil”. O direito canónico é, neste ponto, mais exigente do que a legislação portuguesa, na qual a idade de consentimento é aos 14 anos, embora com restrições até aos 16 anos.
Desde 2021, com a reforma do Código de Direito Canónico (CDC) promovida pelo Papa, estes casos são inseridos numa secção especificamente dedicada aos “delitos contra a vida, a dignidade e liberdade do homem”.
8. O bispo pode suspender um padre acusado?
O bispo tem o direito, desde a abertura da investigação prévia, de impor medidas cautelares – que são um ato administrativo. Entre essas medidas estão a possibilidade de afastamento ou proibição de exercício público do ministério.
O próprio sacerdote alvo de denúncias pode pedir o afastamento provisório de funções, durante a investigação. Desde o momento da denúncia, o acusado tem direito de apresentar pedido de dispensa de todas as obrigações inerentes ao seu estado de clérigo, incluindo o celibato.
Na legislação em vigor, na Igreja, a suspensão é uma pena, que decorre de um processo penal (vade-mécum, n.º 62), pelo que tecnicamente o termo não se aplica à investigação prévia.
9. O que acontece se o bispo não cumprir as normas estabelecidas para estes casos?
O Papa aponta à responsabilidade de bispos que sejam acusados de “ações ou omissões” que visem interferir ou contornar as investigações civis, canónicas, administrativas ou criminais nestes casos. Está em causa um delito punível nos termos do Direito Canónico e do motu proprio ‘Como uma mãe amorosa’ (2016), podendo levar à destituição do cargo.
10. Que passos são dados após a investigação prévia?
Os atos da investigação são enviados para o Dicastério para a Doutrina da Fé, que pode arquivar o caso, abrir um processo penal, solicitar um aprofundamento da investigação, impor medidas disciplinares, advertências ou repreensões.
A abertura de um processo pode decorrer por via judicial ou administrativa; em casos muito graves, o processo pode terminar com uma decisão direta do Papa. No desenrolar do processo, podem ser impostas medidas cautelares ao acusado.
11. As vítimas têm direito a obter informações sobre o processo?
A autoridade eclesiástica deve informar a alegada vítima e o acusado – se o solicitarem – sobre cada uma das fases do processo, sem revelar informações cobertas por segredo processual, cuja divulgação poderia prejudicar terceiros.
12. Que penas estão previstas?
O CDC prevê, na sua nova redação, a “privação do ofício e outras penas justas, sem excluir, se o caso o exigir, a expulsão do estado clerical”, para os sacerdotes. As penas levam em consideração as circunstâncias atuais (estado de saúde ou idade do clérigo, por exemplo), podendo incluir a obrigação ou proibição de residência em determinado território, privação de cargos ou funções, proibição de ouvir confissões ou de pregar, entre outras.
13. A quem se aplicam estas penas?
As penas estendem-se aos clérigos, membros de instituto de vida consagrada ou de sociedade de vida apostólica ou “qualquer fiel que goze de dignidade ou exerça cargo ou função na Igreja”.
14. Qual é o prazo de prescrição, no Direito Canónico?
O prazo, no Direito Canónico, é mais longo do que na legislação portuguesa. Os casos prescrevem num prazo de 20 anos a partir do 18.º aniversário da vítima. Essa prescrição pode ser revogada, em casos individuais, por decisão da Santa Sé, e os bispos devem dar sempre seguimento à investigação, mesmo constatando que decorreu o tempo para a prescrição.
15. Estes casos estão sujeitos ao segredo pontifício?
A 17 de dezembro de 2019, o Papa decidiu abolir o segredo pontifício nos casos de violência sexual e de abuso de menores cometidos por clérigos. A decisão foi acompanhada por outro decreto, que altera a norma relativa ao crime de pornografia infantil – inserido na categoria de ‘delicta graviora’, os crimes mais graves, no direito canónico-, à posse e difusão de imagens pornográficas, fazendo referência a menores de 18 anos de idade, em vez dos 14 anos, como acontecia até então.
OC
Em relação a estas matérias, os textos mais importantes dos últimos anos são: Carta Apostólica ‘Vos estis lux mundi’ (2019), do Papa Francisco –https://www.vatican.va/content/francesco/pt/motu_proprio/documents/papa-francesco-motu-proprio-20190507_vos-estis-lux-mundi.html Vade-mécum sobre processos em casos de abusos de menores (2020, com atualização em junho de 2022) – https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/ddf/rc_ddf_doc_20220605_vademecum-casi-abuso-2.0_po.html Normas sobre os delitos mais graves, reservados ao Dicastério para a Doutrina da Fé (2021) – https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20211011_norme-delittiriservati-cfaith_po.html Modificações do Livro VI do Código de Direito Canónico (2021) – https://www.vatican.va/archive/cod-iuris-canonici/esp/documents/cic_libro6_sp.pdf Carta circular para ajudar as Conferências Episcopais na preparação de linhas diretrizes no tratamento dos casos de abuso sexual contra menores por parte de clérigos (2011) – https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20110503_abuso-minori_po.html Proteção de menores e adultos vulneráveis – Diretrizes da Conferência Episcopal Portuguesa – https://www.conferenciaepiscopal.pt/v1/protecao-de-menores-e-adultos-vulneraveis-diretrizes/ |