Escutas da Quaresma

José Dias da Silva

A Quaresma é um tempo especialmente forte na vida dos católicos: a preparação interior e exterior para o acontecimento central da nossa fé. Esta exigência vivencial é, este ano, reforçada por dois factos: eclesialmente, a vinda do Papa a Portugal; socialmente, a agudização de uma crise, que para lá dos seus aspectos financeiro e económico já conhecidos, está a atingir, de forma grave os fundamentos da nossa organização social e das nossas relações como cidadãos.

A Igreja em Portugal pode ter ainda muito “peso político”, mas qual é a qualidade da nossa intervenção individual e comunitária? Como é que as palavras libertadoras de Jesus são por nós postas em prática? O que sabemos nós dessas palavras libertadoras? Que catequese e formação temos e fazemos? Conhecemos realmente o Jesus dos Evangelhos ou temos a nossa própria visão, uma perspectiva ideológica na qual só cabem as palavras e atitudes que possam justificar as nossas atitudes e interesses? Olhamos… e vemos que as palavras do “Sermão da Montanha” não tocam o fundo do nosso coração e não são a bússola da nossa vida nem o fundamento dos nossos actos. João Paulo II denunciou este défice de coerência, desmontando algumas ideias feitas: “Perguntar a um catecúmeno: «Queres receber o Baptismo?» significa ao mesmo tempo pedir-lhe: «Queres fazer-te santo?» Significa colocar na sua estrada o radicalismo do Sermão da Montanha: «Sede perfeitos, como é perfeito vosso Pai celeste». Como explicou o Concílio, este ideal de perfeição não deve ser objecto de equívoco vendo nele um caminho extraordinário, que apenas algum «génio» da santidade poderia percorrer. (…) É hora de propor de novo a todos, com convicção, esta «medida alta» da vida cristã ordinária: toda a vida da comunidade eclesial e das famílias cristãs deve apontar nesta direcção” (NMI 31). Sem esta medida alta da vida cristã ordinária não haverá Ressurreição para nós. Só haverá Ressurreição se morrermos para uma fé infantil, descomprometida, “sem calorias”, que não toma a sério o ser cristão. Só haverá Ressurreição se morrermos para o homem velho que vive de acordo com as normas da sociedade de consumo, que dá prioridade aos seus interesses, que não reconhece o outro, qualquer outro, como o rosto alegre ou sofrido de Jesus Cristo e que não tem como norma de vida “o princípio da gratuidade como expressão da fraternidade” (CV 34).

É a partir daqui que ganha significado a Eucaristia, que só será autêntica, se for encontro festivo, individual e comunitário, com a Pessoa de Jesus, “que dá à vida um horizonte e, desta forma, o rumo definitivo” (DCE 1) e se tornar celebração sentida da beleza do nosso Deus, transcendente no Grande Mistério indizível e imanente no pequeno mistério que é cada um de nós.

Mas não há comunidade católica sem a vivência estrutural da Caridade. Não se trata de uma mera filantropia, de um sentimento vago de compaixão, de uma passageira fraternidade, mas de um amor profundo, reflexo do dom de Deus, que nos amou sem contrapartidas.

E a primeira exigência é que “no seio da comunidade dos crentes não deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a alguém os bens necessários para uma vida condigna” (DCE 20). Não se trata de um aparente egoísmo tribal, pois o Papa clarifica que “a parábola do bom Samaritano permanece como critério de medida, impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado «por acaso», seja ele quem for” (DCE 25) e que “enquanto dom recebido por todos, a caridade na verdade é uma força que constitui a comunidade, unifica os homens segundo modalidades que não conhecem barreiras nem confins” (CV 34).

Mas, na actual situação sociopolítica, somos chamados, em nome do amor, a ser semeadores, pela palavra e pela acção, da concórdia e da paz social, pilares fundamentais do bem comum, e da confiança e esperança, que ajudem a combater o clima de desespero, desconfiança, suspeição e até ódio, que só envenenam as nossas relações sociais.

Em nome do amor, somos chamados a exigir de todos, governo, oposição e a sociedade nas múltiplas valências e talentos, que, com respeito pela democracia e pelo sentido de Estado, dêem prioridade a um clima de harmonia na diversidade de projectos, tendo como objectivo primeiro um país mais desenvolvido, e a colaborar na edificação de uma cidadania saudável, lutando a favor da justiça e dos direitos humanos e contra o silêncio cómodo ou o medo incómodo de potenciais represálias, sem descurar os próprios deveres

Em nome do amor, somos chamados a combater, por todos os meios, a corrupção, esse monstro que conspurca a nossa sociedade e está disseminada por todos os estratos sociais.

Em nome do amor, somos chamados a discernir e a hierarquizar as muitas questões graves que nos afectam, não nos deixando seduzir pelo canto de sereias dos que detêm o poder de falar ou comentar, mas ampliando os aflitivos gritos silenciosos e silenciados dos que, não tendo vez nem voz, ficam esquecidos no meio de tanto ruído.

 

José Dias da Silva, vogal da Comissão Nacional Justiça e Paz

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