Escutar o clamor dos pobres

Reflexão da Comissão Nacional Justiça e Paz para a Quaresma 2008 A esperança atrai o futuro para dentro do presente, de modo que aquele já não é o puro «ainda-não”. (Bento XVI, Spe salvi, n.7) Nesta Quaresma de 2008, a Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP) convida todos os cristãos e as suas comunidades a escutar o clamor dos pobres e a abrir caminhos de justiça para erradicar a pobreza no nosso País (1) Escutar implica, em primeiro lugar, liberdade interior para deixar cair preconceitos e ver a realidade tal como ela é, com as suas contradições de luzes e sombras; requer também que assumamos como nossos os problemas da sociedade em que vivemos e nos empenhemos na procura de soluções criativas que construam a justiça e a paz no nosso tempo. O texto que segue é fruto de uma reflexão feita pela CNJP e está centrado sobre o empobrecimento que continua a marcar, de forma dramática, a vida de muitos dos nossos concidadãos e concidadãs. Cerca de 18%, como referem as estatísticas de 2006 (2). Isto, apesar do nosso País ter atingido níveis de rendimento que permitiriam superar este flagelo social, se outra fosse a repartição do rendimento e o modelo económico e se as opções políticas estivessem voltadas para a satisfação das necessidades das pessoas, das famílias e das comunidades. A CNJP, juntamente com várias entidades eclesiais e outras da sociedade civil, tem vindo a chamar a atenção para este problema nacional, procurando dá-lo a conhecer a públicos cada vez mais vastos e denunciando esta situação como uma grave injustiça. Sabemos que é importante mobilizar as consciências para que, colectivamente, se reconheça que a pobreza é uma situação intolerável à luz de critérios éticos e dos direitos humanos fundamentais e pode constituir um risco e uma ameaça, para a democracia, a sustentabilidade do crescimento económico e para a paz social. Ao escolher este tema de reflexão, para a Quaresma de 2008, queremos não só alargar o debate sobre a pobreza como também abrir caminhos para a criatividade colectiva na procura de soluções que a possam resolver, superando as causas que a geram e minimizando as suas manifestações mais agudas. Acreditamos que o esforço de conversão a que somos chamados, de modo particular neste tempo litúrgico não pode passar ao lado destes desafios. Desejamos também expressar o nosso sentir junto dos poderes públicos, da comunicação social e da sociedade civil e afirmar a nossa disponibilidade para um projecto colectivo que vise a erradicação da pobreza no nosso País e maior solidariedade com a redução da pobreza no mundo. Temos a convicção de que erradicar a pobreza é possível e urgente. A pobreza é uma violação de direitos humanos Esta reflexão vem dar continuidade à petição apresentada à Assembleia da República em Outubro passado, por iniciativa da CNJP. Nela solicitava-se que a pobreza seja reconhecida como uma violação dos direitos humanos. Recolheu a petição mais de 23 mil assinaturas que, no conjunto, representam diferentes estratos sociais e regiões do País e suscitou a adesão expressa de várias entidades da sociedade civil e de diferentes confissões religiosas o que, só por si, indicia interesse e vontade de enfrentar este urgente problema social. Não queremos que o empenhamento então esboçado se esfume e que adormeçam as consciências. Em primeiro lugar, pela parte dos políticos e dos poderes públicos a quem cabe a responsabilidade e o dever de providenciar instituições e políticas públicas que concorram para a justiça, a solidariedade e a equidade na actividade económica e na repartição dos benefícios do progresso. Mas também por parte da sociedade civil, com destaque para as organizações de solidariedade social e dos media de quem se espera que saibam dar voz e vez aos pobres. Dirigimo-nos de modo muito particular aos nossos irmãos e irmãs na fé, para quem o tempo da Quaresma é um tempo privilegiado para um confronto mais vital com o que é verdadeiramente essencial no Evangelho e no seguimento de Jesus Cristo, no entendimento de que “Jesus uniu – fazendo deles um único preceito – o mandamento do amor a Deus com o do amor ao próximo.” (Deus caritas est, n.1) Os diferentes rostos da pobreza A pobreza é uma realidade complexa e multifacetada, que nas sociedades contemporâneas se apresenta com vários rostos e múltiplas causas, exigindo, por isso, respostas diversificadas. Começamos por lembrar o empobrecimento de algumas populações rurais que, decorridos mais de 30 anos de vida democrática, continuam amarradas a um estádio de subdesenvolvimento económico, privadas de acesso a bens de conforto em domínios básicos de habitação, alimentação, saúde e cultura, sujeitas a formas de trabalho por vezes escravizante, desprotegidas em matéria social e, frequentemente, privadas de meios de comunicação e de acesso aos serviços essenciais. É, porém, entre a população urbana que os rostos da pobreza mais se diversificam. Nas grandes cidades, o empobrecimento está particularmente patente no rosto dos mendigos e dos sem abrigo que, só na cidade de Lisboa, ultrapassam os dois milhares. Há os pobres por viverem em zonas de habitat degradado ou em realojamento social desprovido de dignidade e segurança. A este quadro vêm juntar-se os casos da chamada nova pobreza, nem sempre captada pelas estatísticas correntes. Referimo-nos às pessoas de baixos recursos, privadas de laços familiares ou de vizinhança, aos idosos isolados e entregues a si próprios, sem condições físicas e psíquicas para se providenciarem ou vivendo em residências colectivas sem condições de dignidade humana, às crianças e jovens desenraizados de meio familiar normal. Recentemente os media têm noticiado manifestações de nova pobreza, incluindo dependência de ajuda alimentar e outra, entre pessoas de idade activa e habilitações académicas de nível médio e superior, uma pobreza escondida e envergonhada. A incidência da pobreza é particularmente preocupante entre as pessoas idosas (26% das quais são pobres), as crianças de famílias desestruturadas e/ou baixos rendimentos (20% dos menores de 16 anos vivem abaixo do limiar da pobreza), os trabalhadores de baixos salários e trabalho precário (com 11% e 10%, respectivamente, de pobres), os desempregados (cuja taxa de pobreza é da ordem dos 31%), as mulheres (com uma taxa de pobreza de 19%), e as famílias mono parentais e com filhos a cargo (41% de pobres). Embora com rostos diversos, os pobres têm em comum uma dignidade humana ofendida, a humilhação da sua exclusão social, a insegurança face ao dia de amanhã e a um projecto de futuro, a perda de autonomia na sua realização pessoal e, não raro, o justo sentimento de serem vítimas da injustiça social. Acresce, em muitos casos, a angústia psicológica de se sentirem, primeiro inúteis e depois descartáveis pela sociedade, pelos amigos e vizinhos, quando não pela própria família. Vista a realidade do empobrecimento por outro prisma, sobressaem os recursos e as potencialidades humanas subaproveitados ou desperdiçadas, a engenhosidade posta em acção para fazer face à sobrevivência e, muitas vezes, a abnegação e a solidariedade vividas entre os próprios pobres. A pobreza não é uma fatalidade A reflexão que vimos fazendo leva-nos a afirmar que a pobreza não é uma fatalidade, mormente naqueles países que, como o nosso, já alcançaram um patamar razoável de rendimento. A pobreza é, em grande parte, resultante de um modelo económico que privilegia o lucro do capital financeiro e favorece a concentração da riqueza, sem que existam ou funcionem adequadamente mecanismos apropriados que assegurem a participação equitativa de todos nos frutos do crescimento económico. O modelo social europeu é uma tentativa ténue de ir ao encontro do desafio de prevenir a pobreza e a exclusão social, mas a sua implementação tem deparado com resistências múltiplas porque ocorre em contextos nacionais estruturalmente caracterizados por uma muito desigual repartição do poder, económico e político, com desvantagem para os mais empobrecidos. Acresce que este modelo enfrenta dificuldades sérias com o aprofundamento da globalização, fenómeno com muitas potencialidades mas que, por falta de regulação adequada, tem vindo a contribuir para o desemprego e para o agravamento da desigualdade de rendimentos e salários, entre países e no interior de cada país. Por outro lado, tem aumentado a turbulência nos mercados de trabalho, os quais conhecem transformações que podem pôr em causa a coesão e integração sociais, por não se estar a verificar a criação de empregos em número e qualidade suficientes em relação à procura. Relativamente a este ponto, constitui motivo de preocupação o facto de se ter vindo a assistir ao esvaziamento do quadro legal ou convencional de protecção do trabalho, sem que surja, em substituição, um outro quadro regulamentador que respeite plenamente a dignidade dos trabalhadores. Vencer a pobreza Para vencer a pobreza há um caminho a percorrer em várias frentes. De seguida enumeramos aquelas que se nos afiguram determinantes, tendo por referência a Doutrina Social da Igreja assente nos seguintes princípios básicos: – o primado absoluto da defesa da pessoa humana, de cada pessoa e dos seus direitos e deveres fundamentais; – o destino universal dos bens da terra; – o primado da pessoa sobre o trabalho e deste sobre o capital. Em primeiro lugar, importa afirmar que não se resolverá o problema da pobreza sem um quadro de referência ética comummente aceite. Ética pessoal, com as correspondentes implicações no comportamento dos pobres e dos não-pobres. Ética social com tradução no modo como se organiza a vida colectiva e a participação de todos na actividade económica e na repartição dos respectivos custos e benefícios. A Doutrina Social da Igreja oferece um quadro de orientações, entre as quais figura, como afirmou o Concílio Vaticano II, a de que “…todos têm o direito de uma parte dos bens suficientes para si e suas famílias. Assim pensaram os Padres e Doutores da Igreja, ensinando que os homens têm obrigação de auxiliar os pobres e não apenas com os bens supérfluos” (Gaudium et spes, n.19). Disse ainda o mesmo Concílio que: “Sendo tão numerosos os que no mundo padecem fome, o sagrado Concílio insiste com todos, indivíduos e autoridades, para que, recordados daquela palavra dos Padres – “alimenta o que padece fome, porque se não o alimentaste, mataste-o” – repartam realmente e distribuam os seus bens, procurando sobretudo prover esses indivíduos e povos daqueles auxílios que lhes permitam ajudar-se e desenvolver-se a si mesmos” (ibidem). Na concretização destes princípios orientadores, devemo-nos guiar pela opção preferencial pelos pobres: “Esta é uma opção, ou uma forma especial de prioridade, na prática da caridade cristã de que testemunha toda a tradição da Igreja” (Populorum progressio, n. 45). Pelo que respeita à propriedade e ao uso dos bens, a Doutrina Social da Igreja valoriza, de modo especial, a noção de destino universal dos bens, recordando que: “Deus destinou a terra e tudo o que ela contém ao uso de todos os homens e de todos os povos, de modo que os bens da criação devam equitativamente afluir às mãos de todos, segundo a regra da justiça, inseparável da caridade” (Gaudium et spes, n. 69). A este propósito, continua actual a observação de Paulo VI: “Todos os outros direitos, quaisquer que sejam, incluindo os de propriedade e de comércio livre, estão-lhe subordinados: não devem portanto impedir, mas, pelo contrário, facilitar a sua realização; e é um dever social grave e urgente conduzi-los à sua finalidade primeira. (Populorum progressio, n. 22). Não se trata, portanto, de negar o direito de propriedade, mas, pelo contrário, de o tornar acessível a todos. Um princípio fundamental como este não pode deixar de estar subjacente e influir no modo como os cristãos se devem relacionar com os bens, quer a nível individual, quer na avaliação de uma sociedade, nacional e global, em que a muitos é negado o direito de acesso a esses bens, em muitos casos com expressões extremas de pobreza. Para erradicar a pobreza, são necessárias, em primeiro lugar, políticas económicas que gerem empregos dignos, democratizem o acesso à propriedade por parte das famílias de rendimentos médios e médios-baixos, e promovam uma distribuição menos desigual do rendimento criado em cada ano pela actividade económica. Para além disso, é igualmente indispensável um programa eficaz de combate à pobreza, que tenha em conta, nomeadamente, os grupos mais vulneráveis. Para vencer a pobreza há, por outro lado, que desmontar os preconceitos que impedem uma visão clara sobre o empobrecimento, a começar pela ideia de que em Portugal não existe pobreza (nega-se a um só tempo a evidência estatística e a própria experiência empírica) ou a de que só é pobre quem quer. Para alguns, a pobreza é consequência de vícios dos pobres, em especial a preguiça (“não querem trabalhar, diz-se”), o alcoolismo, a toxicodependência, ou o pendor para o desrespeito pelas normas de convivência social. Há quem vá mais longe e admita que a pobreza está associada à delinquência ou a um mau viver. Para outros, a pobreza é fruto de má sorte e uma realidade inevitável. São explicações que, além de serem incorrectas, desresponsabilizam a sociedade. No domínio técnico-científico, não faltam ideias que, se bem que não sejam de todo erradas, enfermam de uma compreensão superficial da pobreza e/ou de tomarem como suficientes medidas e objectivos necessários mas que, só por si, não bastam para combater a pobreza. Segundo alguns, a pobreza resolve-se com mais crescimento económico; é uma questão de tempo. Para outros, trata-se de mera questão residual que se resolve com acções específicas de assistência social. Para outros, ainda, a redução da desigualdade iria comprometer o crescimento económico, uma vez que são as poupanças dos que mais têm que permitem financiar o investimento, sem o qual não há crescimento. Como acima se disse, nem todo o tipo de crescimento económico contribui para reduzir a pobreza, e até pode conduzir ao seu agravamento. É por isso indispensável que a política económica saiba conciliar o crescimento com uma melhor distribuição dos rendimentos. A distribuição de rendimentos de que falamos não tem de afectar necessariamente a poupança, como por vezes se receia, para o que bastará que sejam desincentivados os consumos sumptuosos ou simplesmente supérfluos. Isto pressupõe que a sociedade em geral reconheça a necessidade de abandonar os critérios da cultura consumista e de uma felicidade dependente de ter mais, para adoptar um estilo de vida mais sóbrio e mais solidário. Estes e outros preconceitos acima mencionados barram o caminho a uma acção colectiva determinada a erradicar a pobreza e, por isso, deve merecer particular atenção o seu discernimento crítico, para o que muito pode contribuir o melhor conhecimento do fenómeno da pobreza e a maior proximidade com os empobrecidos bem como a escuta dos seus respectivos percursos de vida. Como atrás referimos, a pobreza tem muitos rostos e decorre de múltiplas causas, pessoais umas e sociais outras. Por isso, é fundamental promover os estudos científicos acerca da pobreza enquanto problema nacional grave e dar a conhecer a situação à opinião pública. É esta uma tarefa que os cristãos deveriam abraçar com particular dedicação e empenho. Em particular, do mesmo modo que o País fica a conhecer com regularidade os indicadores do crescimento económico e demais índices que revelam o grau de saúde da economia nacional, assim também é desejável que todos saibamos como se reparte este crescimento e em particular, como está a contribuir para erradicar a pobreza. Esta a razão que nos levou a incluir na petição dirigida à Assembleia da República uma tríplice proposta: a definição de um limiar oficial de pobreza em Portugal, a constituição de uma entidade de âmbito parlamentar destinada a recolher dados de acompanhamento da evolução do fenómeno da pobreza no nosso país e a apresentação anual no parlamento dos resultados das políticas públicas contra a exclusão social. O Governo dispõe de um Plano Nacional de Acção para a Inclusão (PNAI) de cuja filosofia faz parte um princípio básico de transversalidade. Por outras palavras, a prevenção e o combate à pobreza devem atravessar todas as políticas públicas, desde a saúde e a educação, aos transportes, à habitação, ao emprego e formação profissional, à segurança social, à justiça, à cultura, ao investimento público e, de modo geral, à política macroeconómica. Saudamos este instrumento de política pública, mas temos de reconhecer um conjunto de falhas que importa corrigir, em especial as seguintes: falta de visibilidade, défice de articulação com as autarquias, reduzida influência nas decisões dos diferentes departamentos da Administração, ausência de uma verdadeira avaliação dos efeitos das políticas prosseguidas e de modo particular a insuficiente participação de todos os intervenientes aos diversos níveis. Daí que sejam, por ora, bastante insatisfatórios os seus resultados. Mais do que a aplicação de uma série de medidas avulsas, importa avançar para a elaboração de uma verdadeira estratégia de erradicação da pobreza, formulada em termos mais coerentes e operacionais do que os existentes. Outro passo em direcção à erradicação da pobreza tem a ver com a qualidade e a perspectiva de funcionamento dos serviços públicos básicos em matéria de educação, saúde, habitação e equipamento social, transportes, emprego e qualificação profissional. Não basta que tais serviços existam e se limitem a acolher os seus utentes com propostas padronizadas. Para prevenir a pobreza é indispensável ir ao encontro dos pobres e, em cada caso, providenciar as respostas adequadas à sua respectiva situação. Sem uma atitude pró activa que discrimine positivamente os mais carenciados não se garante o princípio da igualdade de acesso aos serviços públicos. Outra das frentes de combate à pobreza consiste em dar (ou restituir) o poder aos pobres, para que expressem as suas necessidades e sejam os verdadeiros agentes da sua libertação. Só se sai da pobreza quando se adquire a autonomia bastante para gerir a própria vida e exercer plenamente a cidadania, o que supõe, em primeiro lugar, o fácil acesso à informação sobre os recursos disponíveis, mas também capacitação verbal e escrita para os aproveitar. Só um serviço de proximidade poderá contribuir para levar a informação acerca dos recursos junto dos pobres e funcionar como uma “provedoria” específica para a defesa dos seus direitos. A sociedade civil através das suas múltiplas organizações e, de modo especial, as comunidades paroquiais, que estão presentes nos lugares mais remotos assim como junto das populações urbanas mais empobrecidas, poderiam desempenhar uma missão relevante neste domínio (3). É, ainda, da sociedade civil, incluindo os organismos eclesiais de acção social que se podem esperar contributos decisivos para fazer face a novas necessidades, identificando-as atempadamente e procurando para elas novas respostas. Pensamos, de modo particular, na promoção da economia social como meio de responder a necessidades locais e promover o emprego, no acesso ao micro crédito e ao empreendorismo, no comércio justo, etc. A ideia subjacente a todas estas acções – sem prejuízo das situações de emergência a que é preciso ocorrer para evitar situações de carência muito graves – deverá ser a de contribuir para a auto-suficiência e a capacitação daqueles que se pretende apoiar. Importa que os pobres sejam os protagonistas da luta contra a pobreza, fornecendo-lhe os instrumentos para que tal possa acontecer. A aposta num trabalho digno para todos é uma forma de prevenir a pobreza. De acordo com a OIT, o trabalho digno é a ligação que falta entre o crescimento económico e a redução da pobreza, e constitui o objectivo estratégico para se alcançar uma globalização justa. Pressupõe a criação de oportunidades de emprego produtivo – de que o empreendorismo, o acesso ao crédito, e as condições de escoamento dos produtos constituem instrumentos a desenvolver – níveis de remuneração decente, máximo respeito pelos princípios e direitos fundamentais dos trabalhadores, protecção social e cobertura médica, higiene e segurança nos locais de trabalho, diálogo social, abolição da discriminação no acesso aos empregos e defesa dos imigrantes. Uma tal via permitirá alcançar ganhos de produtividade e eficiência, sem os custos sociais de sistemática redução dos empregos e das remunerações. A correcção das desigualdades é também uma condição necessária para vencer a pobreza. A presente situação de desigualdade social no nosso País é uma afronta e um escândalo que importa denunciar e combater. Para vencer a pobreza, há que definir salários mínimos acima do limiar da pobreza e o mesmo se diga das pensões de reforma e das prestações sociais. Queremos também sublinhar a importância de que se reveste uma política de dignificação da família e de conciliação entre vida familiar e profissional, que confira particular atenção às famílias em situação de precariedade económica ou em risco de desestruturação, facultando-lhes meios de aconselhamento e ajuda. Em situações de pobreza, é difícil esperar que a família desempenhe cabalmente o seu papel, o que se reflectirá em múltiplas disfunções sociais (abandono dos idosos, insucesso escolar, comportamentos desviantes dos jovens, etc.). Por último, é ainda de salientar o impacto da questão ambiental, nas suas múltiplas incidências sobre a pobreza. Por exemplo, as catástrofes ditas naturais decorrentes das alterações climáticas afectam com maior severidade as populações pobres que vivem em habitações menos seguras e em locais menos protegidos. Também elevados níveis de contaminação dos solos agrícolas se repercutem negativamente nas condições de vida dos pobres em meio rural. E, porque têm menor capacidade para fazerem ouvir a sua voz junto dos poderes públicos, não raro os pobres sofrem as consequências negativas de certas decisões camarárias e outras em matéria de localizações de risco. Em conclusão A pobreza é uma negação de direitos humanos. Ofende a dignidade da pessoa humana, atenta contra o seu direito à vida, impede o exercício desse outro direito fundamental que é a liberdade e constitui um obstáculo à participação, condição essencial de uma democracia autêntica. Por outro lado, a pobreza é terreno fértil para o surgimento da violência e da anomia social, sendo, por isso, do interesse de todos os cidadãos e cidadãs promover o mais alto nível de inclusão social de todos os grupos sociais, com o que isso supõe de reconhecimento das diferentes identidades e de não discriminação. Assim sendo, vencer a pobreza e proporcionar condições de vida digna para todos é uma condição necessária para uma cidadania aprofundada e uma democracia sustentável. É factor de crescimento económico e de progresso social geral. É caminho para uma vida mais saudável e mais feliz. Se queremos vencer o desafio da erradicação da pobreza no nosso País, há que olhar para o futuro e fomentar em toda a sociedade uma cultura de justiça, de solidariedade e de amor, que se traduza numa praxis de inovação e criatividade na economia e na organização social, por parte dos poderes públicos, dos actores económicos, dos parceiros sociais e da sociedade civil, em geral. Em particular, as comunidades cristãs têm o dever de praticar a “fantasia do amor” e de fazer surgir novas iniciativas que permitam ir ao encontro das necessidades dos irmãos de modo a corresponder à interpelação exigente do Papa Bento XVI: “no seio da comunidade de crentes não deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a alguns os bens necessários para uma vida condigna” (Deus caritas est, n. 20). Os jovens devem merecer a maior atenção da comunidade cristã no sentido de os incentivar a empenhar-se, desde cedo e fazendo jus à sua generosidade, no desenvolvimento da comunidade a que pertencem e a praticar modalidades de solidariedade com os grupos mais vulneráveis, incluindo a participação em formas de denúncia das injustiças e pressão para fazer valer os direitos de quem não tem voz. Por outro lado, todos os esforços têm de ser feitos com vista a bem aproveitar as novas potencialidades das tecnologias da informação e da economia do conhecimento para a criação de novas oportunidades de emprego e sua orientação para a satisfação de necessidades pessoais e colectivas. As redes sociais, cuja existência está prevista em todos os concelhos, merecem ser melhor conhecidas e apoiadas nas suas atribuições, de molde a envolver toda a comunidade e os diferentes serviços públicos na definição de estratégias e elaboração de planos conjuntos de erradicação da pobreza na respectiva área de influência. Em particular, as instituições sociais da igreja devem interessar-se pelo bom funcionamento destas redes sociais e prestar-lhes a devida cooperação. A pobreza não é um fenómeno recente no nosso País. Aliás, dir-se-á que com ela temos convivido com demasiada tolerância e excessiva resignação. Presentemente, existem condições objectivas que permitem inverter esta situação se conseguirmos vencer preconceitos e representações sociais inadequadas e se formos capazes de mobilizar os necessários recursos humanos, económicos e políticos fazendo-os convergir para a erradicação da pobreza num horizonte temporal razoável. O combate à pobreza não é apenas tarefa dos políticos. Trata-se de uma questão de justiça, é certo, e nela como cristãos nos devemos empenhar, mas, como lembra o Papa Bento XVI: “o amor será sempre necessário, mesmo na sociedade mais justa. (Deus caritas est, n. 28, b). Nesta Quaresma, convidamos todos os cristãos, comunidades e movimentos eclesiais a assumirem a sua parte de responsabilidade na prossecução deste objectivo onde quer que se encontrem e quaisquer que sejam as funções sociais que desempenhem Gostaríamos de concluir esta nossa reflexão com uma frase de Bento XVI: A vida não é um simples produto das leis e da casualidade da matéria, mas em tudo e, contemporaneamente, acima de tudo há uma vontade pessoal, há um Espírito que em Jesus Se revelou como Amor (Spe salvi, n.5). A temática desta reflexão quaresmal foi também abordada na última Conferência da CNJP realizada em Maio último cujos textos estão agora editados no livro “Pobreza, direitos humanos e cidadania”. Cidade Nova, 2007 NOTAS: 1 – Neste documento, debruçamo-nos sobre a erradicação da pobreza em Portugal. Quanto à pobreza no Mundo, cabe assinalar e saudar o Pacto do Milénio assinado no âmbito das Nações Unidas em 2000, segundo o qual os estados signatários se comprometeram com a consecução de objectivos e metas de redução substancial da pobreza até 2015. Sobre a solidariedade no combate à pobreza no Mundo, a CNJP associa-se às suas congéneres europeias na divulgação do documento “Justiça e não migalhas”, a publicar dentro em breve. Este documento constitui uma tomada de posição sobre as condições que devem ser seguidas pelos países europeus nas suas relações com os países em desenvolvimento, particularmente no que se refere à luta contra a pobreza. 2 – É corrente usarem-se vários limiares de pobreza. Neste caso, o limiar de pobreza é definido como 60% do rendimento mediano do nosso País, ou seja 365.5 euros por pessoa e por mês, em 2006. 3 – As reflexões e orientações contidas na encíclica Deus caritas est, do Papa Bento XVI, lançam uma luz nova sobre a acção da Igreja enquanto comunidade de crentes, a qual certamente contribuirá para aprofundar a dimensão humana e eclesial da promoção da justiça e do exercício da caridade.

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