O teólogo João Duque analisa as conclusões da XVI Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos na entrevista Renascença/Ecclesia, que resultou na afirmação da «infalibilidade a partir de baixo» e na convicção de que a questão do diaconado feminino «não vai poder ser adormecida»
Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Paulo Rocha (Ecclesia)
Começava com a pergunta que mais vezes vi colocada nos últimos dias e que tem a ver com as expectativas que o sínodo poderia despertar. Há razões para que as pessoas se sintam frustradas com o resultado obtido?
Sim e não. E essa é, de facto, a pergunta eventualmente mais difícil. Também depende muito das expectativas que se colocavam. Os próprios envolvidos muito diretamente no Sínodo manifestam uma parte de desilusão, mas bastante satisfação, apesar de tudo, com o resultado. É claro que, em grande parte, a desilusão se deve a questões muito concretas, em relação às quais haveria eventualmente alguma expectativa, mas que, analisando com cuidado o próprio estatuto do Sínodo, não era expectável que algumas tivessem uma decisão no final do Sínodo. Grande parte dessas questões – salvaguardando possivelmente uma delas, da qual poderemos depois falar – ficaram em aberto no final do Sínodo, o que significa que não ficou o caminho vedado, inclusivamente com a criação das comissões para analisar algumas questões muito concretas. Essas questões são tratadas agora nessas comissões, porque exige, além de mais, alguma intromissão com o Direito Canónico, em alguns casos, e algum amadurecimento, noutros casos. O documento como tal tem sido bastante saudado, mesmo pelos grupos mais críticos e que tinham uma expectativa mais elevada, dado o teor do documento, que é considerado melhor, mesmo em relação ao ‘Instrumentum Laboris’ e aos documentos anteriores. Nesse sentido, a maioria dos mais críticos está bastante satisfeito com o produto final, tanto quanto se pode estar nestas circunstâncias.
Apesar disso, e já depois do Sínodo ter terminado, a Agência Ecclesia interpelou o secretário-geral do Sínodo dos Bispos, o cardeal Mário Grech, a partir de quem afirma que ‘a montanha pariu um rato’, mesmo com esta expressão. O secretário-geral rejeitou a crítica, referindo-se a mudanças em áreas como a transparência ou a corresponsabilidade, e a aposta em organismos de participação, à celebre expressão ‘todos, todos, todos’. São mudanças suficientes para avaliar positivamente 3 anos de trabalho?
Os 3 anos de trabalho, penso eu, devem ser avaliados em si mesmos. O que se fez ao longo destes 3 anos tem alguma validade, já por si. Toda a dinâmica. Nunca houve um Sínodo com um levantamento tão global, tão universal, também nunca houve recursos, nomeadamente tecnológicos, que possibilitassem isso como hoje é possível.
Nunca houve um exercício tão vasto de sinodalidade, podemos chamar mesmo de democraticidade, na Igreja, como ao longo deste Sínodo, e isso vale já por si. A transformação da linguagem nos documentos é também significativa, e implicou este tempo todo. É um documento com uma linguagem que se distancia um pouco de certas linguagens de tradição eclesiástica, num sentido um bocadinho pejorativo do termo, e, nesse sentido, considero que é também positivo.
Quanto à expressão ‘a montanha pariu rato’… Há quem utilize a imagem do camelo e do cavalo: quando se trata de uma comissão para preparar um cavalo e sai um camelo, que anda, como sabemos, muito mais devagar, mas que tem a capacidade de atravessar os desertos, o que significa que há algumas transformações propostas que são de bastante peso, e não podemos esperar que sejam decididas de imediato e sem mais aprofundamento. A rapidez da nossa cultura exigiria, eventualmente, uma decisão mais rápida, mas talvez seja avisado não a tomar.
Também é preciso ver que, relativamente aos pontos mais polémicos, não houve unanimidade nem sequer neste documento, que nesses pontos é relativamente genérico. E nos casos mais polémicos, o caso concreto do lugar da mulher na Igreja foi de facto a parte do documento que teve mais votos contra. Ora, um Sínodo, tem de levar em conta as diversas sensibilidades, também aqueles que não estão de acordo com uma proposta maioritária.
Precisamente, o documento diz que “não há nenhuma razão para que as mulheres não assumam papéis de liderança na igreja”, mas afirma também que “é necessário um maior discernimento a este respeito”. A minha pergunta é: não era de esperar que nesta altura já houvesse algo mais concreto sobre o papel das mulheres?
Sim… Há coisas concretas referidas, mas dentro do enquadramento atual, quer sacramental, quer do Direito Canónico. Ou seja, acentua-se a importância de colocar mulheres em espaços e lugares de liderança, sem ainda vincular a questão com o Sacramento da Ordem. Claro, nós sabemos que é um argumento que não é suficiente, porque enquanto os lugares de verdadeira liderança e de última decisão na Igreja estiverem vinculados ao Sacramento da Ordem – o cardeal-prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé considera que se poderia separar eventualmente a função de liderança e de governo do Sacramento da Ordem, mas isso não parece viável, e possivelmente nem sequer desejável na Igreja – a questão da ordenação continua a ser uma questão permanente: há certos lugares de decisão aos quais a mulher, só pelo facto de ser mulher, não tem acesso.
Na sua opinião, o Sínodo aponta, de facto, para essa possibilidade ou não?
Não havendo razões, e os críticos, nomeadamente aqueles que têm avançado muito bons argumentos para o não impedimento do acesso à Ordem por parte da mulher, e cada vez têm apresentado melhores argumentos em relação a isso, dizem precisamente que o importante deste documento é declarar que não há razões, impedimentos, coisa que já tinha sido afirmada anteriormente, ou melhor, o contrário, que havia esses impedimentos e essas razões, e que fossem inclusivamente razões teológicas. Isso já é importante.
Depois, a realização concreta, que em princípio passará em primeiro lugar pelo diaconado, quanto a mim é insuficiente, como é lógico e todos sabemos, a não ser que transformemos muito a figura do diaconado permanente atual, mas passará por aí, e aí terá que trabalhar a comissão. É certo que já há uma comissão que vinha a trabalhar isso. Os resultados de facto não foram satisfatórios. E eu acredito que dada a insistência deste tema, e o envolvimento cada vez mais forte das mulheres na vida da Igreja, mas a um nível de liderança já muito significativo, cada vez mais significativo, inclusivamente no Sínodo, essa questão não vai poder ser adormecida.
Falta a palavra do Papa na sua opinião?
É uma decisão que tem de ser muito bem sustentada noutros organismos mesmo antes do Papa. Eu não me atrevo a fazer um juízo sobre a posição do Papa, pessoalmente, e admito que com a idade que tem, seja algo de difícil decisão para ele. Mas também acredito que ele não queira nem nunca vá tomar uma decisão sozinho a não ser muito sustentado por vários organismos relativamente a isso. Porque é uma decisão de bastante peso, sobretudo porque será a abertura de um caminho que poderá vir a levar à ordenação no presbiterado e no episcopado até, como outras confissões cristãs já possuem. E, portanto, não me parece que seja uma questão só do papado, é uma questão do sistema como tal e tem que haver muita segurança.
Agora, parece-me que o caminho se tornou relativamente irreversível, não ainda suficientemente maduro, até porque é precisamente esse número, o número 60 do documento, foi aquele que teve mais votos contra, apesar de ser uma percentagem mínima, mas teve mais votos contra, mesmo nesta redação, que é uma redação ainda relativamente genérica e redonda, mas com uma acentuação interessante do valor da mulher da Igreja. Já agora chamo a atenção para o facto de que a parte inicial do documento toca nos fundamentos, logo, logo no primeiro parágrafo, penso eu: abre com uma referência à denominação de Madalena como apóstola dos apóstolos, algo que já São Tomás fez e que vem da tradição da Igreja. Não me parece inocente essa referência e penso que ela vai constituir um caminho que irá, mais tarde ou mais cedo, desembocar em resultados muito concretos.
Fica esta pista. Há outras questões que ficam aí abertas, como por exemplo a do celibato dos sacerdotes. Um primeiro passo nesta questão, não poderia passar pelo desenvolvimento da experiência nas igrejas locais, por exemplo, alguma ou algumas conferências episcopais poderem avançar?
Por acaso, o tema em si é praticamente silenciado. De facto, há ali uma referência simpática às igrejas orientais, de rito oriental e padres celibatários ou casados, o que significa que o assunto é assumido como natural e perfeitamente normal. Mas depois o assunto não é trabalhado. É sim trabalhado com bastante profundidade a proposta de uma reorganização, diríamos, da descentralização.
E isso aí parece-me muito significativo. Acho que é capaz de ser dos pontos em que mais se avançou, dos pontos em que, eventualmente, o Direito Canónico será chamado a fazer alterações significativas e o peso das Conferências Episcopais e, eventualmente, da conjugação das conferências em zonas continentais poderá levar à delegação de certas decisões, nomeadamente as decisões disciplinares e, eventualmente, rituais mais litúrgicos para regiões do Ocidente, não precisando de uma decisão central homogénea, nesse nível, da parte de toda a Igreja Latina, que, na prática, tem sido isso que tem impedido certas decisões, nomeadamente a questão do celibato. Eu penso que a questão do celibato, se fosse abordada regionalmente, pelo menos por Continentes, eventualmente em alguns continentes a obrigação já não se existiria como tal. Acredito que essa transformação mais, diríamos, das estruturas globais de governo da Igreja possa vir a permitir decisões parciais que, depois, acabam por ter impacto nas outras regiões.
E esse foi, aliás, um aspeto abordado em conferência de imprensa, quando se sugeriu a transformação da linguagem relativamente à ideia de Igreja Universal e à sua relação com as várias comunidades locais. Há aqui uma transformação eclesiológica em curso?
Em certo sentido, sim, embora não com novidade total. Em rigor, esse tipo de organização já existe na organização por patriarcados, por exemplo, das igrejas orientais, católicas ou não. Do ponto de vista eclesiológico, diríamos que é mais a exceção, embora tenha durado muitos séculos a centralização do estilo latino, a vinculação a uma Igreja quase global da Igreja Católica Romana de rito latino, do que propriamente a diversidade de ritos e a diversidade de organização disciplinar, que é até mais tradicional e bastante mais antiga. Nesse sentido, considero que esta transformação eclesiológica é para a recuperação de uma tradição importante, que é a articulação da unidade na diversidade e não na uniformidade.
A confusão da uniformidade foi-se desenvolvendo ao longo dos séculos e nós acabámos por identificar a unidade da Igreja muito com a uniformidade e o controle central. Tem algumas vantagens, evita alguma fragmentação, que nomeadamente os nossos irmãos das igrejas não católicas, protestantes em geral, reconhecem e às vezes têm dificuldade de lidar com essa fragmentação, mas há um preço muito grande a pagar, que é a centralização e sobretudo, mesmo num processo sinodal, a dificuldade de chegar a consensos mínimos relativamente a alguns pontos, os quais claramente só serão solúveis nesta reorganização mais descentralizada da Igreja.
O Papa Francisco assumiu as conclusões da Assembleia Sinodal como suas, como Magistério Pontifício, e decidiu não escrever uma exortação pós-sinodal e enviar o texto votado pelos participantes no Sínodo à Igreja em todo o mundo. O que diz este gesto do Ministério Petrino?
Esse sim é um gesto inédito, tanto quanto sei, e é um gesto muito significativo. Em rigor, corresponde a um exercício do Ministério, do Magistério, neste caso, mas do próprio Ministério Papal, cuja infalibilidade é uma infalibilidade a partir de baixo, a partir de toda a população. Na prática, a partir dos “census fidelium”, eventualmente consensos, mesmo que não seja total, de todos os fiéis. Nesse sentido, tem uma base teológica muito forte, pode ter até um impacto no próprio paradigma da noção de poder e até de governo, que não é propriamente hierárquico, de cima para baixo, mas é constituído por delegação, e em alguns casos nem sequer por delegação, ou seja, de forma muito sinodal, de baixo para cima, o que dá ao povo de Deus um estatuto de Magistério e não a um grupo de especialistas, muito menos de especialistas ordenados, não reserva a esse grupo esse estatuto. Não é um poder magisterial direto, é um poder magisterial confirmado pela figura da Unidade, pela figura do Papa. Mas essa confirmação, em rigor, assume a conclusão do processo sinodal. A própria Igreja, nos contextos em que vivemos hoje, já se sentia relativamente mal com o facto de reunir, na ocasião eram sobretudo bispos, os representantes de todo o povo de Deus, que fazem um documento, ou uma proposta de documento, e depois o documento ser exarado a partir de uma espécie de poder absoluto papal.
Acho que o Papa Francisco interpretou muito bem o sentimento eclesial e esse gesto é um gesto claro de superação de uma matriz que, em rigor, já não se adequava, não digo aos nossos tempos, à nossa forma mesmo eclesial de ver as coisas.
Pessoalmente, espero que o gesto se mantenha: que nunca mais depois de um sínodo, um Papa vai fazer um documento diferente daquele que o sínodo produziu.
E muitos outros pontos e temas poderíamos analisar com mais detalhe, ficará para uma próxima oportunidade, isto porque queremos também falar do futuro… E uma ideia que praticamente todos os participantes no Sínodo quiseram passar foi a de que o ‘Sínodo começa agora’. Será que os crentes vão entender esta mensagem, a mensagem de que, como alguém também já disse, que acabou o sínodo, começa a sinodalidade?
Isso é verdade. Já começou um pouco antes, na prática, mas todo o documento é orientado para isso, é orientado para uma nova forma de vivermos a Igreja.
Não podemos esconder uma coisa: isso vai depender muito das lideranças eclesiais, quer queiramos, quer não. Se as lideranças eclesiais não derem corpo a todas as propostas, sugestões, indicações, e algumas quase de caráter obrigatório, de implementação de regimes sinodais, passo a expressão, na vida das comunidades, desde as pequenas paróquias, pequenos grupos, até a organização das dioceses, supra diocesana, etc. nomeadamente questões de prestar contas, questões de controle, questões de transparência, precisamente para evitar todo o tipo de abusos de poder… Se as lideranças eclesiais não derem corpo a isto muito concreto, localmente, isto poderá dentro de algum tempo estar completamente esquecido e uma nova tentativa de sinodalidade não vai ter o efeito que teve esta. Mas eu acredito firmemente que as diversas lideranças eclesiais vão claramente dar corpo a isto, de forma até institucionalizada, porque aquilo que vai ficar para o futuro não é a mera boa vontade de alguns, será aquilo que vamos conseguir fazer passar para estruturas institucionalizadas e que salvaguardem a justiça e a participação de todos os fiéis.
A receção das conclusões do Concílio Vaticano II permanece em processo, 60 anos depois. O que é que podemos esperar do acolhimento das decisões de 3 anos deste processo sinodal, que resulta num documento muito aberto, desafiando a reflexão em cada comunidade local?
Os tempos são outros, apesar de tudo. Eu acho que o tempo de receção e aplicação será mais breve. O estilo do documento também é um pouco diferente, é muito orientado para certos pontos da dinâmica das comunidades eclesiais e, nesse sentido, até de mais fácil aplicação.
Temos um exemplo no Concílio Vaticano II: o documento de mais fácil aplicação, até certo ponto pelo menos, era o documento sobre a Liturgia. E, de facto, teve a aplicação quase imediata, as transformações foram notórias logo de seguida, depois com todas as dinâmicas mais radicais ou menos radicais. Eu acredito que o impulso sinodal vai continuar e, portanto, a receção nas comunidades vai ser sem interrupção. E os pontos que ficaram em estudo vão ser reclamados.
Uma proposta, uma sugestão para a Igreja Católica em Portugal, a partir deste trabalho sinodal e deste documento final?
Há questões muito concretas: a questão da transparência e a questão da prestação de contas, desde as paróquias às dioceses, é algo que tem de entrar na nossa dinâmica quotidiana. A questão da organização justa mesmo das instituições eclesiais, nomeadamente daquelas que têm empregados – nós temos muitos centros sociais, nós temos escolas, nós temos várias coisas – o controle da justiça relativamente a todos os que trabalham na Igreja é algo que tem de ser implementado de imediato e com muito cuidado. Depois, os órgãos de consulta, de ajuda na decisão, de participação na decisão, quer a nível diocesano, onde eles já estão mais ou menos implementados, mas sobretudo a nível paroquial, concretamente os conselhos pastorais paroquiais, é algo que tem de ser imediatamente implementado. Transformar a Conferência Episcopal Portuguesa, se for esse o caso, num órgão com capacidade de decisão para as diversas dioceses em Portugal, com um mais impacto prático na vida dessas dioceses, na medida em que, em última instância, cada diocese faz o que quer relativamente às decisões da Conferência Episcopal, também é outro aspeto. Mas aí até pode haver alterações no Direito Canónico relativamente ao estatuto, até legislativo da própria Conferência Episcopal.