Responsável pela Pastoral Social da Igreja Católica diz que há regras claras para as instituições prestarem contas do que recebem e garante que é isso que já estão a fazer.
Em entrevista à Renascença e à Agência ECCLESIA, D. José Traquina considera a sustentabilidade das IPSS “um problema gravíssimo” em Portugal e apela à participação no peditório da Cáritas, que está a decorrer. O presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana, da Conferência Episcopal Portuguesa, refere-se também à necessidade de alargar a ajuda a Moçambique, por causa das cheias, e afirma que o drama da violência doméstica vai ser analisado pelos bispos de Portugal na próxima assembleia plenária.
Ângela Roque (Renascença), Paulo Rocha (Ecclesia)
Joana Gonçalves (imagem)
Estamos na Semana Nacional da Cáritas, cujo ponto alto é o Peditório Público, que está a decorrer por estes dias. É importante os portugueses participarem?
É muito importante, por duas razões: primeiro porque é necessário ajudar quem precisa, segundo porque aumenta a qualidade dos próprios portugueses que ajudam. A pessoa quando dá, quando ajuda, tem a ganhar com isso, na sua qualidade, generosidade, capacidade de interpretar as situações de carência. E uma possibilidade de colaborar com aqueles que necessitam é através deste peditório nacional.
Receia que os portugueses possam estar menos solidários, tendo em conta as polémicas que houve com as ajudas depois dos incêndios de 2017?
Houve algumas observações e é bom que haja observações quando existem dificuldades de transparência. A Cáritas tem todo o interesse em fazer os esclarecimentos necessários e não pôr em causa a credibilidade de que goza em Portugal. No que diz respeito ao peditório, ele é fundamental porque, para as próprias Cáritas diocesanas, como é o caso da minha diocese de Santarém, reverte mesmo para as Cáritas paroquiais que estão no terreno. Portanto é um peditório importante.
Mas, deixe-me sublinhar a importância pessoal de quem dá. Nós precisamos de cultivar na sociedade portuguesa a dimensão da solidariedade, porque na sociedade portuguesa, como na sociedade na Europa, estamos muito marcados pela dimensão da competitividade – competir, competir – , e a certa altura esquecemo-nos que nem toda a gente tem capacidade de competir. No próprio desenvolvimento tecnológico, há pessoas que não conseguem entrar nessa na evolução e ficam para trás. Mas, são pessoas e essas pessoas precisam de ajuda. Portanto, nós partilhamos saber, partilhamos aquilo que podemos e temos de ter em conta que há pessoas de outra idade, com outras dificuldades, que não têm as mesmas capacidade de ganhar, de ter rendimentos como seria desejável.
Hoje há diretrizes, nacionais e europeias, nomeadamente na questão da transparência. Como presidente da Comissão Episcopal que acompanha este setor, que indicações são dadas a quem está no terreno para que se cultive essa transparência e para que se possam afastar de vez dúvidas sobre os destinos dos bens recolhidos e dos donativos?
A Cáritas Europeia tem, sobre esta matéria, princípios e diretrizes muito claras. As Cáritas têm de fazer fiscalização, é obrigatória a auditoria. Se as Cáritas não fizerem isso, a própria Cáritas Europeia promove ela mesma a auditoria a essas contas.
E isso vai acontecendo em Portugal?
Tem que acontecer, é uma diretriz.
E essa garantia tem que ser dada aos portugueses, não é?
Isto é transversal e é global. A transparência é, digamos, o preço da credibilidade, e tem de haver.
Isso aconteceu com os peditórios para os incêndios de 2017 nas Cáritas diocesanas envolvidas?
Já este ano, em Fevereiro, a Cáritas de Coimbra apresentou um relatório com tudo o que fez. Quem quiser pode consultar e é transparente em relação àquilo que a Cáritas fez. E não houve protestos das pessoas em causa, das construções, das empresas que foram reabilitadas, dos empresários agrícolas que tiveram apoio para as suas terras, para as suas máquinas agrícolas. Enfim, tudo foi referenciado, sinalizado, cumprido e está praticamente concluída a ajuda no que diz respeito à Cáritas de Coimbra.
A Cáritas portuguesa, as Cáritas Diocesanas, as Cáritas paroquiais, continuam a ter um papel muito importante no país, pela proximidade que têm das populações?
Sim! Sobretudo nas situações de emergência, as Cáritas têm um papel muito importante e têm essa tradição. E fazem-no bem, temos essa credibilidade. Nas comunidades, há outras respostas sociais. Mas no que diz respeito às emergências e à atenção aos pobres, às famílias e a situações isoladas que aparecem, como estrangeiros, a Cáritas tem aí um lugar muito importante como expressão da própria comunidade que recebe. Repare-se que não funciona com cooperações com a Segurança Social. Quer dizer, é mesmo dar aquilo que recebe: recebe da população e dá a quem precisa.
Ajudar Moçambique
Além dessa proximidade também dá resposta às emergências no caso de catástrofes internacionais, como se está a ver agora com Moçambique, em que houve uma resposta quase imediata da instituição.
Exatamente. Houve um sinal da instituição que foi dado logo nas primeiras cheias, a semana passada. A Cáritas Portuguesa avançou com um sinal de 25 mil euros dos seus fundos para responder de imediato e dar um sinal de boa vontade…
Uma ajuda de emergência…
Uma primeira ajuda. Mas, de repente surgiu aquela avalancha de água e estamos perante uma situação que requer uma outra resposta. Espero que na próxima segunda-feira consigamos dar algumas informações para a comunicação social daquilo que pretendemos fazer e os esclarecimentos que é preciso dar às populações, porque as pessoas vêm as imagens na televisão e estão a perguntar…
Querem ajudar?
Querem ajudar! E como é que vamos fazer? Temos programado na próxima segunda-feira poder fazer isso com mais segurança.
Haverá uma campanha autónoma, já depois desta Semana Nacional da Cáritas?
Sim, autónoma, depois desta Semana, para não estarmos a confundir as coisas. E sobretudo porque possibilita nestes dias pensar melhor as coisas. Há uma coisa que queremos nisto, é manter a credibilidade (junto) do povo português e do governo de Portugal. Quer dizer, aquilo que se fizer para Moçambique há de ter toda a transparência, sentido de cooperação com aqueles que necessitam, porque é esse o espírito. Isto não é uma empresa para ter lucros, não quer garantir o serviço, manter o serviço, mas ajudar as populações.
Qual é o papel da Cáritas entre as várias instituições que desenvolvem esse trabalho de solidariedade em Portugal, e muitas pertencem à Igreja, como IPSS’s, ou Sociedade de S. Vicente de Paulo?
O papel da Cáritas tem esta dimensão de proximidade, para responder aos pobres, a quem precisa. Mas, há diferenças de diocese para diocese.
Não é possível falar num papel de coordenação por parte da Cáritas neste setor social?
Não. A Cáritas Portuguesa tem coordenação naquilo que são as Cáritas diocesanas. Congrega, não coordena. Isto é, converge para que haja uma linguagem comum.
A Cáritas Portuguesa promove projetos, cuidados a fazer, ensinamentos que se podem desenvolver para bem das populações e depois as Cáritas diocesanas assumem esses projetos… Mas, respostas estruturais, nas comunidades, nem todas as Cáritas têm. Lisboa e Coimbra têm estruturas várias, mas isso noutras dioceses está mais com as Santas Casas da Misericórdia, com os Centros Sociais Paroquiais, IPSS’s. As dioceses têm configurações diferentes no sentido do apoio às populações. Agora, seja nas Cáritas, seja nos Centros Sociais Paroquiais, uma coisa me parece importante: desenvolver na população e nas comunidades, o princípio da solidariedade. Não podem uns paroquianos ou uma comunidade ter ali um Centro Social Paroquial e concluir que aquilo ou é do padre ou daqueles que estão lá a mandar ou da Segurança Social. Não, aquilo é nosso, aquilo é da comunidade, aquilo tem de ser expressão da comunidade. E para ser expressão da comunidade, eles têm que ter participação, nomeadamente também com a ajuda.
Pensar a sustentabilidade e reconfigurar as IPSS
Há necessidade de reconfigurar os Centros Sociais Paroquiais, tendo em conta que outras instituições, como as autarquias, estão a assumir valências até agora asseguradas por estas IPSS’s?
Há necessidade de reconfigurar porque as condições económicas e das populações se alteraram. Nós temos comunidades mais pequenas, paróquias do interior onde a população baixou, são menos pessoas.
E um Centro Social Paroquial deve existir para redistribuir fundos que vêm do Estado, que vêm da Segurança Social? Esse é um fim bastante para um Centro Social Paroquial?
Não, não é para receber fundos, é para assegurar que aquele serviço aconteça.
Mas, acontece com protocolos que estabelece com a Segurança Social.
Sim, a Segurança Social dá 40% para apoiar que determinado serviço funcione naquela terra, mas a instituição tem que assegurar 60% dos custos com o pessoal, com tudo, daí agora as dificuldades. Porque, se as pessoas têm fracos rendimentos e a população diminuiu, as instituições não conseguem arranjar os 60% para manter.
A sustentabilidade é uma grande preocupação da maioria das instituições de solidariedade social…
Neste momento é um problema gravíssimo em Portugal. Nós temos muitas instituições com resultados negativos ao final do ano.
E muitas delas dão resposta onde o Estado não chega. Ainda a semana passada a provincial das irmãs hospitaleiras dizia à Renascença que estão a fazer ‘omeletas sem ovos’ e o responsável pelo departamento sócio caritativo de Évora dizia-nos que a situação é muito grave, pior ainda do que no tempo da troika. Como Bispo responsável por esta área tem recebido essas informações?
Tenho algumas informações que são, de facto, preocupantes. Vemos gente de muito boa vontade, felizmente, nessas instituições, que só deixam mesmo à última, porque a sua força motivadora é a causa humana, é o amor às pessoas, e fazem-no com uma dedicação, com um carinho extremo.
É muito bonito que uma sociedade cuide dos seus doentes e dos seus deficientes. Porque uma sociedade não pode ser considerada desenvolvida se não cuida dos seus doentes e dos seus deficientes. Não é ter um desenvolvimento económico e estamos todos contentes! Tem que chegar a todos, têm que ser integrados também na sociedade esses apoios. É uma preocupação, de facto.
Como bispo responsável por esta área pode ter aqui alguma intervenção junto do Estado, fazer mais pressão para que haja sensibilidade para esta matéria?
Bem, a certa altura temos a impressão que o ser Igreja não é um mais na questão…
Não é uma vantagem, é uma desvantagem?
Às vezes parece uma desvantagem. Mas, reconheça-se que a nossa voz não é outra coisa se não corresponder àquilo em que nós acreditamos. Temos uma mensagem, essa mensagem é para bem da humanidade, celebramos aquilo que acreditamos e queremos testemunhar isso em gestos concretos. Se nos proibirem de fazer uma coisa, vamos fazer outra.
Uma coisa é certa: nós não vamos deixar nos interessar pela causa humana. Enquanto houver pessoas que precisem, nós queremos lá estar, os cristãos devem lá estar. Não é nós os bispos: são os cristãos que devem lá estar. A nossa preocupação, neste momento, é que todos os cristãos tenham esta marca: não podem participar numa Missa, ouvir o Evangelho e desinteressarem-se pelos problemas da sua terra ou da sua comunidade. Aquilo faz parte da problemática? Então faz parte de nós…
Violência doméstica: um problema mais largo que que se imagina
Na mensagem para a quaresma, que dirigiu à diocese de Santarém , fala na violência doméstica, na exploração humana e na escravatura. Que mudança cultural e de mentalidades é necessária para que estes casos sejam denunciados e a sociedade lhes possa pôr fim?
Este é um problema mais largo, mais vasto, do que aquilo que eu podia imaginar. Mas, de facto, temos números que são muito preocupantes. Em 2018 foram assassinadas 28 mulheres, mas os detidos foram 598. Quer dizer: o ambiente não é bom em muitas casas, em muitos lares e em muitas famílias. Além da violência doméstica entre homem e mulher, é uma violência familiar, porque atinge os avós, atinge as crianças. É uma violência em que, aquilo que é um lugar onde as pessoas, porventura, sonharam em ser felizes, se tornou num inferno. Isto é muito preocupante.
A Conferência Episcopal está a discutir este problema? Vai tomar iniciativas nesta área?
Estamos preocupados. Estou a falar com colegas meus, no sentido de promover mais observações e porventura um documento, no futuro. A minha mensagem para a Quaresma surgiu em cima do fogo: eu estava a escrever sobre fim do ano missionário e de repente aquilo estava a pegar muito comigo! E decidi: vou falar sobre isto…
Era preciso reagir?
Reagir de imediato àquela situação!
Haverá um documento para a próxima Assembleia Plenária dos Bispos, que vai decorrer no final de Abril?
Porventura! Não sei se vamos a tempo… Temos um outro assunto que mexe com esta questão, um documento sobre o casamento, o matrimónio. Ainda não o analisei, ainda não está apresentado no seu todo, para discussão na Assembleia (plenária da CEP), mas porventura virá a propósito este tema.
É possível que haja alguma recomendação aos padres para que estejam mais atentos a estas situações nas suas comunidades e possam ser interventivos no sentido de ajudar as eventuais vítimas?
Sim! E já são. Repare: temos o ministério da confissão e do acolhimento nas paróquias. Nos santuários e igrejas todos os dias se confessam pessoas e entre essas pessoas há as que vão desabafar uma dificuldade que não querem contar a ninguém, mas sabem que o padre tem o dever de confidencialidade e contam. São momentos de grande ajuda que a Igreja faz através de um sacramento que é o da confissão.
E há possibilidade de, a partir desses encontros, o problema ter alguma resolução, sem quebrar a confidencialidade?
A pessoa fica fortalecida. Há pessoas que conseguem rever a sua situação. Uma discussão é sempre entre duas pessoas. Se houver uma que tome uma atitude diferente, pode ter outro rumo. Agora, quando nem uma nem outra quer baixar as armas, pode extremar-se. Mas, às vezes a pessoa fala com alguém que a aconselha a ter um procedimento diferente e vai agir num outro registo e acaba por ter uma saída diferente.
Bispo da Diocese de Santarém
É Bispo titular da Diocese de Santarém deste final 2017. Que balanço faz?
É uma missão com mais responsabilidade. Sou o único bispo da diocese e todos os acontecimentos, em termos de programação pastoral e coordenação, passam pelo bispo. Uma coisa é certa: gosto de funcionar em equipa e segundo o princípio da sinodalidade. É uma coisa que eu gosto de fazer, em pastoral sempre me habituei a fazer e estou nesse registo.
No ano 2025 a diocese faz 50 anos e estou neste momento a projetar-me neste sentido de propôr à Diocese… e isto era segredo…
Agora deixou de ser…
Deixou de ser… Mas, esta semana vou ter outra reunião, já tive algumas, onde este assunto é tema, a ver se conseguimos fazer alguma projeção para os próximos anos…
Um Sínodo diocesano?
Não vamos por aí. É uma diocese pequena, não estamos a pensar em ir por aí. Mas pensar as coisas pelo menos em termos de concertação dos anos, de fazer uma caminhada em algumas áreas da pastoral.