Professor Catedrático da Faculdade de Teologia da Universidade Católica espera que o próximo Papa seja «tendencialmente mais jovem», promova um pontificado de continuidade, com «impacto mais forte também nas estruturas»
Na entrevista conjunta à Agência ECCLESIA e à Renascença, o investigador do Centro de Investigação em Teologia e Estudos de Religião (CITER), da UCP, aponta para um Conclave imprevisível.

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Paulo Rocha (Ecclesia)
A partir do dia 7 de maio, 53 cardeais europeus, 37 americanos, 16 da América do Norte, 4 da América Central e 17 da América do Sul, mais 23 asiáticos, 18 africanos e 4 da Oceânia, reúnem-se em conclave. Podemos dizer que estamos perante o mais imprevisível Conclave da história?
Num certo sentido sim. Tendo em conta a variedade da proveniência dos cardeais, eu acho que sim. Não sei se, do ponto de vista dos eventuais elegíveis, será assim tão imprevisível.
E prevê um Conclave mais longo por causa do desconhecimento que possa existir entre os diferentes cardeais?
Fracamente não sei. Eu acho que há sempre surpresas, como é evidente, mas dentro das previsões dos que possam ser elegíveis, eles são suficientemente conhecidos e são suficientemente conhecidos por todos. Portanto, não sei! Nem sequer sei se a variedade de perspetivas neste Conclave é superior à variedade de perspetivas noutros Conclaves anteriores. Desconfio que até talvez não seja.
Teremos, por certo, mais países representados?
Isso sim.
E acredita, professor João Duque, que é importante a geografia de proveniência do próximo Papa? Poderemos ter o primeiro da Ásia ou o primeiro da África?
Poderia ser significativo. Eu penso que a abertura que se deu com o Papa Francisco, de não ser um Papa europeu, sobretudo um Papa do sistema, num certo sentido, que já antes tinha acontecido na rutura de um Papa italiano, ou na transição de um Papa italiano, mais do sistema, com João Paulo II, é algo significativo. Não sei se neste momento é questão essencial… Francamente parece-me que, no rumo que a Igreja tomou nos últimos tempos e no papel do Papado, no papel da figura do Papa internacionalmente considerado, mesmo para além do âmbito da Igreja, não sei se essa questão é neste momento muito significativa. Eu pessoalmente penso que não.
É importante garantir a relevância da Igreja Católica na atualidade e, desse ponto de vista, que perfil é necessário para os tempos de hoje?
Terá que ser um perfil, antes de mais, suficientemente carismático. E isso certamente reduzirá bastante os candidatos porque, quer queiramos quer não, os últimos três Papas, independentemente podermos discutir a questão do carisma de Bento XVI, mas os últimos três Papas desempenharam uma função importante do ponto de vista social, do ponto de vista global, até do ponto de vista político internacional, muito para além da questão direta do governo da Igreja. Isso é indiscutível, e nesse sentido diríamos que prevê-se e espera-se que seja um Papa com essa capacidade. Caso contrário, há um certo papel de liderança da Igreja Católica, do ponto de vista espiritual, do ponto de vista de orientação do conjunto da humanidade, independentemente depois da pertença à Igreja ou não pertença à Igreja, que é uma tarefa que tem sido bastante colada à figura do Papa, que poderia desaparecer caso o Papa escolhido não tivesse esse carisma.
O conjunto dos cardeais eleitores herda um legado desafiante. Sendo a maioria já escolhida por Francisco, é possível prever-se uma decisão de continuidade na sua opinião?
Tendencialmente acho que sim. Não quer dizer que se nós analisarmos caso a caso aqueles que Francisco escolheu, também não são necessariamente todos absolutamente fieis a todos os aspetos do Papa Francisco. Eu acho que ele teve também a capacidade de escolher alguma variedade. É certo que talvez um certo perfil que tradicionalmente se considera como ultraconservador não existiu nas escolhas de Francisco. Portanto, o peso de uma perspetiva nesse sentido é um peso diminuto no Conclave atual.
E até que ponto o contexto internacional – guerras, tensões políticas – podem condicionar o conclave? Por exemplo, numa entrevista recente à Renascença, um dos biógrafos de Francisco, Austin Ivereight, disse que na escolha do próximo Papa muitos cardeais vão estar preocupados com o colapso da ordem mundial…
Isso pode ser significativo! Atrever-me-ia até a dizer que a presença do hemisfério norte pode voltar a ter mais relevância, uma vez que a crise forte que estamos a atravessar do ponto de vista político está a afetar sobretudo um certo paradigma que nos habituamos a ter como seguro, no hemisfério norte. E, nesse sentido, eu não sei se alguém mais ligado à diplomacia do contexto europeu, europeu/norte-americano, europeu mais estendido até a Ásia, mas a Ásia aqui mais do norte, eventualmente não venha a ter um papel importante nesta dinâmica, tanto quanto possa ter, do ponto de vista diplomático e orientador espiritual. Talvez, neste momento, isso seja mais significativo do que o problema do sul, do hemisfério sul e das características do hemisfério sul.
Ao longo dos últimos dias, muito se falou do legado de Francisco e dos desafios que se colocam à Igreja Católica. O Papa Francisco insistiu na defesa de uma Igreja para todos, mas deixou temas em aberto, desde logo, o processo sinodal é ainda um caminho a percorrer. Receia que possa, eventualmente, ser interrompido, ou é um processo irreversível?
Eu, francamente, acredito, estou convencido que é um processo irreversível. Posso ser demasiado otimista quanto a isso, otimista no sentido em que me identifico, evidentemente, com esse caminho. Também não acredito que a figura única do Papa, de um Papa, possa neste momento interromper esse processo. Pode introduzir um certo processo, eventualmente, no Vaticano, que afrouxe, ou pelo menos trave, o processo sinodal, mas o processo sinodal está introduzido já em estruturas suficientes. Aliás, o Papa Francisco, como bom estratega, encarregou-se de deixar estruturas suficientes, e até indicações suficientes, para que o processo siga por si, mesmo que o Papa possa não ser extraordinariamente simpatizante dele. E nesse sentido acredito que, aliás, é o que deverá acontecer relativamente ao futuro: há um perfil diferente de Igreja, independentemente das tendências do Papa. Os efeitos do Concílio Vaticano II são efeitos que resistiram à variedade dos Papas que vieram posteriormente.
Ainda dentro desta questão, deixe-me perguntar-lhe se o Conclave é um método clerical contrário à metodologia sinodal?
Relativamente. Todas as democracias… E eu não me estranha em considerar, em alguns aspetos, a Igreja uma democracia. A eleição do Papa é um caso desses, é uma eleição, não é por herança, muito menos por herança familiar. Portanto, não é uma monarquia hereditária de modo nenhum, é uma escolha democrática.
As escolhas democráticas precisam sempre de mecanismos de representação. É impossível ter toda a população envolvida diretamente, e os mecanismos de representação… É representação através do corpo cardinalício, que são, em rigor, os representantes da Igreja Católica por todo o mundo. Nesse sentido, em rigor, é um processo sinodal que já vinha anteriormente, diferente, por exemplo, da escolha dos bispos que, aí sim, temos de admitir, o processo sinodal é bastante reduzido.
Mas, por exemplo, nas congregações gerais que decorrem até ao Conclave: não poderia ser expectável que o processo sinodal motivasse a presença de outros elementos que não só os cardeais?
Isso é um processo que, certamente poderá vir a ter efeitos no próximo Conclave, talvez. Aqui houve aquele episódio, que eu não cheguei a perceber bem se era um episódio de propósito, se foi engano, da colocação da Prefeita da Congregação, ou do Dicastério, também nessas congregações. Portanto, pode ser um indício de um futuro, de um futuro de preparação do corpo dos cardeais, que não inclua exclusivamente os cardeais. Outra questão mais vasta, e que também não é previsível, é a de que os cardeais não sejam exclusivamente clérigos. Algo que é possível do ponto de vista jurídico, mas que não tem sido praticado nos últimos séculos. Mas pode vir, eventualmente, a acontecer… Ou seja, que a Prefeita de um Dicastério seja também nomeada cardeal.
Ficou, de facto, célebre a expressão “todos, todos, todos”, da JMJ Lisboa 2023, contudo há uma mensagem central – a mensagem da misericórdia – que também não pode ser descurada? O “todos, todos, todos”, não é o mesmo que “tudo, tudo, tudo” ou é?
Sim, claramente! Eu acho, e o Papa Francisco deixou isso claro logo no regresso, quando lhe colocaram essa questão, que uma questão é a defesa de princípios fundamentais, nomeadamente da dignidade humana, nomeadamente da justiça, o que significa que nem tudo é igual, a justiça não é igual à injustiça, o amor não é igual ao ódio. Ou seja, há questões fundamentais e, portanto, as práticas dos sujeitos concretos que vão nesse sentido não significa que tudo vale. Outra questão é, em princípio, a Igreja está aberta a todos. Aliás, há umas circunstâncias muito próprias em que o cerne da própria Igreja, que é a Eucaristia: na prática está aberta a todos, ninguém faz fiscalização à entrada das Igrejas para participar na Missa ou na Eucaristia, em rigor. Este é já o princípio de que não há fiscalização de comportamentos, não há fiscalização de origens para essa pertença… Isso não significa que não haja necessidade de deixar claro que os comportamentos humanos podem ser perversos e é preciso participar na denúncia desses comportamentos perversos.
E que respostas espera para questões que permanecem acima da mesa, como o abuso de menores, a ordenação de mulheres ou a ordenação de homens casados?
A questão do abuso de menores, penso que está mais do que assumida! Não quer dizer que esteja mais do que resolvida, mas está mais do que assumido, que é um capítulo inquestionável. E isso já nos Papas anteriores, sobretudo já com Bento XVI, acho que é claro que, independentemente das tendências, é uma questão indiscutível no interior da Igreja.
A resolver, não é?
Exato, a resolver! E isso significa a alteração de estruturas que tendencialmente impossibilitem que isso aconteça. Não quer dizer que impossibilitem sempre plenamente, haverá sempre falhas, mas que tendam a impossibilitar que isso aconteça. E isso é o trabalho que se está a fazer do ponto de vista, por exemplo, da superação do clericalismo e do processo sinodal.
Outra questão, evidentemente que é uma questão séria, é a questão da participação da mulher na Igreja, as configurações dessa participação. E esse é um caminho que está a ser muito intenso neste momento, e que em certa medida está a marcar o próprio processo sinodal, não quer dizer que o processo sinodal se reduza a isso, mas esse será certamente um campo a desenvolver. Aí sim, se o perfil do Papa for um perfil que não tenha esse assunto muito no coração, ele poderá de facto parar bastante.
Também temos que admitir que com o Papa Francisco houve aberturas nesse sentido, mas também não se avançou propriamente muito, do ponto de vista estrutural. Mas pode vir um Papa, por exemplo, que seja mais sensível a alterações estruturais nessa componente. Não digo que isso seja a questão essencial do mundo e da Igreja neste momento, mas não deixa de ser uma questão muito significativa.
Ou seja, os temas da agenda do Papa Francisco vão continuar de alguma forma a desafiar a Igreja?
Não há forma de que assim não seja, porque são temas desafiantes para o conjunto da humanidade. Se assim não for, de facto, é pena que assim não seja… Significa que iremos atravessar alguns anos de autorreferência da própria Igreja, tentando colocar de lado alguns temas e alguns assuntos. Esses assuntos já eram anteriores ao Papa Francisco. O Papa Francisco acolheu-os na sua agenda, que os últimos Papas não tinham acolhido de forma tão clara, mas estes assuntos são assuntos que, quer eclesialmente, quer do ponto de vista da humanidade, são assuntos já prementes anteriormente.
Francisco deixa uma imagem muito positiva, quer no interior da Igreja, quer na sociedade em geral. Isso pode de alguma forma ajudar no caminho a definir pelo próximo Papa?
Eu penso que sim. O denominado consenso mundano que nos orienta, aponta para aí, mas a verdade das coisas tem sempre alguma ligação a um senso comum, que dentro da Igreja corresponde ao “sensus fidelium”, ao sentido dos fiéis. E isso não pode nunca, nem é tradicional na Igreja, que seja descurado. Aliás, uma Igreja clerical que descure o “sensus fidelium” é uma novidade, em certa medida dentro da Igreja e é bastante recente. Tradicional na Igreja é a atenção permanente ao “sensus fidelium”, que neste caso diríamos que pode ser um sensus fidelium, um sentido da humanidade, mesmo para além dos muros da Igreja. Portanto, este acolhimento não tem a ver com estratégias simplesmente comunicativas ou de marketing do próprio Papa. Poderia ser… Mas tem a ver com o impacto que teve naquilo que é o senso comum que corresponde a uma certa sensibilidade para a verdade que a multidão, a população no conjunto acaba por ter. Isso é um indício muito significativo. Aliás, na tradição teológica, esse é precisamente o grande indício do Espírito Santo.
E para terminar, teríamos de colocar esta questão: o professor João Duque tem um cardeal favorito, alguém que desejasse ter como Papa, ou considera que é de facto uma eleição muito imprevisível?
Imprevisível é, certamente, deveríamos dizer. Evidentemente que eu conheço alguns melhor que outros, acho que alguns têm algumas qualidades, mas depois poderiam ter problemas noutros campos e, nesse sentido, não tenho um favorito. Francamente, devo dizer mesmo, muito sinceramente, que não tenho! Ou seja: tenho alguns não favoritos. Há alguns que não gostaria que fossem.
Mas têm um perfil favorito?
Evidentemente, eu nunca escondi que pessoalmente gostaria que houvesse uma continuidade muito forte com o perfil do Papa Francisco… Que eventualmente tivesse outro estilo, isso terá de ter, certamente! Mas que houvesse uma continuidade muito forte, que eventualmente tivesse algum impacto mais forte também nas estruturas, isso sim. Eventualmente um cardeal mais jovem, que tivesse outra perspetiva da realidade, isso não escondo.
Agora, as pessoas concretas, nem todas preenchem as características todas. Portanto, é deixar que a surpresa nos invada.
Espero que, de facto, algumas figuras que ainda continuam no conclave, não sejam escolhidas! Isso também não escondo: espero que não sejam…