Entrevista: Coordenador das Capelanias Hospitalares afirma que é necessário «infundir esperança no mundo da saúde»

Padre Miguel Ângelo, diretor nacional da Pastoral da Saúde, rejeita um discurso pessimista sobre o setor, afirma que «é urgente» reorganizar serviços e convida à participação no Dia Mundial do Doente, a 11 de fevereiro, que tem por tema «A Esperança Não Engana»

O padre Miguel Ângelo é diretor da Comissão Nacional da Pastoral da Saúde e coordenador das Capelanias Hospitalares desde abril do ano passado, sendo Capelão, no Hospital de Braga, desde 2007.

Foto Renascença

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Paulo Rocha (Ecclesia)

A mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial do Doente aponta-nos à esperança, mas a realidade da saúde em Portugal, em várias situações, causa um certo desespero. Como lidar com estas realidades e como transmitir essa mensagem de esperança a quem sofre com a doença? 

É mesmo nessa linha, é nós sermos os promotores dessa esperança quando não a há. Podemos desanimar se olharmos só a fatores externos, a necessidades, a desafios, mas somos os primeiros a querer realmente que haja esperança.

E é muito interessante, na linha do Jubileu: infundir esta esperança no mundo da saúde, desde os que sofrem, os doentes, até aos que trabalham, certamente é muito importante para poder marcar uma era nova, viver um tempo novo, senão é tudo contra a maré.

 

Mas será esse um discurso que tem acolhimento, nomeadamente nos doentes, quando os tempos médios de espera nas urgências atingem um número de horas que a própria ministra da Saúde considera inaceitáveis? 

Eu tenho visto muitas realidades. Claro que quando se fala de vida, de cuidados que são mesmo urgentes, não é negociável, não deve ser, em qualquer aspeto. Mas estamos se calhar a pôr a fasquia muito alta, porque queremos sempre o melhor.  Se formos a ver outros países, por exemplo, nós estamos muito bem. Agora pede-se tudo; desde cuidados de saúde, desde medicamentos caros, tudo, e tem de haver também alguma razoabilidade.  Eu pareço político a falar…

 

Parece-me bastante otimista, relativamente à realidade…

Faz parte de mim ser otimista, mas a questão tem a ver com sermos sensatos e com os pés no chão, porque certamente os recursos não chegam para tudo. As questões da vida são inegociáveis, as questões importantes, haver estabilidade no trabalho, haver tudo isso, mas também teremos de ser sensatos na gestão desses recursos. E se virmos o que temos, temos muito e podemos agradecer esse muito que temos. Fez eco disso a senhora ministra quando foi agora os 45 anos do Sistema Nacional de Saúde, e se formos sérios a ver o que temos, penso que temos muito. Não é o suficiente, podemos ter mais, e é isso que queremos. Agora um discurso sempre pessimista, um discurso sempre que não temos, é um desespero que é o fim do mundo… Não, temos de ser realistas!

Mas temos na realidade, do dia-a-dia, o encerramento sucessivo de urgências hospitalares, nomeadamente de obstetrícia, que também são um indicador. É necessário repensar um modelo de assistência de emergência? 

Sim, tudo isso é necessário, porque temos outros desafios com populações que se reorientam. Falo por exemplo do caso de Braga: nós temos muita imigração agora brasileira, mesmo muita, e acontece noutras cidades. Tem de se repensar, tem de se repensar os serviços para poder responder adequadamente e atempadamente às situações.  Agora na questão de dar a esperança, de ver que é possível fazer melhor e dar uma nova luz, é este o sentido também do Papa quando, no fim da sua mensagem, atribuiu uma palavra muito especial, chamando-nos anjos de esperança, e podendo ser este ânimo e dizer que se pode fazer melhor. Podemos, porque temos alguém que nos disse que era possível, o próprio Deus.

 

Mas como descreve o contacto com as pessoas com quem se cruza, nomeadamente no ambiente hospitalar, e que se deparam com estas dificuldades? 

Claro que entrar numa urgência às vezes não é agradável, com muita espera, com muita solicitação, mas a minha ação é mais na proximidade: às vezes, ouvir os desabafos, poder ser, como eu digo, a embraiagem, ou seja, as pessoas poderem ter um sítio, um local, um momento assim em que possam dizer o que sentem, dizer às vezes o que nem sabem dizer, poder estar em silêncio, são espaços diferentes. Portanto, eu não estou na situação da medicação, nem do diagnóstico, nem da resolução de problemas organizacionais, mas estou com as pessoas, e a ouvir, a atender e a acompanhar.

 

E certamente que houve alguns desabafos, nomeadamente no que diz respeito à demora no atendimento?

Sim, mas a nossa função é de assistência mais ao nível espiritual. Claro que temos gabinetes de atendimento diferentes, mas é mais um nível espiritual, questões de sentido de vida, questões de familiares, culpabilidades, situações de porquê, porquê a mim, porquê agora, porque é que aconteceu isto? A nossa área é diferente. Não estamos demitidos e participamos na vida organizacional, mas a nossa área específica é a área espiritual. Em Braga ainda mais (certamente que noutros ambientes do país), muito a nível da resposta católica, porque temos muita mais solicitação, muitas mais solicitações católicas de sacramentos.

 

Não acha, padre Miguel, que tardam medidas estruturais para que se possa gerar mais confiança no sistema nacional de saúde? 

O país é muito diferente. Falar de continente e ilhas é diferente, falar de interior e de litoral é diferente, falar de Lisboa, Coimbra, Porto e Braga é muito diferente de falar de interior. Por exemplo, eu em Braga tenho condições melhores do que em muitos outros locais. Em Braga temos um hospital novo. Não é tudo perfeito, e por exemplo estamos sempre a ouvir reclamar de mais espaço, mas se formos a comparar com outras situações estamos muito melhor.

Por isso tenho contactado com muitas realidades. Agora, responder se é urgente, claro que é urgente, e certamente que estão a trabalhar nesse sentido, de poder reorganizar, de poder fazer hospitais novos, de poder fazer respostas novas.

Esta reorganização com as ULS (Unidades de Saúde Local) é nesse sentido, de podermos ter uma resposta mais integrada.

 

No contacto que tem com a realidade, constata que de facto o grande problema está ao nível dos recursos humanos, da falta de recursos humanos? 

Dizem-nos que temos, por exemplo, médicos suficientes.

 

Estão mal distribuídos? 

Temos incentivos diferentes. Trabalhar muitas horas, trabalhar, se calhar, menos remunerados do que no privado, claro que não é incentivo. Falámos de médicos, mas podemos falar de outros profissionais.  Se eu encontro uma situação melhor, com mais condições, claro que vou escolher melhor para a minha vida. E é nesse sentido que se pode repensar incentivos. Estamos a entrar por este tipo de linha, mas não é propriamente a minha competência. Agora, também acredito que quem é médico por vocação, muitas vezes não está a olhar para isso. Só que temos essa grande diferença, até das gerações de médicos mais novos e mais velhos. Temos diferentes situações no país, pois é muito diferente estar sozinho numa equipa pequena no interior do que ter todos os recursos num hospital grande, por exemplo.

 

O Padre Miguel Ângelo provavelmente, já se deparou com o problema dos chamados internamentos sociais, porque é outro dos graves problemas que o país tem vivido. Em 2024 eles voltaram a aumentar, em março havia 2160 doentes internados por razões inapropriadas. A solução para este problema passa por haver mais camas em cuidados continuados? 

De facto, eles não têm para onde ir. Eu acho que tem que se repensar também, por exemplo, a assistência domiciliária e sobretudo em lares. Não é a minha área, mais uma vez repito, mas pela minha visão, já fui pároco, tenho o contacto num hospital… Se o doente não tiver para onde ir, nós temos cada vez mais pessoas sozinhas e sem retaguarda familiar. Se precisam realmente de cuidados não podem ser abandonados.

 

E não ter para onde ir é dramático?

Eu acompanho várias pessoas, e estou a recordar-me de uma, concretamente, que já está há quase três meses no hospital, porque não tem para onde ir. Pessoas solteiras, pessoas que não têm realmente retaguarda nenhuma em casa às vezes alugada, também não têm condições…. o que vão fazer? E isso sim, em política social, é necessário, porque, não sei como é nas grandes cidades, mas se eu quiser, com uma reforma de 600, 700 euros, 1000, em Braga, e nos arredores, ter acesso a um lar, chega aos 2 mil euros de mensalidade.

Não sei como é noutros sítios,  mas em Braga anda por aí, pelos 2 mil euros. Eu notei o aumento, sobretudo nos últimos dois anos.  Porque muita gente me pede ajuda para encontrar uma solução, e realmente, há três ou quatro teríamos respostas por 700, ou 800 euros;  e agora o custo  está nos 1900.  E repare que há quatro ou cinco anos, se um lar custasse 1200 euros era considerado um luxo. Portanto, é importante ver essa situação.

 

Acredito que será preocupante também a questão do acesso aos cuidados paliativos.  A Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos lembra que só uma em cada 10 crianças tem acesso, por exemplo a este acompanhamento em fim de vida. No total dos doentes, mais de 70% continua sem acesso a este tipo de apoio clínico. O que fazer, na sua opinião? 

Nós muitas vezes queremos fazer omelete sem ovos. Para vir dinheiro para algum lado, ele tem que sair de outro lado. Estou a lembrar-me de um discurso famoso da Thatcher (antiga primeira-ministra britânica) que dizia: “Somos nós que temos de pagar”. Pareço quase economista ou político e não sou.

Não tenho respostas para isso, imediatas, e quem tiver, penso que talvez mereça um Nobel, um prémio social ou económico. Mas nós temos que repensar a longo tempo. Com muito respeito pela classe, nós muitas vezes somos bombeiros, estamos a socorrer isto e a socorrer aquilo e penso que temos que pensar a longo prazo.

Fala-se às vezes de pactos sociais, e não podemos mudar uma política só com um ano. Se chega ao poder um outro partido, num ano, aparece tudo diferente. Se queremos construir alguma coisa duradoura, terá que ser uma política duradoura.

 

Mas esta realidade não é de agora, a falta de cuidados paliativos em Portugal não é uma realidade de agora. É necessário esse pacto para que se avance nesta matéria?

Para começar não é necessário, mas para continuar sim. É necessário que, até como sociedade, digamos quais são as nossas prioridades. E se é uma prioridade, investimos nisso. E se investimos também temos de pensar de onde vem o dinheiro. Não quero fugir só para este tema do dinheiro, mas isso não é o prioritário. O prioritário, realmente seria encontrar a visão do que queremos e depois dar os passos para lá chegar. Eu não quero que se cortem as árvores para fazer os navios, como disse o poeta. Falem-me de outro mundo, falem-me da visão. Depois vai-se arranjar meios, vai-se cortar as árvores e construir os navios para lá chegar.

 

Avancemos para a sua opinião sobre a lei de eutanásia, aprovada pelo Parlamento, mas ainda não foi regulamentada, quando se aguarda que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre dois pedidos de fiscalização sucessiva a este diploma. Considera que o atual quadro parlamentar deveria voltar a analisar o diploma?

Se me perguntam sobre a lei, é claro que primeiro está a vida, é um dom. A grande dificuldade da sociedade de hoje é que encara a vida como um direito, e a vida não é um direito, é um dom. É uma afirmação de fé que nós fazemos, seguindo este acolhimento que fazemos de Deus criador, e às vezes, até como sociedade (eu vou dizer isto com todo respeito), parece que temos vergonha dos nossos valores, daquilo em que acreditamos, como fomos construídos. E é este dom que nós podemos, devemos acolher e agradecer, cuidar. E ao cuidar, temos de ver realmente a situação na sua globalidade.

Há situações, sistemas de sofrimento, sim, mas é preciso, por exemplo, ver um acompanhamento da dor. Não temos, muitas vezes, e, por isso, as pessoas caem nessa dor extrema, nessa dor total.

E do outro lado, também ver e perceber a questão da distanásia. Às vezes prolongamos a vida e estamos a desculpar-nos com a eutanásia quando estamos a exercer distanásia. Já acompanhei várias pessoas que decidiram, por exemplo, não querer um tratamento, ponto final. E preparam tudo, e o médico diz, friamente, “vai viver 15 dias”… Num caso concreto, chegou a nove, mas é assumido! Isto não é eutanásia. A pessoa, não teve dor, estava bem acompanhada. Isso é o que precisamos.

A questão política tem de enquadrar: a regulamentação, respeitando outras opiniões. Estamos numa democracia, teremos de respeitar, e temos muitas outras associações, não estamos sozinhos como Igreja. Nós temos a Federação pela Vida, por exemplo, do início ao fim! Isto não é confessional, é uma questão humana, ética, de vida.

 

Falando agora da assistência espiritual e religiosa em ambiente hospitalar em Portugal, que contributo é dado pela dimensão religiosa ao cuidado do doente?

A assistência religiosa acompanha… O contributo é poder dar tempo, dar, se for necessário, silêncio, dar a mão, estar presente… O Papa falava na sua mensagem do encontro com a pessoa, pessoa a pessoa. Não é propriamente aquela visita rápida, muitas vezes pode demorar dias e muitos dias… Primeiro um encontro, pessoa a pessoa. Depois abre-se, e, voltando à mensagem, nova esperança para que, mesmo no sofrimento encontremos sentido. Isto não é propriamente nenhuma espiritualidade, já estamos no campo da psicologia, dos grandes estudos de Viktor Frankl, dizer que um homem sem sentido também deixa de querer viver e é nessa orientação que nós acompanhamos.

Depois, em questões práticas, temos como coordenação dos SAIERS, o Serviço de Assistência Espiritual e Religiosa, temos a coordenação de que todos os doentes tenham garantido este direito de viver a sua fé.

 

Independentemente da confissão religiosa a que pertençam?

Isso mesmo…  Não é religião A, B ou C que faz isto ou aquilo. É o doente que pode viver a sua fé, com toda a sua liberdade constitucional que tem. Depois, quando pedido, no caso prático nosso, quando há solicitação, reencaminhamos. Temos contactos de várias religiões, se for o caso, ou nós também respondemos. Podemos ter três níveis de resposta: muitas vezes começam num simples contacto humano, espiritual; depois podemos ter já um nível mais cristão, desde evangelização, de esclarecimento de dúvidas (aquelas questões “o que é que acontece depois da morte”, “o que é que Deus espera de mim”, esses tipos de questões), e depois, se pedido e se for conveniente, também a parte sacramental, que pode ser a Santa Unção, que é o sacramento na doença, mas também pode ser um casamento ou um batizado.

 

E é fácil operacionalizar essas respostas? Acredito que para os serviços da enfermagem, os serviços médicos, ter uma referência, o capelão, é uma coisa, mas ter de canalizar diferentes pedidos, consoante a crença de cada doente e a fé de cada doente, pode não ser tão fácil…

Em Braga, quando acolhemos os novos colaboradores, temos várias sessões de formação, de acolhimento, e a assistência religiosa também participa. Temos um módulo em que se explicam os procedimentos e, como qual quer outro serviço, como o serviço de urgência, serviço de cirurgia, de medicina ou o que seja, também o serviço espiritual e religioso, que tem regulamentos internos, tem protocolos, tem procedimentos, tem instituições de trabalho, tem essas coisas todas. As papeladas, burocracias, que são necessárias, são mesmo muito necessárias. Por exemplo, se um enfermeiro quiser contactar, tem o procedimento, tem meu número de telefone, tem os contactos, nós passamos diariamente no hospital – somos dois capelães – e depois também temos guias que, se têm dúvidas, perguntam e nós temos a resposta, ou procuramos. E se me perguntam pelas testemunhas de Jeová, ou judeu, ou budista, como aconteceu ainda há 15 dias, vamos contactar as religiões mais próximas que possam responder.

 

E é fácil essa cooperação?

Sim… Nós temos reuniões com as equipas e as religiões que são credenciadas, tal como nós, capelães: somos credenciados pelo nosso bispo, e um pastor também é credenciado pela sua religião e fazemos esse registo de todos.

 

Como é que vai Portugal participar no jubileu dos enfermos e o mundo da saúde nos dias 5 e 6 de Abril, em Roma? E em Portugal, já neste 11 de Fevereiro, no Dia Mundial do Doente, no Jubileu do doente e os profissionais de saúde?

Nós tínhamos preparado um programa para o dia 5 e 6, uma proposta, que neste momento foi reduzida, por falta de inscrições a nível nacional, por causa da logística, da viagem…

 

Já tem uma ideia do número de inscritos?

Não passa diretamente por mim. A nível nacional, essa proposta que fizemos, suspendemos. Irei eu e uma equipa mais reduzida. Sei que, por exemplo, em Braga, os enfermeiros vão por eles, e há outras dioceses que fazem por eles… Depois lá encontramo-nos…

A grande maioria celebrará nas dioceses, porque foi também uma das orientações do Santo Padre: poder viver aqui, na diocese, na proximidade, na parte mais local, e depois, num próximo ano, poder haver um encontro mundial.

Claro que há sempre o Jubileu em Roma, que é uma efeméride diferente, é uma oportunidade muito grande, é um momento de graça, como é o Jubileu, e será vivido com muitas outras de proximidade.

Há também a proximidade com a deficiência, os capelães, quase todos sacerdotes, vão viver o Jubileu com os sacerdotes, alguns vão com os diáconos. Portanto há muitos Jubileus em que se pode participar, e o Jubileu demora o ano todo, não é propriamente só dia 5 e 6 de abril

Na Pastoral da Saúde, a convite do Santuário de Fátima, teremos um encontro nacional. Deixava este convite a todos, para participarem: é na próxima terça-feira, Dia do Mundial do Doente, dia 11, e será transmitido pelos canais do Santuário. De manhã constará um acolhimento, pelas 10h00s; depois, às 11h00 haverá a missa com a Santa Unção – já temos bastantes inscritos, das várias dioceses – e depois, de tarde, haverá uma conferência para aprofundarmos este tema da esperança e neste momento da doença, na vivência quando falta a saúde. Depois teremos peregrinação até a Capelinha das Aparições, se o tempo permitir, ou então concluiremos os trabalhos na Santíssima Trindade.

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