D. Américo Aguiar fala do medo e entrega total ao Papa lhe pede, balanço positivo da JMJ e nomeação para bispo de Setúbal
Entrevista conduzida por Paulo Rocha (Agência Ecclesia) e João Gomes (Agência Lusa)
– Como leu a sua nomeação para cardeal?
– Desde os primeiros momentos que não deixo de ler, interpretar, como um gesto de homenagem aos jovens: aos jovens portugueses, envolvidos na preparação da JMJ, por quem o Papa sempre manifestou grande carinho e grande homenagem e gratidão, nos quatro anos que levamos da preparação da jornada, e à juventude como um todo. Acredito que isso tenha tido peso na decisão inesperada do Papa Francisco para aquele anúncio, que me surpreendeu e surpreendeu a todos.
– Mas foi o conhecimento próximo que manteve por causa da JMJ que levou o Papa a essa escolha, que é pessoal?
– Eu não posso fazer considerações sobre o que é que o Papa achou ou não, sobre as razões que levaram… Eu interpreto humanamente assim… Interpreto, humanamente, que o facto de ter tido, seis, oito, 10, 12, audiências privadas com o Papa ao longo destes quatro anos, levou a que ele me mirasse, tirasse as medidas e decidisse o que decidiu.
– Numa recente entrevista afirmou: “Para alguns, sou um terrível seguidor de Francisco. Assim seja”. Esta fidelidade ao Papa teve peso na decisão do Papa Francisco?
– Acredito que sim. O contrário não faria sentido.
Acredito que o Santo Padre, na leitura dos desafios atuais da Igreja e dos desafios da Igreja, queira munir o Colégio Cardinalício com figuras, personalidades, que complementem aquele colégio. E achou, na sua leitura, que a minha disponibilidade, a minha sincronização, a minha fidelidade, como disse, ao que o Papa Francisco significa para nós, assim como o que o Papa Bento XVI significou para mim e para nós e também o Papa São João Paulo II, que valorizou como importante.
Não tive a ousadia, nos últimos encontros com ele – apesar do meu à-vontade – nunca perguntei: Santo Padre, já agora, porque é que…? Não o fiz.
– Próximo do Papa Francisco, está por vezes distante de setores da Igreja Católica…
– Quando estamos em casa, à mesa, com amigo, com a família e conhecidos, não estamos todos na mesma posição, nem todos com a mesma proximidade. Há quem esteja na ponta da mesa, do lado direito da mesa, do lado esquerdo. Nesta família, que somos e na humanidade que constituímos, é importante – e o Papa tem-no dito e nós referimos muitas vezes também em relação à JMJ – conhecer os outros, conhecermo-nos uns aos outros. O que é diferente não deve ser problema. O que é diferente deve ser oportunidade, deve ser riqueza, deve ser caminho em conjunto. Eu sinto isso, é o meu ADN. E fico muito feliz quando ouço, no que o Papa nos transmite, esse desafio de entendermos a diferença como uma riqueza, como uma oportunidade de caminho.
Nos tempos em que vivemos, há curto-circuitos: estamos na era da liberdade de expressão, mas quando alguém se expressa de forma diferente do que penso, dá uma guerra. É uma coisa estranha: por um lado exigimos o respeito pela liberdade de expressão, mas reagimos violentamente quando alguém pensa diferente. E isto dentro de casa, no “fogo amigo”. Dentro de casa há reações que não são justificáveis: é importante educarmo-nos mutuamente, sermos pedagógicos para nos respeitarmos e nos amarmos.
Como dizia o saudoso Papa São João Paulo II, o Papa Bento XVI e o Papa Francisco: o movimento ecuménico e inter-religioso não é um campo onde vamos ganhar militantes uns aos outros. É sim uma oportunidade, um encontro, de nos conhecermos, de nos respeitarmos e fazermos caminho juntos.
A nossa obrigação é a evangelização, é anunciar a Boa Nova, Cristo Vivo. As conversões é Cristo que opera no coração de cada um. Não sou eu que realizo a conversão no Manuel, António ou a Maria… É Deus que o faz! As conversões acontecem ao nível do coração de cada um. A minha obrigação, a minha missão, a minha vocação é anunciar, é a evangelização. E a evangelização não choca com este caminho que queremos fazer de fraternidade universal.
– Vai ter oportunidade de explicar aos cardeais que o criticaram pessoalmente quando se encontrar com eles o seu ponto de vista…
– Um de cada vez…
– Há uma marca do Colégio Cardinalício que se vai compondo ao jeito do Papa Francisco…
– Sim. Se fizermos uma análise sociológica aos membros do Colégio Cardinalício temos um grupo ainda do Papa João Paulo II, já muito residual, do Papa Bento XVI e o maior contingente do Papa Francisco. Na Igreja sempre assim foi…
– Quais as suas expectativas para o seu papel, enquanto cardeal?
– Não tenho expectativa nenhuma. O primeiro sentimento que tive foi de medo, de incapacidade! Os portugueses entendem isto, independentemente da sua religião: eu tenho o “desenho” de um cardeal como o senhor D. Manuel Clemente, António Marto, Tolentino… Tantos e tantos e tantos. Deus providenciará e há de acontecer todos os dias, cada dia!
Quando tenho um desafio, entrego-me na totalidade a esse desafio. Aprendo e tento corresponder. É nessa disponibilidade de corresponder ao desafio.
– Tem falado com os restantes cardeais portugueses a pedir conselhos?
– Sim. Aliás, com muito carinho também os cardeais do Brasil e da Espanha, que me surpreenderam positivamente: o cardeal de Barcelona, de Brasília, de Fortaleza… É esta fraternidade que é particularmente bonita, seja do falar português, seja da Península Ibérica que tanto aprecio e gosto. E dizem: não tenhas medo, estamos contigo. Aliás, não ter medo é uma das provocações que o Papa faz. Confesso que ainda estou a recuperar.
– Estas escolhas do Papa Francisco remetem a figura do cardeal para o que é e sempre foi: mais do que um cargo honorífico, é um conselheiro do Papa. É aí que prevê o seu papel?
– Sinto que estamos a assistir a uma mudança: dos cardeais príncipes da Igreja para os cardeais príncipes do Papa. Nas suas últimas nomeações, o Papa tem reforçado muito isso: não é poder, não é fausto, não é nada disso; são aqueles que ele chama mais proximamente para junto de si, sem ser até geográfico, para o governo da Igreja, para ter mais perto as sensibilidades, seja da idade, seja da geografia e de tantas outras circunstâncias.
Difícil caminho da sinodalidade
– A Igreja atravessa um momento de conflitos internos conhecidos, com os chamados conservadores a não darem tréguas. O Papa continua a apostar no caminho da reforma e coloca na agenda temas fraturantes, surgindo até rumores de um possível cisma no horizonte. Qual é a sua sensibilidade sobre estas questões?
– O Papa convidou-nos a fazer um sínodo sobre a sinodalidade. E não devemos cair na tentação, como possa ter acontecido num passado recente, de termos uma palavra-chave que vamos gastando até ao máximo, como a corresponsabilidade, o sínodo da família, da juventude, e depois passa o sínodo, há um documento oficial e depois vem outro.
O caminho que foi feito da preparação sinodal, pessoa a pessoa, paróquia a paróquia, diocese a diocese, conferência episcopal a conferência episcopal, blocos continentais a blocos continentais é um caminho que foi feito que é muitíssimo importante.
O Papa diz-nos que o sínodo não é um parlamento, em que chegam as várias frações e ganha a maioria. O sínodo é um local onde cada um se deve sentir livre para falar, deve ter o gosto de ouvir e depois o Espírito Santo decidir. E às vezes o Espírito Santo toma a decisão que não é da maioria.
Nós estamos a falar de irmãos e irmãs que têm manifestado uma sensibilidade diferente, em relação a alguns temas. E o Papa tem-nos provocado a todos para refletirmos sobre eles. E quando vamos aos documentos preparatórios do sínodo, reparamos que há alguma conexão: há preocupações europeias que “casam” com preocupações americanas, africanas e asiáticas. Depois, quando começamos a aproximar, vem mais a identidade nacional e realidades muito específicas. Não sendo especialista na Igreja alemã, sei que a matriz eclesial, a organização da Igreja e das religiões na Alemanha, a relação dos cidadãos com a Igreja nada tem a ver com a matriz a que estamos habituados em Portugal e nos países latinos. Há questões que é preciso avaliar, ter em conta e não desvalorizar.
Como diz o senhor D. Manuel Clemente, como historiador, o que aconteceu com Lutero poderia não ter acontecido se os protagonistas da época não tivessem desvalorizado algumas coisas. Como desvalorizaram tudo e todos, as coisas aconteceram.
É muito importante não desvalorizar a opinião do meu irmão, a opinião de um país, de uma conferência episcopal. Não quer dizer que estejam errados ou certos, mas é importante que se sintam respeitados ao pronunciarem-se e também estejam disponíveis para acolher o que é o sentir da Igreja em processo sinodal. Mediaticamente, é mais divertido “paulada e tiroteio”. Na realidade, será um mês de muita oração, de muito trabalho e também estou expectante no que serão as conclusões desse mesmo sínodo.
– Mas reconhece que as tomadas de posição são com alguma violência verbal…
– Nenhum de nós, seja numa eleição, seja numa discussão, se deve afirmar contra o outro. Eu devo defender o que acredito e o que quero. O outro defende o que acredita e o que quer. E respeitamo-nos. Quando eu quero à força, com violência física ou da palavra, convencer o outro, já perdi. Às vezes constatamos que, seja no contexto da Igreja e noutros, a força física ou verbal parece que é o único argumento para convencer o outro. Infelizmente acontece, e se formos ao mundo digital, escondidos atrás do teclado somos todos perigosos.
Estamos a perder muito do que era estarmos num café, falarmos de futebol de política e de outras coisas, zangarmo-nos um bocado, falarmos alto, batermos na mesa, e no fim cumprimentarmo-nos e sermos amigos na mesma. Começa a acontecer um corte com esta disponibilidade para continuar a caminhar contigo, apesar de pensares de modo diferente.
– O Sínodo dos Bispos, em Roma, começa com uma vigília ecuménica jovem, retomando o espírito da JMJ. Que novidade trouxe a JMJ ao tema do encontro entre religiões, do encontro entre povos?
– Fortaleceu! É um caminho que vem sendo feito nas Jornadas Mundiais da Juventude.
Eu gostei muito do que aconteceu no nosso país, porque há dioceses que têm alguma tradição de ecumenismo e diálogo inter-religioso, outras nem tanto. Fiquei muito feliz com o acontecer de vários eventos, uns mais oficiais no calendário da jornada, outros laterais: todas as pessoas tiveram oportunidade de dizer, de se darem a conhecer, às vezes com reações menos positivas dos que não gostam. Desde que tudo acontece no respeito uns pelos outros, temos de fazer caminho.
Durante estes quatro anos, principalmente com a Comunidade de Taizé, surgiu essa questão da vigília e o encontro de jovens de várias religiões e de sentimentos diferenciados de transcendência. Acho muito interessante e muito rico que os jovens queiram, nas suas diversas confissões, rezar pelos frutos do sínodo.
Igreja em Portugal pós-JMJ
– E a Igreja em Portugal, como a vê? Chegou a dizer que se a única coisa que a Igreja tiver para oferecer aos jovens, depois da JMJ, for “temos missa às 11h”, é pouco…
– Continuo a dizer isso!
Vamos tendo notícias das dioceses na retoma. A Diocese de Coimbra anunciou um sínodo da juventude, a diocese A e B com outras atividades. Isso é fundamental, porque nós acordámos, abanámos, retirámos do sofá os jovens. Agora, não podemos permitir que regressem ao sofá.
Devemos convidar os jovens para a missão, para arregaçar as mangas e trabalhar, para ir ao encontro das periferias, ir ao encontro das pessoas. E os jovens gostam disso! Se dissermos “amanhã temos terço às seis e meia…”, alguns não sabem o que é o terço, alguns nunca rezaram, outros não sabem quem é Cristo. O convite à missão é urgente, mas isso dá muito trabalho, é muito exigente.
Os sacerdotes que fizeram este caminho, os agentes da pastoral da juventude, os bispos de Portugal, todos estão com a consciência de que “picamos” as pessoas e agora querem a correspondência. Vamos ter muito trabalho a fazer, na realidade de cada diocese, e aproveitar a maior riqueza da JMJ em Portugal: descobrir em todo o país, norte e sul, interior e litoral, continente e ilhas, descobrir milhares de jovens que estiveram a preparar a Jornada e estão em prontidão para corresponder ao que a Igreja lhes proporcionar.
– Isso aconteceu porque havia uma meta: um encontro de jovens, à escala internacional. Que metas são precisas voltar a propor aos jovens?
– Temos sempre – e peço desculpa pela imagem – duas cenouras para provocar o desejo de alcançar: por um lado o que é permanentemente uma graça de Deus, o Papa Francisco, e a permanente provocação que nos faz de “surfar a onda do amor”, “não ter medo”, “não ser administradores de medos mas empreendedores de sonhos” – e isto é fundamental: se queremos virar isto ao contrário, se queremos inaugurar um tempo novo, os jovens têm de reconquistar o gosto, a vontade e a coragem de sonhar. Quando falamos com os jovens que não têm emprego, que ganham pouco, que não podem comprar casa, que compraram casa mas não têm como pagar, que não podem ter filhos, que têm filhos mas não têm onde os deixar, vamos ficar um pouco deprimidos. Mas se tivermos a coragem e eles nos ajudarem, com o próprio da sua idade, a acreditar nos sonhos, lutar pelos sonhos e pôr aqui poesia, isto vai!
– A lei da amnistia e perdão de penas que já levou à libertação de mais quatro centenas de jovens é um bom resultado da JMJ?
– É um bom resultado ser capaz de devolver esperança a um irmão. Devolver esperança a um irmão é o resultado maior. Um, 500 ou 1000…
Eu fico triste quando – peço desculpa – os nossos Media… Aquele que saiu já cometeu um crime, aquele que saiu é um malandro… É verdade que acontecem essas coisas, infelizmente. Mas o importante da amnistia foi devolver esperança a alguém que cometeu uma falha na sua vida. Isso é profundamente humano e ultrapassa a questão religiosa. Quando disse ao Papa sobre a possibilidade da amnistia, o Papa ficou felicíssimo, exatamente neste registo.
Um de nós comete um crime, a sociedade impõe uma pena, nós cumprimos essa pena: é humano nós termos a capacidade de devolver a esperança a essa pessoa. Por isso é que na nossa matriz, Portugal honra-se por ter acabado com a pena de morte, com a prisão perpétua, sinais de não devolver a esperança. O sistema prisional não é um sistema onde a pessoa entra e sai pior. Não deveria ser: deveria um sistema onde a pessoa está limitada na sua liberdade e, ao fim de algum tempo, será devolvida à sociedade e será melhor cidadão. É a nossa esperança.
Compreendo que uma coisa é estar a falar com o presidiário e a sua família ou a família das vítimas ou com a vítima. O sentimento é totalmente diferente e eu compreendo e conheço os dois. Mas a grandeza de tudo isto, e é humano, é que quem sofreu as consequências dos atos graves de quem está limitado da sua liberdade tenha a grandeza de aceitar que humanamente temos de ser maiores do que aquele que cometeu o crime.
A amnistia diminuiu a pena que estava a ser cumprida ou a punição que está a ser cumprida ou vai ser aplicada. Isto é positivo! É óbvio que se vamos por o foco nos casos, gera logo…
O balanço que eu faço da lei da aministia é muito positivo nesta perspetiva: sermos capazes de devolver esperança a quem cometeu uma falha na sua vida, respeitando quem sofreu as consequências desses crimes e dessas dificuldades, que não podemos apagar. O que pedimos é que da parte das famílias, da parte dos prejudicados, exista mais uma vez um gesto e uma prova da sua grandeza perante aquele que o prejudicou, cometeu um crime ou o fez sofrer muito.
Todos, todos, todos… E todas as contas
– Uma das mensagens que ficou da passagem do Papa por Lisboa é o “todos, todos, todos”. Como vê a aplicação desta mensagem do Papa que ainda deixa muitos à porta?
– Isto é o caminho que estamos a fazer. Quando mais o Papa dizia “todos”, mais eu ficava feliz! Quando em Fátima dizia que a Igreja é como a capelinha, não tem portas, toda a gente entende.
Nós não temos o direito de barrar a ninguém o acesso a Cristo. Agora, “todos, todos, todos” não se traduz por “tudo, tudo, tudo”. Quem ama, quem cuida, sabe que o pai ama, quer e cuida e isso não quer dizer “tudo, tudo, tudo”. O nós chamarmos a atenção, corrigirmos não significa menos amor, menos entrega e menos dedicação, pelo contrário.
A minha interpretação do “todos, todos, todos” é que nós não temos o direito de vedar a ninguém o acesso a Cristo. A partir do momento em que a pessoa chegou a Cristo, a minha fé é que Cristo opere no coração dessa pessoa e a converta e aquilo que era problema e obstáculo, deixem de o ser, na conversão do seu coração.
Eu não posso ser obstáculo entre cada uma das pessoas e Cristo!
– Quase dois meses após a JMJ, como olha para as polémicas que marcaram a organização da jornada?
– São as minhas cicatrizes da guerra, das lutas, tenho muitas. Gostaria que algumas não tivessem acontecido, aconteceram. O único culpado sou, a minha limitação de não ter conseguido explicar, fazer entender. Mas, quando mais tempo passa, Portugal e os portugueses vão entendendo a dimensão da coisa. Esse foi o meu calcanhar de Aquiles: transmitir a dimensão da coisa e a dimensão de tudo o que envolveu a JMJ, seja dos participantes, dos custos, dos gastos, dos tempos… Tudo foi muito. Tudo foi muita alegria, tudo foi muito bom e também foi muito custo, empenho, dedicação e problemas.
Dois meses depois, três meses depois: que bom que já passou.
O que estamos agora a fazer: estamos a fechar as contas. Estamos a terminar o pagamento aos restaurantes, agentes de restauração. Mas estamos a falar de quase 20 milhões de euros que foram colocados na restauração, em quase dois mil agentes de restauração, que aderiram à rede JMJ. Isto dá um trabalho logístico e burocrático muito significativo!
Transportes é também um dossier que, penso, não passará dos 10 milhões de euros e está quase a ser encerrado. Depois as estruturas, os serviços, segurança e higiene: estaremos a falar de quatro ou cinco milhões de euros, onde se inclui o palco do Parque Eduardo VII.
Os números maiores, as fatias maiores estão quase a ser encerrados e vamos poder comunicar.
Uma coisa são as contas da semana da Jornada, outra coisa são as contas do ano de 2023, que encerra no dia 31 de dezembro de 2023. Por isso, não podemos encerrar contas agora, temos de esperar o dia 31 de dezembro. Depois, temos de esperar as obrigações legais até março, depois entra a auditora, que em maio/junho de 24 é capaz de entregar o relatório.
Em maio/junho de 2024, tudo estará nas mãos dos portugueses. Tudo. Depois cada um achará o que entender. Mas todos vão ter acesso à movimentação económico-financeira da Fundação JMJ deste ano 2023, tal como está no site da jornada, 22, 21, 20…
– Teremos de esperar por junho de 2024…
– Durante outubro penso que conseguimos poder partilhar os blocos grandes das contas da semana da Jornada: alimentação, transportes, serviços, estruturas é possível encerrar. As contas do ano de 2023, todas, têm de se esperar os prazos.
– Pelos dados disponíveis, prevê-se um resultado positivo ou negativo?
– “Lamento”, mas prevê-se um resultado positivo. Em Portugal, temos um fado que é tem de correr mal e dar prejuízo. “Lamento”, porque correu bem e deu lucro.
Todos os portugueses se empenharam, mesmo aqueles que saíram de Lisboa: ajudaram porque saíram. Os polícias, os médicos, os enfermeiros, a higiene urbana, os media. Todos ajudaram! Foi um sucesso porque todos se empenharam! Que se sintam todos como construtores da Jornada Mundial da Juventude.
Estamos à espera que, quer a PwC, quer o ISEG, façam agora o relatório. Mas também é preciso tempo.
– O que será feito com esse lucro?
– No fecho de contas, estamos a fazer um trabalho que engloba o Governo de Portugal, a Câmara de Loures e a Câmara de Lisboa. Prometemos que, do lucro que existisse, não fica nem um cêntimo para a Igreja. Esse valor será aplicado em projetos que englobem os jovens de Lisboa e Loures.
Havemos de chegar a um entendimento para dar um fim ao superavit que vem da Jornada, que gostaria que fosse entendido, querido e amado por todos. Esperemos o valor, e o que possa ser aplicado com a concordância de todos, porque tenho consciência que muito deste lucro também significou a assunção de responsabilidades por parte destas entidades.
– A Fundação vai extinguir-se ou admite que poderá continuar?
– Inicialmente, quando começamos o caminho, o objetivo era que a Fundação, após cumprimento dos prazos legais e obrigações fiscais, pudesse ser extinta. Isso vai depender da leitura que o senhor patriarca Rui Valério fará da realidade. Ele pode entender, porque não é descabido, que a Fundação se possa manter ou para concretizar estes projetos que estamos a falar ou para dar seguimento a coisas que podem acontecer no país ligadas à juventude, sempre como herança do que foi a JMJ Lisboa 2023.
– Qual foi o momento mais difícil que teve nestes quatro anos?
– É preciso tempo. Os mais difíceis envolvem pessoas… E não é justo, porque posso estar a ver mal e posso estar ainda com a ferida. Não é o tempo, não é o contexto.
Tivemos dificuldades, tivemos problemas, na Igreja, na relação com as instituições, os medos…
O sucesso da Jornada, a alegria que vivemos, o acontecimento único na vida de Portugal e dos portugueses foi graças ao empenho de todos. Por isso, dói-me e magoa-me quando lá vem a crítica fácil, o populismo, a “rafeira” estragar. Uma coisa que foi feita com tanto carinho, com tanta entrega por todos os portugueses.
Todos os portugueses foram indispensáveis para que tudo acontecesse e o Papa tivesse dito que, na opinião dele, foi a Jornada melhor organizada de sempre.
– A Jornada também foi feita por “todos, todos, todos”?
– Foi. E mesmo os que causaram dificuldades e problemas é a parte que lhe coube. Confesso que não foi a melhor parte.
Eu não tenho medo de escrutínio nem evito escrutínio. Acho que é importante o escrutínio. Só fico desconfortável quando o objetivo não é construtivo. Isso é que é deselegante e desgasta. O que posso dizer de balanço é que não estou zangado com ninguém, não acuso a ninguém qualquer tipo de crime de lesa-pátria em relação à Jornada e tudo correu bem! Temos é de transmitir à Coreia do Sul os melhores procedimentos, aquilo que fizemos mal que eles possam fazer bem, para que Jornada de 2027 seja também um sucesso e o jubileu de 2025 também.
A caminho de Setúbal
– A Rádio Renascença vai ter um presidente do Conselho de Gerência cardeal?
Pelo menos durante uns dias, sim. Aquilo que é a decisão sobre o meu futuro próximo não é compatível com a exigência de acompanhar o projeto do grupo Renascença Multimédia, com as dificuldades e problemas dos Media que conhecemos, do financiamento e sustentabilidade, não é de todo possível.
Tenho de agradecer, aliás, a todos os colaboradores da Renascença Multimédia, ao Conselho de Gerência, ao Dr Ramos Pinheiro e à Dra Ana Braga, terem tapado as minhas ausências. Porque durante estes três anos não fui um presidente exemplar. A Jornada absorvia, eu fazia o que podia, mas graças a todos os trabalhadores e ao Conselho de Gerência foi possível responder.
– Como encarou a nomeação para a Diocese de Setúbal? Que expetativa leva na bagagem?
Para quem nos lê, vê ou ouve, eu gostava de fazer uma contextualização, porque condiciona.
No verão de 1975, há 48 anos, era anunciado o primeiro bispo de Setúbal, um jovem de 48 anos – eu tenho 49 – de Leça do Balio, de onde também eu sou, um jovem que era vigário geral do Porto – que eu fui – um jovem que foi responsável pela irmandade dos Clérigos – que eu também fui – um jovem que ganhou a fama de bispo vermelho – que eu agora também sou – pelo rigor das vestes cardinalícias.
Confesso que o que me passou pela cabeça é que quando vive, lê e passeia pela Sagrada Escritura, e vê relatos das figuras e do povo de Deus, está lá assim. É óbvio que lemos o que já passou, mas quando somos protagonistas do que está a acontecer, por vezes arrepia, sentir que são as mãos de Deus que é o oleiro. São as mãos dele que estão a operar.
Eu era seminarista e vinha a Setúbal várias vezes. Há seminaristas meus contemporâneos que hoje são sacerdotes – que eu saúdo – e lembro-me das preocupações do Senhor D. Manuel Martins sobre a casa patriarcal onde ele vivia, e tinha a preocupação que existisse outra, o carinho e a preocupação dele com os sucessores que mereciam estar melhor acomodados. Mal ele sabia, mal eu sabia daquelas conversas o que viria a acontecer, mais de 40 anos depois, com esta circunstância.
Sinto-me. Contente, feliz e animado. Nem todos os portugueses têm de ir para fora do país para concretizar a sua vocação. Eu estou muito feliz por poder corresponder e sinto, verdadeiramente, a mão de Deus nesta nomeação do Papa Francisco. É a minha cara: as dificuldades…
Eu sou assinante da revista «Visão, mas podia ser assinante da revista «Sábado», onde tinha um artigo que, imediatamente não senti muito interesse a ler, era sobre a Autoeuropa, e acabei por ler com interesse. Passei logo a sentir os sentimentos de aflição e alegria, daquilo que é a vida de tantos homens e mulheres que vivem na Península de Setúbal, que eu conheço do contexto de ouvir dizer de D. Manuel Martins, mas passaram 20, 30 anos. São centenas de milhares de homens e mulheres de boa vontade, que saúdo com muito afeto, e digo-lhes que não se preocupem: vou de peito aberto, de coração aberto, vou fazer caminho com eles.
O Papa diz que os bispos às vezes têm de ir atrás a empurrar, outras à frente a puxar, às vezes ir no meio para serem solidário e com cheiro a ovelhas. Há de ser nessa condição com todos os que estão em Setúbal, com todos os que constroem a polis, as autarquias, as associações, policias, bombeiros, proteção civil, trabalhadores e empregadores, visitantes – toda a população: a que vive e trabalha na Península de Setúbal, outra que vive mas trabalha na grande Lisboa. É um grande desafio. Só não estou com tanto medo porque sei que a malta que está lá é de fibra e eu vou contar com todos eles e eles vão contar comigo para fazermos caminho.
– Mas, como referiu, é uma diocese com muitos problemas sociais, desde o tempo de D. Manuel Martins, que era, muitas vezes, a caixa-de-ressonância dos mais desfavorecidos. Tem esse propósito? Está preparado para esses problemas sociais?
Eu nunca deixei de ter essa preocupação. As missões que me foram entregues eram diferenciadas e tentei sempre dar um sinal daquilo que era essa preocupação. Eu sinto as dores, agora eu encarno as dores dos homens e mulheres da Península de Setúbal e da diocese, que eu quero que voltem a sonhar, que o continuem a fazer, quero lutar com eles por esses sonhos, e quero que sejam poetas. Quero que todos, todos, todos, sintam que é possível em toda a liberdade, acederem a Cristo vivo.
É com muita alegria que vou.
Eu passei a vida, a infância, a meninice a o seminário, a ouvir as histórias de 1975, quando D. Manuel Martins chegou a Setúbal, com os apedrejamentos das camionetas, a chegada de um reacionário do norte, a Renascença vivia problemas. Agora vai o presidente da Renascença.
– A diocese esteve quase dois anos sem bispo. Vai ter um grande desafio quando chegar em termos de dinamização da diocese?
É muito importante o bispo ter consciência que não faz muita falta: passaram dois anos e sobreviveram. Lembro-me que no Porto, na porta da Sé do porto, há uma inscrição em latim que diz, mais ou menos, que estiveram umas décadas sem bispo e não foi preciso porque a diocese cresceu e expandiu-se. São caricaturas, claro.
Não deve acontecer. O que significa a transferência de bispos, a sua resignação por idade, a morte – infelizmente, lembro o meu querido D. António Francisco dos Santos – não deve acontecer. Os procedimentos devem ser refrescados, alterados, para que a sucessão seja garantida com o menor espaço possível.
De facto, por omissão ou ação, por empenho ou falta dele, a ausência de um bispo numa diocese durante dois anos, causa problemas que são agora necessários resolver. O menos mau é que os sacerdotes, saúdo o padre Lobato que é um herói (e não é a primeira vez que se vê nesta circunstância) – a diocese de Setúbal tem muito a agradecer a este homem, na sua simplicidade, generosidade, entrega, nos seus sofrimentos, uma gratidão total.
E os sacerdotes. Estas dezenas de sacerdotes, que vivem, que se dão no território da diocese de Setúbal, sejam diocesanos ou religiosos, natos ou de origens diversas, são heróis, são benfeitores deste território onde se entregam. Apesar da entrega e dedicação do padre Lobato, tiveram uma ausência fundamental e importante e facilitaria e aliviaria um pouco o peso da responsabilidade do dia-a-dia, da vida destas comunidades.
Não deve acontecer. Não devia ter acontecido em Setúbal, em Bragança e em nenhuma diocese. As coisas devem ser feitas com outra velocidade para não criar novos problemas.
– O Papa Francisco nomeia um cardeal para a diocese de Setúbal. Podemos dizer que foge ao que é normal. Sente que está a cumprir, neste território, o desejo do Papa Francisco para a renovação contínua da Igreja?
Não tenho dúvidas nenhuma quanto a isso. O Papa não gosta do que tenha o selo «normal». O «costume» e o «sempre foi assim» causam urticária. É uma situação diferente do que estamos habituados, mas habituem-se porque o caminho é assim. O ser cardeal não é poder; o ser cardeal é serviço. Independentemente de estar na diocese A, B, no serviço A ou B, ele é um colaborador e um conselheiro do Papa e isso não impede que esteja na geografia ou função, seja ela qual for. Todas as funções são dignas – às vezes parece que há funções que são dignas e outras que não, e que algumas dioceses são boas outras más. Isso é mais do que tempo, e o papa tem ajudado e provocado, para que as pessoas entendam que isto não pode ser assim.
Quem está numa diocese não deve ter sonhos, projetos ou expetativas de mudar. Uma diocese muda se o bispo morrer, se ficar doente ou fizer 758 anos, ou – coloco eu mais uma – se o povo não nos quiser. Tirando estas, o papa dizia que os bispos diocesanos devem permanecer nas suas dioceses; os bispos auxiliares devem ter a possibilidade de transitar para outras dioceses. Isto devia ser o normal das coisas. Causa muita instabilidade, nos próprios e no que é a vida das dioceses. Pessoalmente, não me identifico, e fico contente de, há dias, o Papa ter dito com muita clarividência isto.