D. José Ornelas foi reeleito na última Assembleia Plenária dos bispos de Portugal como Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa e analisa, em entrevista à Agência Ecclesia e Agência Lusa, o impacto do estudo sobre os abusos sexuais, valoriza a JMJ e a sua preparação e diz que é necessário «rever» a democracia em Portugal
(Entrevista conduzida por Paulo Rocha, da Agência Ecclesia e João Gomes, da Agência Lusa)
Inicia o segundo mandato como presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), após três anos que ficam ligados à iniciativa de investigar os casos de abuso sexual. No próximo triénio, o que é que vai acontecer, que atitude proativa a CEP vai ter para combater, erradicar e prevenir os casos de abuso sexual no ambiente de Igreja?
É evidente que aquilo que estamos a fazer neste campo dos abusos sexuais é uma iniciativa que foi julgada absolutamente necessária na época em que vivemos com o objetivo de permitir conhecer a realidade, concretamente na Igreja. A nossa perspetiva era de conhecer para melhor intervir.
E era necessária essa reconciliação com o passado?
É importante para que não estejamos constantemente a levantar hipotéticos fantasmas ou preconceitos para conhecer a realidade. Eu dizia desde o início que, pior do que possa vir a conhecer-se, é não conhecer o que temos.
E o trabalho que foi feito permitiu esse conhecimento?
Eu acho que deu um passo muito significativo. Foi feito por pessoas competentes, pessoas que tinham capacidade para o fazer, que planearam muito bem – seja a constituição da equipa, seja na metodologia seguida – permitiu também organizar e articular todo o esforço técnico com a realidade das dioceses; não só a busca de eventuais casos de abuso, mas também com recurso aos arquivos diocesanos.
O senhor D. José ficou surpreendido com os números apresentados?
Eu dizia desde o início, mas essa também foi sempre a minha atitude anímica… Eu não posso dizer se os tais quinhentos e tal casos de pessoas que contactaram a comissão são muitos ou poucos. Eu só sei que qualquer um é um drama. Da experiência que já tinha, de pessoas que foram abusadas, o que nos interessava era conhecer a realidade em si, sabendo que por trás podem estar outros casos. O que é importante é conhecer e determinar o perfil destas coisas: conhecer a realidade para que possamos atuar melhor.
Como é que lê as críticas que vieram a público, principalmente alguns setores tidos como mais conservadores dentro da Igreja e que tentaram em diversas fases descredibilizar o trabalho da própria Comissão Independente?
Eu posso entender o desconforto de pessoas que dizem: bom, porque é que a Igreja é que tomou a iniciativa de destapar esta caixa de Pandora? Mas eu contraponho sempre a ideia: a verdade é mais significativa, mais importante, sobretudo quando queremos atuar sobre a realidade para não trabalharmos sobre ideias fantásticas ou cómodas, mas sobre a realidade concreta. Mais: era importante particularmente porque estamos a tratar de pessoas, sobre as quais foram cometidas injustiças muito graves. Ir ao encontro destas pessoas só poderia ser assim.
Porque é que chegámos também a esta Comissão Independente? Já tínhamos as equipas diocesanas, a coordenação nacional que começou a projetar e a trabalhar. Entretanto, isto foi no meio da pandemia e teve os problemas que nós conhecemos, mas, mesmo assim, chegámos rapidamente à conclusão, e isto por expressão das próprias vítimas, que, pelo menos naquela fase, para quebrar o gelo relativamente às questões de abuso, as comissões diocesanas não eram significativas para essa finalidade. Foram e vão continuar a ser determinantes, mas para uma primeira aproximação da Igreja por parte das vítimas, tem alguns obstáculos. Concretamente as pessoas diziam: eu não gostaria de me manifestar perante uma Comissão onde está um vizinho, uma vizinha. Isto não tira nada da competência dessas pessoas e aliás, repito, isso vai ser a base da intervenção. Mas para esta fase, para quebrar este gelo, era muito importante que tivéssemos alguém que de fora, garantisse o anonimato e esta primeira fase, pelo menos, de descrição em relação às vítimas.
Há aspetos que poderão não ter sido cuidados, como os dados pessoais que foi necessário trabalhar durante a investigação, e o que é feito agora desses dados recolhidos durante a investigação?
Os dados recolhidos vão ser devidamente acautelados para que permaneçam, e são um dado da investigação.
Mas são da CEP?
A CEP foi quem ordenou, quem pediu e custeou este trabalho. Sem tirar nada ao copyright daqueles que trabalharam e com metodologia própria, etc, mas é bom que permaneçam, mas devidamente acautelados, para que os dados que foram recolhidos, onde têm identificação de pessoas, até pela própria proteção de dados que isso significa.
Antes de falarmos sobre o Grupo Vita, perguntava-lhe ainda sobre este processo que a CEP está a levar por diante sob a sua liderança: que acompanhamento está a ser feito por parte do Vaticano, nomeadamente a Comissão Pontifícia de Proteção de Menores?
Esta é uma iniciativa da CEP. Nós sempre tivemos contacto com as instâncias que tratam estes assuntos na Santa Sé, concretamente o Dicastério para a Doutrina da Fé. Foi o local onde fomos, com quem discutimos este processo e de onde recebemos também todo o apoio para o continuar e para levar a seu termo.
Gravamos esta entrevista antes da divulgação dos dados relativamente aos casos de religiosos – teremos aí novamente um capítulo com algumas ambiguidades, como aconteceu nas dioceses, com denúncias feitas sobre sacerdotes já falecidos e outros que até nem estavam na diocese. Que processo vai ser este, agora?
Bem, essa questão de nomes carece de um parêntesis bastante mais longo. Para já, espero que esta fase seja mais trabalhada na medida em que, a primeira fase da comunicação destes casos foi às dioceses e já um ulterior trabalho foi feito. Penso que isso agora vai estar mais normalizado. Mas, para já, o que isso significa é algo de muito interessante e característico desta iniciativa da Igreja em Portugal: isto abrange toda a Igreja. As congregações quiseram ser parte também deste estudo, porque só assim temos a realidade no seu conjunto e isso foi muito interessante e muito importante que todos – sejam as dioceses, sejam as congregações – nos pusemos claramente à disposição para fazer, sem entraves, o estudo e ir buscar todos os dados disponíveis para se encontrar a realidade em que nós estamos.
A segunda coisa é que, estes nomes que foram dados, são nomes que não são assim tão inócuos: são nomes que vão ser cruzados com informações que as congregações e as dioceses já têm.
Quanto às pessoas eventualmente abusadoras já mortas, não foi por desleixo nem por falta de atenção que eles lá figuram. A maior parte destas pessoas já falecidas tem a ver com o facto de as vítimas estarem vivas e, por uma questão de justiça para com essas pessoas.
Se por acaso, começar a haver processos em tribunal para pedidos de indemnização, a Igreja portuguesa ou as dioceses estão preparadas para o pagamento dessas indemnizações? É uma questão. A outra, anunciou em Fátima que já há trinta vítimas a serem apoiadas pela Igreja, nomeadamente para a sua reabilitação, para o seu acompanhamento médico. Foram as vítimas que se dirigiram à Igreja a pedir esse apoio ou foi a própria Igreja que disponibilizou o apoio?
Eu não conheço caso a caso e era preciso ver caso a caso. O que interessa é o seguinte: houve um contacto com as vítimas ou por parte da Igreja, se já era conhecido, ou porque alguém que se dirigiu à Igreja e poderia ter sido não diretamente para pedir ajuda… Era para se fazer à medida que se iam conhecendo casos destes. E foi-se dizendo – e isso é muito claro para todos – que nós queremos ser parte da reabilitação, libertação, feita por profissionais, para ir ao encontro destas pessoas.
O que nós dizemos é o seguinte, para clarificar a outra questão, a noção de indemnização – é por isso que nós temos evitado o termo – porque indemnização é um termo jurídico. Chega-se à indemnização através de um processo jurídico: se alguém puser um processo, vai-se seguir a lei. A lei diz que quem é responsável pelo mal praticado é a pessoa que o praticou. O que nós dizemos é que ninguém vai ficar sem ajuda para aquilo que é justo e para a sua vida, mesmo que, ou porque não se fez um processo ou porque o abusador não tem meios para isso. O que nós vamos fazer é disponibilizar ajuda! É por isso que não pomos em termos jurídicos. Se for em termos jurídicos, é evidente que vai haver um processo e é evidente que nós não estamos acima da lei. Qualquer instituição vai seguir o processo legal.
Eu não estou a ligar isto simplesmente a processos. Estou a dizer que as pessoas que foram abusadas, em ambiente de Igreja, vão ter a ajuda necessária. Isso está esclarecido da nossa parte. Claro que as dioceses vão assumir os casos que estão ligados a elas.
Sobre o grupo Vita, o que é que a CEP pede a este grupo agora constituído? Ele estará na linha da frente para receber eventuais denúncias ou mediar o trabalho que as comissões diocesanas estão a fazer?
Um bocadinho de tudo isso e mais… Para o grupo Vita, a ideia fundamental da CEP não é a continuação da comissão independente de estudo, mas faz parte do processo operativo que se segue às conclusões do estudo, do relatório feito, das recomendações e daquilo que nós próprios fomos vendo com o processo que a Igreja está a fazer. Entramos num processo operativo e, por isso, este grupo que, nos próximos dois ou três anos, vai ser uma parte muito significativa da intervenção porque vai preparar a Igreja para estar atenta, para acolher casos eventuais que vão acontecendo, para tratá-los convenientemente, para ir ao encontro dessas pessoas e dos outros que vêm do passado. Mas também, e sobretudo, para preparar tipos de prevenção de formação de pessoas, sobretudo dos agentes que estão em contacto com crianças. Isso feito por pessoas competentes. Por isso não pode ficar fora da preocupação e do propósito da Igreja tirar conclusões daquilo que se conheceu e agir preventivamente e agir durante, em face de qualquer caso que apareça.
Não teme que haja alguma retração por parte de eventuais vítimas de se dirigirem a este grupo, uma vez que ele vai trabalhar em ligação direta com a equipa nacional de coordenação das comissões diocesanas muito dependente da própria Igreja?
O termo que está lá é ‘articulado’. Articulação significa que se articulam órgãos que fazem movimentos diferentes, mas que têm articulações e elas são absolutamente necessárias. Quando se trata de chegar às vítimas, não pode haver essa rutura… Até agora era muito importante o anonimato, a questão das listas… a confusão das listas vem daí. O anonimato garantia que juntávamos dados de várias pessoas, não estando ligado a esta ou àquela, para caracterizar e estudar. Agora se se trata de falar e de ajudar pessoas, não se tratam as siglas que caracterizavam cada caso, não se trata de siglas mas de pessoas concretas. Esta articulação, e fala-se de articulação de alguém que ao mesmo tempo tem autonomia, não independência, porque se forem duas coisas desligadas não funcionam. O que eu gostaria era que as pessoas que sofreram abusos entendam precisamente isto: estas pessoas vão ter uma caracterização de independência e de profissionalismo, que também têm as comissões, mas as comissões, tendo pessoas competentes estão dentro do território, podem ter sempre essa dificuldade adicional… Quando se trata de encontrar essas pessoas, podem ser encaminhadas diretamente pelo grupo Vita que vai sugerir modos de tratamento, mas também em ligação com as pessoas que precisam desse tratamento e que terão liberdade, obviamente de escolher quem queiram. Mas as pessoas não vão vir de Viana do Castelo ao Algarve para serem tratadas e, para isso, este contacto com as equipas diocesanas vai ser importante na fase operativa. Aliás, já há equipas implicadas nestes tratamentos.
Pode especificar?
Sei que há porque sei de algumas… Psicólogos, etc… Uma coisa que quero dizer é o seguinte: este é um trabalho que se vai fazer com toda a descrição que exige e isso é o abc do sucesso, mas também de justiça para com estas pessoas. Passar por estes processos não é fácil e tem de se garantir que isto é feito com a descrição própria que estas situações requerem.
Com este grupo Vita a Igreja poderá falar mais a uma só voz a respeito destes casos? Ter uma estratégia conjunta?
Nós gostaríamos, não só o grupo Vita, mas todo este processo. O grupo Vita deu a si próprio um período de atividade por dois anos e meio, três anos, para montar um sistema que fique na Igreja. Depois é evidente que algo de semelhante vai ter de ser assumido, por exemplo por um setor da Comissão Nacional. Agora, para este campo de abusos, de caso horríveis que aconteceram e eu gostaria de dizer que não vão voltar a acontecer mas não podemos estar seguros, temos de ter uma estrutura a funcionar, feita por pessoas capazes, que já existe nas comissões diocesanas, que existe na coordenação nacional porque vêm dessas comissões, e que sejam eles, antes de mais e não diretamente os bispos, a intervir, que sejam eles a determinar este caminho, sabendo que por trás irão terão sempre os bispos, que sob o ponto de vista canónico é importante que o façam – cada bispo na sua diocese e todos no seu conjunto mas, quem está à frente destas coisas têm de ser pessoas profissionais e é isso que nós queremos. Ter uma organização preferentemente laical e competente para tratar destes casos.
Todo este processo terá ferido a própria credibilidade da Igreja Católica em Portugal. Acha que vai demorar a recuperar essa credibilidade?
Houve tanto fumo nos Media e nem sempre de boa qualidade. Posso dizê-lo com toda a franqueza – reconhecendo que os órgãos de comunicação social são fundamentais para o diálogo com a sociedade, e agradeço todo o trabalho feito com muita competência, interesse e paixão. Mas também houve muita desinformação no meio disto tudo, ao passar a ideia de que isto na Igreja é tudo um covil de abusadores. Os próprios números, por maiores que sejam, dão isso: existem e existiram casos que ainda estão a ser tratados e nós não fechamos os olhos, não olhamos para o outro lado e temos consciência de que temos que melhorar o nosso sistema.
Não é que a Igreja tenha mais abusadores do que outras situações, mas é duplamente grave, também para nós. A credibilidade mais importante é a que está dentro de nós. Não me preocupa o escândalo, preocupa-me que tenham existido esses casos. A credibilidade vem daí, não é de se conhecerem, é de existirem. Ter a coragem de chamar as coisas pelo seu nome e de agir, não é falta de credibilidade… É quando eu posso dizer ‘errei’. Isto não me tira a credibilidade! O pior seria eu cometer uma asneirada e para me defender continuar a encobri-la ou simplesmente dissimulá-la. Quem quiser outro tipo de credibilidade vá à vontade, comigo não pega. A credibilidade vem da busca da verdade das coisas para se encontrar soluções. A atual fase é precisamente a da intervenção e é para isso que aí estamos.
Há pessoas que agradecem, há grupos na Igreja que acham que isto foi tudo muito mau porque veio levantar problemas que podiam nem sequer ser conhecidos e que se poderiam tratar discretamente. Não, casos destes precisam de ser tratados abertamente porque são um problema social aqui em Portugal, no mundo e dentro da Igreja. Só chamando pelo nome, falando sobre isto tomando atitudes corretas, é que nós podemos inverter esta situação. Isto para mim chama-se credibilidade – se outros têm outra noção de credibilidade eu não a sigo.
Presidência da CEP
Foi eleito para um novo mandato na presidência da CEP. Parafraseando outros eleitos, podemos afirmar que é o presidente de todos os bispos de Portugal?
Pois, eu não conheço outro… Numa eleição, imagine que fosse por unanimidade… Eu também teria votado em mim e seria uma coisa pouco simpática. É natural que alguns pensem noutros, mas isso faz parte do jogo da própria busca de quem são as pessoas indicadas para o lugar. Também se põe a questão de saber se há candidaturas: não há candidaturas nenhumas. Há aquilo que são pessoas que são indicadas pelos outros bispos, numa eleição normal, e depois dizem que sim ou que não.
Nesta situação poderia ter dito, e não para ter uma vida mais cómoda, porque este foi um ano, não direi difícil, mas desafiador e que exigiu tempo e muitos contactos, mas vale a pena. Se há problemas é preciso enfrentá-los.
Chegou a colocar a hipótese de não estar disponível para um novo mandato?
A mim próprio sim! A mim próprio sim, porque eu tenho uma diocese para cuidar e a diocese também se ressente se o bispo está muito tempo fora. Isso nem sempre é simpático. É por isso que estamos a viver uma Igreja sinodal, que vai dar trabalho para se movimentar nessa direção, mas é para aí que vamos. Há certas coisas que é o bispo que faz e outros podem fazer. A estruturação do meu próprio trabalho e dos colaboradores se ajustarem a mim e eu a eles, é uma aprendizagem que vamos fazendo, mas merece a pena trabalharmos para isso.
Relativamente ao funcionamento da própria estrutura da CEP: há um pouco a sensação de que a CEP reage tardiamente aos problemas da sociedade, em termos públicos. Não há tomada de posição em tempo real. Têm várias comissões episcopais, setoriais, mas não se vê, no dia-a-dia, um acompanhamento da atividade social por parte dessas comissões, pelo menos em termos de imagem pública. Há muito a trabalhar neste campo, está alguma coisa pensada?
Há muito a trabalhar nesse sentido e de articulação. Hoje temos que trabalhar mais em rede, não há dúvida. Este caminho de sinodalidade que estamos a fazer em toda a Igreja, a partir da base das paróquias, das dioceses, dos continentes e de toda a Igreja, deve sentir mais nas conferências episcopais. Mesmo ao nível da Igreja – resta ao nível da própria organização da Igreja alterações no Código de Direito Canónico que permitem mais isso. As conferências episcopais nascem do Vaticano II e no Direito Canónico estão quase ausentes em termos estruturais. Claro que os bispos podem, e é essa a tendência e boa: a realidade andou muito mais adiante do que o Direito, mas agora é preciso sustentá-la.
Não vamos perder a noção de que a diocese é a célula base onde, no terreno, estão as paróquias, estão as vigararias, etc. Dentro de uma Igreja com o seu bispo, essa é a célula estruturante da Igreja, mas isso não pode ser coutada fechada. Trabalhar em rede vem do Vaticano II e temos que aperfeiçoar, como diz, quanto à visibilidade etc.
Mas temos de ter em conta o seguinte: muita dessa visibilidade faz-se, você falou das comissões, mas há tantas outras instituições da Igreja – Cáritas, a nível da educação – que estão a trabalhar constantemente. A articulação com as dioceses e a visibilidade de tudo isto para a Igreja, para fazer com que tenhamos maior identificação de propósitos – desde as paróquias até ao topo da hierarquia cristã e das lideranças cristãs – isso é muito importante. Esse caminho sinodal, que estamos a fazer, no qual eu tenho muita confiança, de que vai trazer à Igreja um movimento que começou e que vai continuar. Mas dou-lhe razão, temos aí um caminho a continuar.
Dizia que é necessário alterar o Direito Canónico para que assim aconteça?
Há um grupo de canonistas que está a seguir o Sínodo e a apontar, a partir das sugestões que vão sendo feitas, quais são as alterações que se devem fazer no próprio Direito. Por exemplo: na diocese (de Setúbal), nomeei uma senhora como a chanceler da diocese – normalmente o chanceler em órgãos específicos da diocese devem estar lá, mas se depois diz que deviam ser padres, já não dá para pôr lá à face do Direito… Pode-se pedir a exceção a Roma, mas isto significa que o Direito também tem de acompanhar isto, promover o que já está a acontecer e dar-lhe normas de direito de funcionamento.
Por exemplo em Portugal, nota-se a necessidade da Igreja Católica ter um interlocutor para falar com a sociedade e não 20 de acordo com as suas dioceses…
Eu acho que isso tem razão de ser, e nestes dias falou-se muito sobre isso. Em alguns casos houve uma certa cacofonia, podemos dizer, mas por outro lado também não temos de passar o mesmo trombone de um para o outro. A diversidade de modos de expressão é mais do que legítima e nós não queremos uma Igreja monotónica. Agora, termos um trabalho mais assertivo do ponto de vista comunicativo parece-me que sim. Aliás estão-se a dar passos nesse sentido, com a participação de leigos e de leigas competentes. Por exemplo o secretário da CEP não tem de ser um bispo. Primeiro era pressuposto que fosse um bispo, agora o padre Manuel Barbosa não é bispo, e amanhã pode ser um leigo. São movimentos que vão acontecendo na Igreja e que precisam ser feitos.
Já houve tempos em que o secretário da CEP funcionava muito como o porta-voz da CEP. Colocava-se uma questão e ele respondia em nome da CEP. Neste momento não está a acontecer. Acha que vão ser dados passos nesse sentido?
Nós temos assessorias de comunicação, mas precisamos de ter um secretariado mais organizado. Alguns passos já foram dados neste sentido, outros vão acontecer.
Eleição de novos bispos
No discurso de abertura da Assembleia Plenária apelou à disponibilidade dos bispos, caso fossem eleitos, para os diferentes cargos, e aconteceu essa eleição durante a Assembleia. Mas falava desta disponibilidade sobretudo por causa da nomeação de bispos para Portugal. Tem sido notícia a manifestação da indisponibilidade por parte de alguns que são indicados para bispo: é isso que está a causar demora na nomeação?
Não sei. Tenho lido isso nos jornais e não tenho elementos para dizer sim ou não. Quando uma pessoa é contactada para lhe dizerem ‘o Papa nomeou-te bispo’, já é no fim de um processo.
Mas se ele recusar, o processo começa de novo…
O processo começa de novo…
Poderá ser isso que está a atrasar a nomeação para algumas dioceses?
Não creio. Daquilo que sei, algumas coisas têm demorado demasiado tempo para serem enviados os processos para Roma.
O que acho é o seguinte: este processo que nós temos não está a funcionar. Nós termos neste momento duas dioceses que já há um ano e tal estão sem bispo, uma já quase há um ano e meio, isto não é aceitável a meu ver.
Significa que, numa Igreja sinodal, o processo de eleição dos bispos que não é para pôr na praça pública e fazer candidaturas – não é nada disso, isso não pode ser; mas, por outro lado, acho que nós precisamos de rever este processo para agilizá-lo e para o tornar mais participativo para se para se encontrar caminhos.
É mais um caso em que o decurso do Sínodo pode levar a mudanças no Direito Canónico?
Eu penso que algumas coisas podem mudar agora. O papel do Papa na nomeação dos bispos de todo o mundo é muito importante, porque isso é típico da Igreja católica. Neste momento já há uma grande participação em termos de consulta de pessoas – leigos, padres, bispos – mas, a meu ver, isto pode ser organizado de outra forma, agilizando melhor, tornando mais rápido e eficiente o processo de escolha.
Ainda relativamente à questão da nomeação dos bispos: a confirmarem-se estas recusas por parte de alguns padres, isso não é um pouco contraditório com a disponibilidade para o compromisso, para estar na disposição para fazer aquilo que a Igreja lhe pede?
Eu fui nomeado bispo e também tive dúvidas quando me chamaram e compreendo que sim, que outros também as possam ter. É um discernimento que se tem de fazer, um discernimento na disponibilidade. Mas também posso aceitar que alguém diga: não, eu realmente não sinto. Pode não ser simplesmente uma questão de comodidade ou não querer.
Ser bispo hoje, é de fato, mas sempre foi… Só quem quiser fazer isso em termos muito pessoais e de prestígio pessoal, que é aquilo que o Papa dizia ser um grande perigo. Aqueles que querem é bom que não sejam – os que desejam muito como uma promoção social e é bom que não sejam. Também estou de acordo.
Novidades do Sínodo
Voltando ainda à questão do Sínodo: a síntese da CEP apontava para a dificuldade em acolher e aceitar a diversidade, como casais em segunda união, pessoas com atração pelo mesmo sexo ou uniões homossexuais, tensões em temas ditos fraturantes, acesso da mulher ao sacramento da Ordem, a ordenação de homens casados, a identidade sexual e de género…
Tudo aquilo que está na ordem do dia da discussão dentro da Igreja e na sociedade. Aliás, o próprio Papa colocou à Igreja estes temas dizendo: primeiro estas pessoas precisam de ser acolhidas e isso é verdade clara. Jesus nunca recusou ninguém por nenhuma dessas questões – e nem se punham essas questões nessa linguagem. Mas hoje temos questões novas que o Papa Francisco diz ‘não busquem simplesmente soluções do passado para os problemas de hoje’, não vai dar certo. Nós temos questões que não podemos verdadeiramente ignorar: sabemos que grande parte dos casais, também dos matrimónios que se fazem na Igreja, acabam em separação -essas pessoas são simplesmente postas fora? Caminhos que o próprio Papa Francisco foi abrindo sobre as questões de matrimónio e precisam ser repensadas e ajustadas, não simplesmente como uma questão de Direito, mas abertura para com as pessoas, ajudá-las a fazer um caminho de verdade e discernimento sobre a sua própria vida. É isso que o próprio Papa Francisco diz, para que cada um se realize a seu modo e na medida da sua possibilidade. A Igreja não é só gente perfeita! É de gente que, às vezes, vive situações onde uma solução normal não chega! Então, tem de se fazer o que aconteceu no Evangelho: tiveram de ‘descapotar’ a casa para que um doente chegasse à beira de Jesus. Isto é importante: encontrar soluções novas! Para essas soluções novas é preciso desestruturar algumas coisas para que se encontrem os caminhos novos. Isto, para mim, é muito claro.
Algumas coisas estão em franca discussão, como a ordenação de padres casados… Não é novidade nenhuma. A Igreja greco-católica do leste europeu, por exemplo, tem padres casados e alguns vivem aqui entre nós com a sua família e estão ativamente no ministério. Para eles, causa uma estranheza porque é que a Igreja Latina, a partir do Concílio de Trento, acabou com os padres casados. Isso é uma questão disciplinar – ainda há dias o Papa o repetiu – é uma questão disciplinar, não é dogmática, que deve ser discutida, aceite e implementada pela Igreja no seu todo e não simplesmente porque cada um.
Falou do sacerdócio das mulheres: isso para mim é um tema que está em cima da mesa. Não se põe ao mesmo nível dos outros, é mais complexo. Em termos culturais é algo diferente e não temos de olhar simplesmente para a Igreja na Europa, mas para a Igreja que está em todo o mundo, em diferentes culturas. E se chegar a essa conclusão, a Igreja deve ser preparada para tal e deve fazer o seu caminho, na totalidade da vida da Igreja (e, quem diz isso, diz outros problemas). Por outro lado, não é simplesmente uma questão de moda, mas de ir ao encontro de uma sociedade que mudou e de uma cultura que está a mudar e encontrar a linguagem e caminhos novos para ir ao encontro dessa cultura. Foi sempre assim na Igreja!
Quando foi conhecida a síntese da CEP alguns padres vieram a público dizer ‘esta síntese não sei como foi feita, por que a minha paróquia não teve estas conclusões’. Não há um movimento que pode contrariar tudo isto?
Quem pensasse que mudanças destas não iam suscitar opiniões diversas… Eu recebo constantemente coisas dessas e é natural que seja assim.
O contraditório é muito importante porque, num projeto que se leva tão alegremente para a frente, as razões contra devem-nos fazer pensar claramente o projeto para evitar coisas más. Quando nós pensamos em Igreja, temos de aceitar esta discussão e depois temos de ter a coragem profética de dizer: agora é preciso ir para a frente!
Fátima e as crianças do mundo
Enquanto presidente da CEP e bispo de Leiria-Fátima, acredito que um dossier que tenha sobre a mesa seja o Santuário de Fátima. Que projeto tem para este Santuário?
Essa é uma das coisas que, agora que foi renomeado o reitor, com quem estou constantemente em diálogo – alguma coisa vou conhecendo após um ano na diocese, algumas dinâmicas vão sendo importantes – mas o Santuário tem uma dinâmica que está em constante transformação, a encontrar respostas novas para tempos novos. Eu não me sinto ainda confortável para dizer: esta é a linha. Mas algumas coisas são importantes. E uma das coisas que acho que é importante para o Santuário, também com a canonização dos pastorinhos Francisco e Jacinta e o processo da Irmã Lúcia, é focar, não apenas do ponto de vista de reflexão e espiritual, mas de ação concreta, a atenção aos mais pequenos, concretamente às crianças. Quando vemos que no mundo morrem, todos os dias, muitas crianças, em números horrorosos, de fome, crianças que são abusadas a todos os níveis, crianças que não têm a escola… Isto não pode passar ao lado do Santuário. Maria veio precisamente para estas crianças! Além disso, encontrar um Evangelho para os mais pequenos, para aqueles que, precisamente, estão fora… Os pastorinhos não iam à escola: interessante que Nossa Senhora mandou-os ir à escola. Viviam no meio do mundo que lhes mete medo e a linguagem que eles utilizam é infantil, é a linguagem da guerra, da pandemia (dois deles foram vítimas da pandemia da gripe espanhola).
Tomar a sério a Mensagem de Fátima significa dar ao Santuário de Fátima uma perspetiva nesta direção. Estamos a começar a dar alguns passos, mas tem de ser mais fundo. Fátima tem de ser isto para que não corra o risco, como Santuário, de ser um nicho onde se vai fazer devoções e depois se volta e tudo continua na mesma. Mas seja algo que mexa com as pessoas! É essa a função dos Santuários! Dada a projeção internacional do Santuário, pode fazer uma diferença.
Também neste momento da história em que a Igreja Católica combate os casos de abuso sexual?
Quando se fala de crianças e de abusos… A fome é o maior abuso! A fome, a miséria, a falta de educação, a falta de água que sofrem muitas crianças… Nós fizemos um caminho na nossa sociedade… Eu quando era pequeno, uma das funções era ir buscar água para casa porque não tínhamos água corrente. Quando isto acontece em quilómetros, como em tantos lugares do mundo, onde crianças vão buscar água para casa a duas horas de distância, alguma coisa tem de mexer. Fátima não pode ficar estranha a toda esta linguagem.
Fátima, no contexto da diocese, já está tudo pacificado entre o clero da diocese?
Pacificado neste sentido: uma instituição como o Santuário dentro de uma diocese, que não é assim tão grande, evidente que tem um peso e que é preciso equacionar bem e ir solucionando os problemas que vamos encontrando. Mas o Santuário também é uma bênção, para o país e para aquela diocese do ponto de vista espiritual, da dinâmica de vida para mais novos e mais velhos, da própria projeção da diocese e abertura de caminhos.
Enquadrar isto tudo, a começar pelos padres da diocese, que tem um clero que já não é numeroso, onde alguns se dedicam ao Santuário, a própria função do bispo, que não é de condicionamento, porque o Santuário tem a sua vida… É uma realidade que outras dioceses não têm.
Referia-me também às divisões que há entre o próprio clero, nomeadamente porque consideram que o clero que está no Santuário é privilegiado em termos de remuneração…
Acho que é um problema que já está bastante mais redimensionado e que nós estamos a discutir para toda a diocese as novas normas. Aliás, já encontrei isto a caminho. Isso também está acautelado, não só em relação ao Santuário, mas padres que podem ter outra remuneração por outras funções que têm fora do âmbito da diocese. Há formas de compensar tudo isso. É importante ter uma base que seja justa para todos, seja para o bispo seja para os sacerdotes, que tenha estipulado quais são os tetos.
Jornada Mundial da Juventude
A JMJ está à porta. O que espera deste acontecimento e o que espera que fique no pós-Jornada para a Igreja em Portugal?
Isso vem do que está acontecendo agora! Houve um esforço muito grande de encontrar pessoas jovens, e alguns não jovens, para o que se está a fazer, que é tão importante como a própria realização.
O que se fez está a ser um esforço muito interessante, dentro da Igreja e fora dela: a articulação com autoridades, com instituições, processos em curso, não só da logística mas muito mais, de interesse, de motivação de pessoas. Isto é, para mim, o mais válido que está a acontecer porque implica pessoas. Depois, basta que toda a gente não entre na ressaca pós-jornada, que finalmente acabou.
Isto criou um movimento que, se não parte de dentro, se não motivou pessoas a levantar-se (que é o tema da jornada), sair do sofá das comodidades, individualizar e criar cada um o seu grupo e a sua Igreja, para estar em ligação com os outros… Esta é a cultura que é preciso que passe para a Igreja, particularmente na nossa juventude, e também para o mundo. É isso que o Papa está a desejar!
A vinda de pessoas aqui e abertura Internacional espero também que seja algo que fique.
Espero sobretudo que fique, a nível de cada diocese, a estrutura que fizemos: onde às vezes paróquias que nem sequer tinham um grupo de jovens, agora têm, o COP (Comité Organizador Paroquial), e as vigararias têm o COV (Comité Organizador Vicarial)… Se nós conseguirmos manter esta rede capilar de jovens, para mim é uma rede fundamental e luminosa! Depois, aprendemos a dar responsabilidade a estes jovens, a pô-los a gerir estas coisas. É isto que me interessa! Os nossos jovens não podem ser considerados nas nossas paróquias só como destinatários de serviços, organização, processos, discursos, etc. Têm de estar dentro da feitura de tudo isto.
Voltando à Igreja sinodal, diz-se por todo o lado que os jovens participaram pouco… Isto é algo que, com as Jornadas e o processo sinodal da Igreja, é muito importante. E seria um dos pontos, para mim, mais importantes.
Para que a ressaca e o esvaziar do balão não aconteça depois do esforço de preparação, há quem sugira que se defina um plano para a pós-jornada. Adiantou essa rede capilar que existe, de COPs, COVs, CODs. Pode ser a Conferência Episcopal a definir o plano para as pós-jornadas?
Nós vamos ter as Jornadas de formação do episcopado sobre esse tema e certamente que esta é uma das virtualidades da jornadas que é preciso avançar, para além da carga da experiência. Os símbolos das jornadas vão chegar a Leiria no fim deste mês e o que tem acontecido por aí a baixo são vagas interessantes…
Dos eventos significativos, dos acontecimentos em curso, e se vão intensificar naquelas duas a três semanas, que depois têm o centro em Lisboa, mas que isto possa ser algo que fique e que dê um elã novo à nossa juventude
Quando estiver com o Papa Francisco, em Lisboa e em Fátima, se estiver confirmado, qual é a mensagem que vai transmitir?
Primeiro vou escutar a mensagem que ele tem para nos trazer. Antes de mais, gostaria de pedir que continuasse o seu ministério, como ele tem feito. Tem sido um Papa que tem inspirado muito os nossos jovens, apesar da sua idade, tem apresentado caminhos novos para a sua Igreja. Quando a gente pensa que a Igreja institucional é pesada, é monótona, e os profetas são aqueles que estão um bocado mais à margem… Tem verdade tudo isso, mas olhem que profeta como um Papa como este… O Papa João Paulo II sem dúvida foi um profeta na Igreja, mudou tantas coisas. Estes últimos papas tiveram uma dimensão profética muito grande! E é esta mudança que está em curso que é preciso confirmar e fazer com que tenha resiliência na Igreja.
Tem alguma indicação de quando haverá programa para a sua visita a Portugal?
Isso tem os seus tempos determinados. As coisas devem estar equacionadas e têm sido diariamente faladas. São constantes as comunicações da organização, também no que diz respeito ao Santuário. Estamos em comunicação para solucionar os problemas e verificar as condições. Tem o seu tempo! Roma tem a experiência das visitas papais e das Jornadas.
Democracia em Portugal
O D. José Ornelas esteve na receção ao presidente brasileiro Lula da Silva, também na sessão evocativa do 25 de Abril. Neste contexto dos 50 anos do 25 de Abril que diagnóstico que faz da democracia em Portugal?
Eu estava aqui perto, vivi o 25 de abril em Lisboa, a partir de Alfragide, e sem dúvida foi um dos dias mais felizes da minha vida. E mais o processo que se seguiu, porque depois nesse verão passei em Angola quando já tinham começado os distúrbios, depois fui para Moçambique e estive lá na independência de Moçambique, voltei em 76 para continuar o estudo da Teologia e isso marcou toda a minha vida. Para mim o 25 de Abril é sempre uma data muito importante.
Recordo que na tarde do 25 de Abril de 74, quando já as coisas pareciam estar confirmadas, nós tínhamos um radiozinho de ondas curtas e seguíamos as transmissões das colunas militares que eram enviadas para aqui e para ali, e quando aquilo já parecia seguro, depois da rendição do Carmo, um padre italiano que tinha vivido o tempo do fascismo dizia-me: Ornelas, uma revolução é um dia muito bonito, vocês vão recordar sempre, mas agora é que começa a questão de construir a democracia.
A revolução fez-se, com pouco custo de sangue, mas depois é preciso construir a democracia e isso não está feito de um dia para o outro, levou tempo.
O Presidente da República falou disso e das diversas conceções que se tinha e que se foram manifestando para ajustar o caminho. Os dois, três primeiros anos foram cruciais, mas tivemos gente à altura. Agora hoje, com a mudança radical deste mundo, com as dificuldades que nós temos e com a evolução também geoestratégica que está em curso, nós precisamos de rever de novo a nossa democracia e os perigos estão aí à vista. Eu acho que a nossa democracia está formalmente consolidada, ninguém pensa voltar para o fascismo, mas há movimentos na sociedade que não deixam de preocupar. Acho que é para isso também que estamos aí e é preciso que tenhamos consciência de que esta corrupção, a situação de desencanto da população, isto pode ser muito grave para a democracia. Preocupa-me sobretudo que os mais jovens não tenham apetência para se comprometer na política.
Como é que vê o facto de termos em Portugal – ainda recentemente no Parlamento se viu isso – um líder de um partido utilizar uma citação bíblica para defender as suas ideias, que recorre várias vezes à sua condição de católico ou de cristão e inclusivamente publicando imagens a rezar numa igreja? Não o preocupa este tipo de ação de um responsável político?
Eu penso que toda a gente tem o direito de fazer a sua leitura segundo a ideia que tem até da sua própria fé. Mas esse filme já o vi muitas vezes aqui, quando eu estava convencido que estávamos de facto em África a defender a fé e o império. Isso foi a ideologia que me foi trazida. Foi preciso refazer tudo isso, dentro da Igreja e dentro da sociedade. Quando chegou o 25 de Abril estava já numa outra mentalidade. Mas é muito fácil as pessoas deixarem-se ajustar por critérios que são de regresso ao passado e dizer ‘estávamos muito melhor antes’. A manipulação da fé é trágica. É legítimo dizer ‘eu inspiro-me nisto para…’ Mas, antes de mais, é preciso que isso seja visto dentro da comunidade e saber se as consequências da leitura da Bíblia é aceitável dentro da comunidade. Se não, cada um tem o seu Deus e tem os seus devotos e isso também pode ser manipulação da própria imagem de Deus. Quando – e eu não digo que seja errado – levavam todos os soldados a Fátima para receberem a bênção de Nossa Senhora para irem combater: rezar para que os soldados fossem à guerra e voltassem é muito certo! Mas dizer que Nossa Senhora abençoa aqueles que vão para a guerra e para aquela guerra, isso já é outra história.
Ontem [na sessão do 25 de Abril no Parlamento, ndr] foi dito que Deus está connosco, é preciso ver: connosco quem, e em que sentido é que Deus está connosco? Cada um pode ter as suas convicções, mas depois é a palavra Deus que nos julga e não nós julgarmos a palavra de Deus e manipulá-la.
A situação atual do país, de vários países, está em crise económica que se está a abater sobre as famílias, e em Portugal, nos últimos meses, isso tem sido particularmente visível. O D. José em Fátima, na semana passada, falou da necessidade das medidas serem adequadas… Acha que o Governo deveria ter outras medidas? Aquelas que tem posto em prática são as adequadas ou que caminhos é que poderiam ser seguidos?
Se alguém soubesse, neste país, assim com clareza e que pudesse dar indicações… Isso é um exercício de política no sentido nobre que eu lhe dou. Não tenho dúvida nenhuma da dificuldade que é gerir um país neste momento. Gerir o país, gerir a Igreja e mesmo opinar sobre coisas destas. Temos aí todos os conflitos a nível dos sindicatos e das diversas categorias laborais com problemas sérios e problemas que o próprio governo reconhece que são justos. Para encontrar medidas para ir ao encontro dessas injustiças, ou pelo menos das questões que ficam em aberto, e para encontrar boas soluções e colocar os partidos de acordo é mais difícil.
Na luta política, eu aceito também e não tenho dificuldade nisso, seria completamente fora de mão estar a pensar que isto se faz só com boas intenções. É claro que a defesa do próprio partido, das próprias ideias tem de ser defendido. Mas a minha questão é saber o que é que se põe na ordem das prioridades: resolver os problemas do país e ceder aqui e ali porque é o país que está em causa ou encontrar simplesmente a lógica do meu partido, a lógica da minha corporação, a lógica do meu sindicato, a lógica do meu patrão ou o que for? Este é o objetivo da política: encontrar caminhos de convergências para que os problemas sejam resolvidos e que não fiquem franjas da população sempre deixadas para trás. Quando eu falo de cuidar dos mais débeis e frágeis, têm aqui um caminho muito especial.
As instituições da Igreja também já estão a sentir a crise?
Em todo o lado e particularmente aquelas que estão ao serviço de pessoas com dificuldades económicas. A Caritas fez um balanço do aumento de pedidos que tem registado, mas as IPSS e outras instituições que estão ao serviço dos mais carenciados da sociedade, como isso aumentou! Não é só na Igreja, é por todo o lado, mas como a Igreja está muito próxima, sente-o muito bem.