Entre o Evangelho e o Poder: a desvirtuação silenciosa de algumas IPSS católicas

Padre Hugo Gonçalves, Diocese de Beja

Nas últimas décadas, as Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) de inspiração católica têm desempenhado um papel vital na sociedade portuguesa. Nascidas do coração da Igreja e enraizadas numa tradição de serviço ao próximo, estas instituições foram — e continuam a ser — expressão concreta da caridade cristã: cuidar dos pobres, acolher os frágeis, servir sem esperar recompensa.

Contudo, começa a tornar-se visível uma deriva preocupante que ameaça desvirtuar o espírito fundacional de algumas destas instituições. De forma discreta, quase imperceptível, assiste-se a uma politização crescente, onde estruturas concebidas para o serviço passam a ser instrumentalizadas por agendas político-partidárias.

Este fenómeno não se dá de forma aberta ou ruidosa. Pelo contrário, é silencioso e estratégico. Inicia-se muitas vezes pela colocação de pessoas em lugares-chave, que aos poucos vão orientando os processos de decisão, os discursos institucionais e até as prioridades das próprias IPSS.

Não raras vezes, estas pessoas não têm qualquer ligação vital à fé católica: não são praticantes, não têm formação cristã, nem compreendem — e por vezes nem respeitam — os princípios que estão na base da missão da instituição que passam a dirigir ou a influenciar. O que deveria ser uma casa de serviço segundo os valores do Evangelho, começa a tornar-se um feudo ideológico, com discursos e decisões que reflectem mais os interesses de determinados partidos ou movimentos do que o espírito de Cristo.

É particularmente grave quando a linguagem evangélica é utilizada como cobertura para sustentar decisões e projectos que, na prática, são contrários à doutrina social da Igreja. Palavras como “solidariedade”, “inclusão”, “justiça social” — profundamente cristãs no seu conteúdo — são esvaziadas do seu sentido teológico e substituídas por interpretações ideológicas, moldadas segundo a lógica partidária do momento.

Esta operação é subtil. Não se trata de confrontar directamente os valores da fé, mas de os reconfigurar, atribuindo-lhes significados novos, compatíveis com agendas que pouco ou nada têm de cristão. A caridade transforma-se em assistencialismo dependente; o serviço ao pobre cede ao clientelismo; a humildade evangélica dá lugar à afirmação de poder.

A consequência mais grave deste processo é a perda da identidade católica de muitas destas instituições. Esta não se perde num dia, mas vai-se apagando como uma vela que arde lentamente. Os símbolos cristãos vão desaparecendo. A oração deixa de ter lugar. Os critérios evangélicos deixam de ser a base da acção. A espiritualidade dá lugar à técnica, e o Evangelho é relegado para um papel decorativo.

E não é raro que aqueles que tentam chamar a atenção para esta deriva sejam vistos como “incomodativos” ou “retrógrados”, como se defender a identidade católica de uma instituição fundada sobre essa mesma identidade fosse um obstáculo ao progresso.

O que está em causa não é uma disputa entre “igreja” e “política”, mas a fidelidade à missão. A Igreja não é contra a política — pelo contrário, anima os fiéis a participar activamente na vida pública. Mas é preciso distinguir entre serviço público com inspiração cristã e instrumentalização política de instituições cristãs.

A questão central é: quem serve quem? Serve a IPSS o Evangelho, ou serve o Evangelho para mascarar outros fins?

É urgente que os responsáveis eclesiais, os conselhos directivos, os voluntários e benfeitores estejam atentos a esta deriva. É preciso garantir que as IPSS católicas não se tornem espaços neutros ou capturados por agendas estranhas, mas continuem a ser comunidades de serviço marcadas pela fé viva.

Isso exige formação, discernimento e coragem. Formação cristã, para que quem serve compreenda o que significa servir à luz de Cristo. Discernimento, para identificar com lucidez as tentações do poder. E coragem, para tomar decisões difíceis quando se percebe que há caminhos que afastam da missão original.

As IPSS de inspiração católica são património da Igreja e da sociedade. O seu valor não está apenas naquilo que fazem, mas no modo como o fazem e no espírito com que o fazem. A sua alma é o Evangelho. Sem ele, tornam-se apenas mais uma ONG, talvez eficaz, mas espiritualmente estéril.

Que este alerta sirva não para gerar divisão, mas para promover fidelidade, transparência e renovação. Porque servir os pobres em nome de Cristo não é um projecto político: é um acto de fé, de amor e de esperança.

Pe. Hugo Gonçalves 
Diocese de Beja

(Os artigos de opinião publicados na secção ‘Opinião’ e ‘Rubricas’ do portal da Agência Ecclesia são da responsabilidade de quem os assina e vinculam apenas os seus autores.)

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