D. Manuel Quintas é bispo da Diocese do Algarve deste 2004. Evangelizar e criar respostas sociais e pastorais que respondam às necessidades de quem permanece e de quem passa pelo sul de Portugal é a determinação da Diocese.
Agência Ecclesia (AE) – D. Manuel Quintas está a completar 10 anos de presença no Algarve, à frente desta diocese. Que balanço faz?
D. Manuel Quintas (MQ) – Foram 10 anos muito desafiantes e estimulantes. Desafiantes porque quem tem na Igreja a vocação e a missão de anunciar o Evangelho e testemunhar Cristo, cada dia, é sempre vivido como um desafio de anunciar sem cessar a pessoa de Cristo e o Evangelho; e estimulantes pelo testemunho, quer dos padres quer dos leigos mais comprometidos e envolvidos – e são tantos felizmente – constituem a força, o estímulo que o bispo recebe para realizar a sua missão.
Foram 10 anos bonitos, posso dizer assim, muito preenchidos, muito cheios.
É curioso que quando saiu a minha nomeação para o Algarve, no ano 2000 (primeiro estive como bispo auxiliar quatro anos de D. Manuel, lá na minha aldeia, no nordeste transmontano, a primeira vez que fui lá disseram-me: “Para o Algarve, que bom, vais passar sempre o tempo em férias. Vais ter férias sempre.” Porque lá a ideia que se faz, no norte, quando se fala em Algarve é férias. Portanto, o bispo vem para cá em férias.
Foi um tempo muito gratificante, um tempo muito preenchido, como eu dizia, também com algum tempo de repouso necessariamente mas foi muito preenchido, muito gratificante.
AE – Quais são os desafios que identifica no exercício do seu Ministério?
MQ – O desafio primeiro é sempre o anúncio do Evangelho.
Eu nunca tive a curiosidade de ir ver a razão porque é que foi fundada a “Folha de Domingo” (jornal da diocese), ver o primeiro editorial. E fui nestes dias, para ver o que é que estaria na origem disso e o primeiro editorial certamente dizia isso. E fiquei muito feliz quando vi lá que a razão e a motivação primeira foi precisamente o anúncio do Evangelho, a realização da missão da Igreja que é de sempre, que é de cada dia, é de cada cristão. E esse é o desafio nos dias de hoje.
No atual quinquénio de atividade e ação pastoral nós fomos inspirados pelo “ide e anunciai o Evangelho”. Esse apelo de Cristo, esse mandato de Cristo é sempre atual, nunca passa. E o Papa Paulo VI sintetizou muito bem a missão da Igreja quando disse que a Igreja existe para evangelizar e é essa a sua razão de ser, faz parte da sua identidade mais profunda, como dizemos nós hoje, do seu ADN. Ao dizermos a Igreja, dizemos cada cristão, cada batizado e naturalmente cada bispo, cada diocese, cada Igreja diocesana.
“Ide e anunciai o Evangelho” é um mandato renovado. Queremos por todos os nossos cristãos em movimento, em ação. E este é o apelo do Papa Francisco quando ele – e muito bem – diz na sua exortação “não deixemos que nos roubem o sonho missionário”. Porque, de facto, no dia que a Igreja deixar de ser missionária deixa de ser Igreja.
O segundo desafio é a dificuldade em adequar a nossa vida de todos os dias, a vida pessoal, a vida familiar, a vida profissional, aos valores do Evangelho. Ou seja, situa-se no “divórcio” entre a fé e a vida.
Sabemos que isto é um percurso de toda a vida e de cada dia. A dificuldade de adequar a fé que professamos à vida que vivemos, iluminar a vida com a fé e vice-versa é um desafio envolvente e englobante.
E por outro lado, refiro o esforço que todos estamos a fazer, não é apenas o bispo, os padres e todos os cristãos, para que uma dimensão social seja mais concretizada, seja mais visível e esteja presente em tudo o que nós somos, como Igreja. Porque se desligarmos a nossa vida eclesial, mesmo as celebrações, da dimensão social, da dimensão da caridade, fica tudo no vazio, nos bons desejos. E não realizamos verdadeiramente a nossa missão, nem nos sentimos satisfeitos.
Como é que nos podemos sentir satisfeitos quando vemos situações gritantes de pessoas que passam necessidade, que se debatem com as consequências das situações que vivemos que tarda em passar?
Queremos e pretendemos que esta dimensão social esteja presente também nas nossas comunidades cristãs.
É um “tripé”: a dimensão do anúncio do Evangelho, que é a dimensão profética, em que os catequistas são a linha avançada; a dimensão celebrativa, ligar a fé celebrada à fé professada, à vida; e a dimensão da caridade, a dimensão socio caritativa que é o outro pé, que é essencial para que a Igreja esteja toda presente, em todas as suas dimensões, naquilo que somos, naquilo que fazemos, naquilo que realizamos.
AE – O Algarve sente o agravar da crise e a necessidade de prestar mais e melhores respostas sociais?
MQ – Há acerca de três anos iniciamos anualmente dois encontros com todos os centros paroquiais. E temos reunido sempre em diferentes centros sociais e paroquiais, permitindo um conhecimento recíproco. Verificamos que havia algum distanciamento entre aquilo que é a razão de ser dos centros paroquiais, a razão porque a paróquia se uniu para construir um centro social e paroquial e aquilo que estava a ser a prática ou a integração nessa resposta pelos seus funcionários.
Um centro social e paroquial é construído é para responder a uma necessidade. Não é um investimento de capital que se faz, antes pelo contrário. Diante da necessidade de suprir uma falha na comunidade, os paroquianos uniram-se e levaram para a frente a construção de um centro social e paroquial, seja para as crianças ou para os idos, também centros de dia.
O centro social e paroquial é também um lugar privilegiado para propor o anúncio do Evangelho. É essa a missão da Igreja! E estava a haver algum “divórcio” , penso que por falta de integração e apoio.
Temos verificado, ao longo destes encontros, que existe uma recuperação até da alegria de servir num centro social e paroquial. Mesmo as pessoas técnicas, que a nível profissional não temos nada a apontar, mas faltava alguma coisa. Estes encontros têm dado outro rosto aos centros sociais e paroquiais. Achávamos que podíamos interromper, mas disseram-nos para fazer pelo menos um encontro por ano.
Nós não trabalhamos sozinhos, a este nível. Há tantas instituições de solidariedade social que não estão ligadas à Igreja e com as quais nós trabalhamos em parceria, apoiando-nos mutuamente, conversando, servindo uns num dia da semana, outros noutra (por exemplo refeitórios sociais ou cantinas sociais, mesmo aqui em Faro estão divididos – Misericórdia, Cáritas, São Pedro, a ordem terceira Franciscana). Isto significa que apoiando-nos mutuamente, dividindo e distribuindo até o serviço por todos torna-se mais fácil corresponder às necessidades e ir ao encontro das necessidades.
AE – Nota que neste momento os casos ainda continuam a acorrer de forma gritante e com grande intensidade?
MQ – Sim. Mas parece-me que já não surgem com aquela premência, com aquela urgência de outra altura. Este serviço, no entanto, continua a ser necessário. Se nós deixássemos de realizar este serviço, que realizamos também com apoios que no vêm da Segurança Social, por exemplo as cantinas sociais, seria muito mau para muita gente. Não podemos de maneira nenhuma deixar de prestar esse serviço.
É evidente que isto é a caridade organizada, a solidariedade organizada que é apenas um aspeto. Muito maior e mais significativo é aquilo que cada um deve e pode fazer dentro dos eu pequeno meio atendendo às situações de vizinhança, atendendo a situações conhecidas, no seu dia-a-dia, porque as instituições não podem substituir aquilo que compete a cada um e aquilo que diz respeito a cada um.
A dimensão da caridade é algo que compete a cada cristão, a cada batizado. Existem as instituições de maneira organizada e estruturada que atendem situações em que um só seria muito difícil. Mas isso também só é possível com a ajuda de tantos voluntários. Sobretudo nos refeitórios sociais, tudo funciona com o voluntariado. É uma maneira também das pessoas simples, individualmente, por vezes de maneira anónima reponderem e corresponderem àquilo que é a missão de cada um e àquilo que é a missão da Igreja de maneira particular.
AE – Nesta ocasião assinalaram-se também os 100 anos da Folha de Domingo. Que desafios o jornal enfrente quando a imprensa escrita vive o dilema entre o digital e o papel?
MQ – Eu penso que a Folha de Domingo constituiu e continua a constituir um instrumento muito válido, ainda nos dias de hoje. É evidente que tivemos de nos adequar aquilo que é a evolução dos tempos, a nível dos meios de comunicação social: deixou de ser semanário para ser quinzenário, sabendo que há uma edição online que está constantemente a ser atualizada e o envio de newsletter para aqueles que estão inscritos.
Quando sai a Folha de Domingo não preciso de a ler porque já a li toda antes, já tive oportunidade de a consultar, de receber toda a informação, de maneira que eu passo as páginas mais para confirmar ou ver se há algo de novo, alguma coisa que tenha surgido ou então releio algum artigo ou algum tema mais em pormenor. E isto é muito bom porque assim conseguimos seja satisfazer aqueles que ainda estão ligados ao papel, e são tantos, e é sobretudo para esses e por causa desses que existe ainda a edição escrita. Não sei até quando vamos conseguir porque não há, no meu entender, nenhum jornal parecido com o nosso diocesano que seja rentável ou que se baste a si mesmo. Temos que investir nele tal como investimos em tantas outras coisas, sabendo que não tiramos dai proveito económico. É um investimento a fundo perdido, mas é a própria diocese, são os próprios cristãos da diocese que patrocinam o jornal. Sem eles não conseguiríamos porque a Folha de Domingo não é rentável. E conseguimos satisfazer também aqueles que, já não precisando da edição escrita, estão ligados à internet e podem consultar a edição online com muita frequência e receber também as diversas informações que traz, de âmbito religiosos, regional e nacional . Penso que conseguimos, com muito e meritório esforço de quem está à frente, tanto da Folha de Domingo como da edição online, corresponder e usufruir: Corresponder às necessidades de informação e usufruir das novas tecnologias da informação também.
AE – Foi apresentado o novo rosto da diocese na internet. É uma presença que não é descurada e é trabalhada continuamente, reforçando em termos de conteúdos e a nível visual. Que importância tem essa presença?
MQ – Para quem consulta a internet sabe que é importante um visual novo. É como nós andarmos vestidos todos os dias com a mesma roupa ou encontrarmos alguém que traz todos os dias a mesma roupa. Sabemos que é apenas a aparecia exterior. Mas a aparência exterior do site é muito significativa porque o primeiro contacto pode ser atrativo, pode ser um chamariz para depois chegar aos conteúdos, chegar à informação que procura a todos os níveos. E de facto eu fiquei muito agradado com a notícia que iam apresentar o novo rosto para o site da diocese, embora agora a informação passa muito pelas redes sociais, mesmo que nem todos tenham essa predisposição para as consultar. É preciso servir em todos os meios… O importante é que a informação chegue a todos de acordo com a vontade de cada um, com o gosto de cada um, com a apetência de cada um.
AE – Não se pode falar do Algarve sem falar do turismo, dos muitos que visitam esta região. A diocese tem uma pastoral própria que recomenda algumas linhas orientadoras às comunidades cristãs na dimensão do turismo?
MQ – Quando falamos em turismo e em Algarve sentimo-nos sempre pequeninos!
Diante de – felizmente – tanta gente que procura o Algarve para descansar, repousar, retemperar as forças físicas, anímicas, espirituais a todos os níveis e ficamos muito felizes! Eu próprio faço referências, nas eucaristias que celebro nas paróquias, a todos aqueles que ali se encontram vindos de todos os lados. Primeiro manifesto alegria de os acolher, que eles se sintam bem como nas suas comunidades paroquias. E o apelo que eu faço é que eles se sintam não apenas a usufruir da celebração da Eucaristia mas que deem também o seu contributo, aqueles que são leitores, aqueles que até cantam num grupo coral. E é muito gratificante passar pelo que verifiquei há dias em Quarteira: fui lá e era um grupo coral de Lisboa que estava a cantar na Eucaristia que eu presidi. Foi uma maravilha! O Grupo Coral do Coração de Jesus cantava, as pessoas de Quarteira também ficaram agradados e sensibilizados por terem alguém que veio à Eucaristia e tal como na Eucaristia da sua paróquia ali cantou.
Estive também noutra Eucaristia onde um grupo de jovens de uma paróquia de Lisboa e animaram a Eucaristia, com violas, que até nem era celebrada numa igreja, mas salão grande. Ali não há igreja, em Vale do Lobo. E fiquei muito agradado! Como é bom para nós sentirmo-nos enriquecidos não apenas com a presença física e a participação nas eucaristias, mas com o contributo que eles podem dar, tal como dão nas suas paróquias.
Este acolhimento, também a este nível, é muito importante e é a primeira recomendação que fazemos para quem vem e é a primeira coisa que espera e deseja de nós.
Promover alguma iniciativa a nível de lazer, é bem-vindo e é acolhido. Se for alguma conferência ou encontro, já é mais difícil porque as pessoas vêm de férias, para repousar, para viver com os amigos, com os conhecidos ou com quem encontram. Participar em algum evento cultural ou musical é possível e, por isso, vamos promovendo sobre tudo na Sé, em Faro há sempre um concerto, um grupo coral. É uma iniciativa bem acolhida porque as pessoas vêm para a Eucaristia e depois ficam para o concerto que houver, o que houver a nível cultural.
També temos ido ao encontro dos pedidos que nos têm feito de celebrarmos as eucaristias à noite, seja ao sábado seja ao domingo. E noite adiantada, às 21h30, 22h00 nalguns casos. O tempo está mais fresco e as pessoas não perdem uma parte do dia para irem à Eucaristia, a nível de praia e descanso, usufruem do dia todo, do domingo todo e depois, à noite vai à Eucaristia com a família, já num ambiente de descanso.
É evidente que teríamos muitos outros projetos a realizar, mas sentimo-nos muito pequeninos diante de tanta necessidade ou de tanto que seria bom propor, mas não temos capacidade para isso.
Felizmente temos muitos padres que nos ajudam porque o número de missas aumenta no verão. Claro que os padres algarvios também precisavam de ir a férias (eu digo tirem férias noutra altura, noutro do mês do ano, ou 15 dias num lado e 15 no noutro, em que haja menos apelos a nível diocesano e nível paroquial). No verão é muito difícil para um padre algarvio ausentar-se da paróquia exatamente porque aumenta o número de missas e os pedidos para confissões. Há padres que vêm passar férias e são tantos felizmente e nos ajudam também na celebração da eucaristia dominical.
AE – Vai sendo também importante o colocar determinadas partes da Eucaristia noutras línguas, o inglês, o francês, no sentido também de integrar mais aqueles que não falam a nossa língua?
MQ – Sim. Sobretudo nalgumas igrejas do litoral há missas em inglês. Há partes da missa em inglês e nomeadamente os padres mais novos vão tendo já a capacidade de resposta a esse nível.
O inglês também é muito utilizado em muitos casamentos. Seguramente que o Algarve é a diocese de Portugal em que há mais casamentos estrangeiros, são muitos mesmo, creio que mais de cem por ano. E são sobretudo esses padres mais jovens que aproveitam esse tempo não apenas para celebrar o sacramento em si mesmo mas também para anunciar o Evangelho, partilhar a fé, celebrar com aqueles que chegam. É um setor que procuramos desenvolver sempre mais no sentido responder, integrar aqueles que, sendo de outras línguas, outras culturas desejam e precisam de celebrar a Eucaristia e celebrar connosco também.
AE – O Algarve tem sempre também esta dualidade, o litoral e a serra, o interior onde estão muitos idosos. Há também muitas instituições, nomeadamente da Igreja a trabalhar na integração, no acompanhamento destas pessoas mais idosas e desapoiadas?
MQ – Eu penso que a Igreja, mesmo que fechem tantas outas instituições, estou a pensar sobretudo nas escolas, a Igreja mantém-se! Mesmo que não tenha a vitalidade de outros tempos porque faltam as crianças e faltam os jovens.
Já visitei duas vezes a diocese toda e também a serra algarvia onde andei o ano passado, no concelho de Alcoutim. E aí, se antes as pessoas vinham à igreja ou às escolas primárias transformadas em capelas a seu pedido e por acordo com a câmara municipal, nalguns lugares devido à redução das pessoas e aumento da idade dizem ao padre que já conseguem ir lá.
Agora já não conseguem! E os padres dizem: “E então se nós formos às vossas casas”? “Venham, venham”, dizem. Os padres reúnem.se então na casa deste, depois daquele. E muitas vezes é assim, sobretudo nos montes. As pessoas juntam-se na casa de um e é ali que celebram a Eucaristia ou escutam Palavra. Temos de atender também a essa limitação mas pelo menos as pessoas sabem que há alguém que os visita, que está com eles, que até reza com eles. Agora não é na igreja nem sequer na que foi escola primária, mas na casa de cada um.
Quando fecha uma escola numa freguesia da serra algarvia significa o princípio do fim. Depois os correios mais próximos também fecharam, agora são os centros de saúde que estão lá longe… Quando sabem que o padre vai lá, passa por lá, se não é todos os domingos é cada quinze dias, mesmo durante a semana, está com eles, fala com eles, reúne-se nas casas deles, isso é para eles sinal de contorto, de vencer a solidão. E de uma esperança cristã.
A missão da Igreja passa também necessariamente por ai, não apenas grandes multidões, não apenas reunir em igrejas, mas também nas casas das pessoas, individualmente, algumas já sem possibilidades até de saírem de casa.
E este foi também um dos aspetos mais gratificantes nestes 10 anos: as visitas que eu fiz na serra algarvia, testemunhando a proximidade entre as pessoas e como se defendem uma às outras, como se protegem. Como elas têm a preocupação de saber se a pessoa hoje se levantou e saiu à rua.
Há montes que fecham, existem casas em que não está lá ninguém, talvez ao fim-de-semana.
São estes os quadros da vida de uma diocese e de um bispo que são muitos estimulantes, que são igualmente gratificantes e que nos ajudam a superar tantas dificuldades que fazem parte da nossa vida.