Ensaio sobre Saramago

A adaptação ao cinema de “Ensaio sobre a Cegueira”, de José Saramago, não deixaria de implicar uma profunda modificação da narrativa, mas foi possível não atraiçoar o original no que respeita ao espírito da obra. Ao contrário das conclusões de uma associação de cegos americana, que considerou o filme uma agressão à condição de invisual, o filme não é de forma nenhuma sobre a cegueira, mas sim sobre um micro-cosmo que representa o mundo em geral, com os seus conflitos, as suas insuficiências éticas ou morais, o relevo da ambição que condiciona os comportamentos. A narrativa, centrada em três camaratas distribuídas em outros tantos pisos de um só edifício, é de uma rara dureza, revelando confrontos e imposição de interesses paralelos ao que se passa no mundo exterior em tempos normais, mas que no decorrer da acção se ignora totalmente como se desenvolve. O exterior não passa de um mundo desconhecido a que o acesso é vedado por uma equipa de guardas cruéis, que julgam defender a população de um contágio a todos os títulos pouco suportado cientificamente. Fernando Meireles, cineasta brasileiro com larga experiência, tomou a seu cargo a difícil adaptação do romance de José Saramago ao cinema, com a colaboração do argumentista Don McKellar. O resultado obtido é tão eficiente que não deixou de levantar as mais diversas polémicas, não só nos Estados Unidos, sem prejuízo do sentido crítico da obra, em que as relações humanas, o racismo, a criminalidade fácil, são temas que se vão desenvolvendo, em nada limitando as atitudes ou consequências da condição de cegueira. Em “Ensaio sobre a Cegueira” é bem mais importante a interpretação do retrato do mundo transportado para um espaço limitado, que a dureza das imagens, a violência humana expressa em atitudes pouco coerentes com dificuldades comuns, tudo conjugado para que vejamos o mundo real, com uma mensagem final não propriamente de esperança.

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