Enquadramento teológico do pontificado de Bento XVI

H. Noronha de Galvão

Pode reconhecer-se nas intervenções feitas por Bento XVI, ao longo do seu pontificado, as orientações fundamentais do seu pensamento, já presentes no seu ensino universitário anterior e nas suas obras teológicas. Das suas preocupações fundamentais como teólogo constou sempre a tentativa de restaurar, na crise civilizacional que diagnostica no nosso tempo, as referências fundamentais da existência humana que estão em perigo. Uma das suas fontes principais de inspiração é St. Agostinho, também ele vivendo num tempo de profunda crise em que a Idade Antiga soçobrava perante as invasões bárbaras. Foi apenas pela sabedoria da fé cristã, descoberta ao ouvir a pregação de St. Ambrósio, que pôde superar o cepticismo do seu tempo, a descrença de a razão humana poder atingir a verdade. Também Joseph Ratzinger considera que só a fé que Jesus Cristo nos trouxe pode salvar uma razão debilitada hoje pela redução ao positivismo, a qual lhe retira toda a capacidade de encontrar o verdadeiro sentido da vida e a verdadeira esperança. É essa esperança que o Papa quer restituir ao homem actual – como explanou na encíclica Salvos na esperança – reconduzindo-o àquela fonte de valores que só o autêntico amor de caridade nos revela. Já na sua primeira encíclica mostrara como Deus é Amor, de tal modo que uma razão aberta ao mistério de Deus se torna capaz de encontrar na vida pessoal e social a orientação de que carece. Este tema está sempre ligado ao motivo da verdade, presente já no seu lema episcopal e papal (cooperatores veritatis), verdade cuja solidez só Deus pode garantir. Caridade na verdade – a sua terceira encíclica – é assim a perspectiva de fundo de toda a doutrina social da Igreja.

O horizonte último do pensamento do Papa é aberto pela fé em Jesus Cristo, que fez questão de apresentar, de maneira pessoal e fundamentada, no livro Jesus de Nazaré. Ao escrevê-lo não como exercício do seu magistério eclesial mas como testemunho de fé pessoal, ele repetia o que já fizera Pedro cujo ministério Bento XVI actualiza para o nosso tempo. Antes de receber das mãos de Jesus a função de primeiro responsável da Igreja, Pedro fez a sua profissão de fé em Jesus, reconhecendo-o como o Messias, o Filho de Deus (cf. Mt 16,16). Uma fé que Jesus declara não provir “nem da carne nem do sangue mas apenas do Pai” (cf. Mt 16,17). Esta a origem necessária da fé em Jesus Cristo, dom de Deus que o Espírito renova em cada tempo que é dado à Igreja viver.

Deste modo, abre-se o horizonte do mistério trinitário de Deus revelado pela fé em Jesus Cristo e que, simultaneamente, é condição indispensável para que o conhecimento de Jesus se não feche nos estreitos limites de uma concepção positivista da história. O “Jesus real” não é o da orgulhosa redução positivista, incapaz de reconhecer o seu autêntico significado e perdendo-se, por isso, nas mais arbitrárias e contraditórias interpretações. Mas se, pelo contrário, a razão acolhe na humildade o mistério que infinitamente a ultrapassa, e também infinitamente a dignifica, tudo ganha coerência, e a mensagem de Jesus aparece límpida e salvadora.

Segundo a visão agostiniana que J. Ratzinger partilha, o mistério trinitário divino surge como a tripla referência última do ser, do saber e do querer, para a existência da pessoa humana criada à imagem e semelhança de Deus. É, com efeito, no seu ser criado que ela remete para o Pai criador, no seu saber verdadeiro que ela remete para o Verbo e Filho de Deus, no seu querer de amor que ela remete para o Espírito Santo, o Dom de Deus que derrama a caridade nos nossos corações (cf. Rm 5,5). É este conhecimento de Deus que possibilita e garante a lucidez indispensável para desmascarar todo o pensamento ideológico nas suas formas mais delirantes, isto é, quando construídas sem referência à realidade, à verdade e ao valor, tentando, pelo seu artifício, escravizar-nos aos interesses dominantes. A fé cristã em Deus é a condição da liberdade.

H. Noronha Galvão, professor de Teologia – UCP

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