O presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), D. Jorge Ortiga, defendeu esta Terça-feira em Fátima que a encíclica "Caritas in veritate", de Bento XVI, chega "na hora exacta", destacando a importância que o texto pode ter para a avaliação dos programas políticos nas próximas eleições, no nosso país.
Num encontro inédito, destinado a apresentar o novo documento do Papa, o Arcebispo de Braga disse ser necessário discutir o texto "com a sociedade portuguesa", em especial para ajudar a formar um voto mais "consciente", como a CEP já tinha pedido na sua última Assembleia Plenária.
"Esta carta-encíclica, se fosse lida e meditada por todos os cristãos, em primeiro lugar, e particularmente também pelos políticos, num tempo que se aproxima de eleições e campanhas eleitorais, de programas que vão ser elaborados, estou convencido que seria muito útil", defendeu o prelado.
De acordo com D. Jorge Ortiga, "a Igreja não se quer intrometer em questões políticas, mas há uma doutrina que se repercute em vários sectores da vida".
Nesse sentido, defendeu que a "Caritas in veritate" (Caridade na verdade) contém um "conjunto de orientações que poderão enriquecer muito a sociedade portuguesa".
"É necessário projectar de novo o nosso caminho", encontrando regras e formas novas de compromisso, acrescentou o presidente da CEP, para quem a crise exige "novos paradigmas de vida", em termos individuais e sociais: "É urgente renovar".
Comentando o título dado pelo Papa à sua terceira encíclica, o Arcebispo de Braga sublinhou que o amor "impele as pessoas a comprometerem-se" e que "a Igreja tem de denunciar determinadas situações em nome da verdade".
Nesse sentido, disse esperar que a carta "chegue ao coração da sociedade portuguesa"
Esta iniciativa inédita visou colocar a Igreja em diálogo "com toda a sociedade".
Aos jornalistas, o presidente da CEP disse ainda que na reunião do Conselho Permanente deste organismo, que decorreu em Fátima, não se abordou em profundidade a nova encíclica porque em cima da mesa estavam questões pendentes para a regulamentação da Concordata.
"Esta regulamentação tem sido feita, particularmente nos últimos tempos, a partir de diálogo sobre os documentos, em várias instâncias. Temos estado neste quase jogo de pingue-pongue", indicou.
"Esperemos que já se esteja a chegar ao fim", acrescentou, admitindo que alguns aspectos ainda necessitarão de uma abordagem posterior.
Para lá da crise
Alfredo Bruto da Costa, presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP), foi o convidado da CEP para comentar a nova encíclica, "um documento extremamente denso". "O Papa evita que se confunda caridade com sentimentalismo, com um conjunto de bons sentimentos muitas vezes inconsequentes", adianta.
O especialista considerou que a encíclica não é "sobre a crise", mas "sobre o desenvolvimento humano", com um "olhar sobre a caridade na verdade", escrita "em tempo de crise, mas válido para a situação do mundo antes da crise e depois da crise, se durante a mesma não houver mudanças substanciais".
Este responsável frisou que "no pensamento cristão o amor também se estende às estruturas da sociedade", por outras palavras, "tem uma dimensão política".
Na sociedade, prosseguiu, "tem de haver lugar para a gratuidade", indo para além dos direitos e dos deveres, "o elemento mais original do Cristianismo no olhar a sociedade, acrescentando um teor de humanidade"
Bruto da Costa afirmou que onda "neoliberal" das últimas décadas levou o "individualismo" a praticamente apagar o conceito de bem comum, o bem de "nós todos", como diz o Papa "salientando a dimensão relacional do ser humano".
Estado
O documento de Bento XVI advoga uma nova ordem política e financeira internacional, que para o presidente da CNJP se justifica pelo facto de os Estados estarem a perder o seu poder político, porque "a actividade económica e financeira não tem fronteiras" e pela progressiva reunião dos Estados em organizações "supraregionais". Nesse sentido, acrescentou, há uma necessidade de "reavaliar o papel".
Bruto da Costa disse que o Papa fala da globalização como um factor "neutro", que "faz vizinhos, mas não faz irmãos", e aborda a questão do desenvolvimento numa perspectiva antropológica. A este respeito, citou a definição de desenvolvimento de Paulo VI – "a passagem de condições menos humanas para condições mais humanas" -, para ilustrar o percurso da encíclica de Bento XVI, que vai das questões de sobrevivência à abertura a Deus, "condição mais humana de todas".
As questões morais, avançou, não atingem os indivíduos, de forma isolada, são matéria de "legislação" e devem "passar a fazer parte da Doutrina Social da Igreja". Alfredo Bruto da Costa referiu ainda que os cristãos "não são sensíveis à problemática dos Direitos Humanos", o que considera uma "contradição"
Mercado
O presidente da CNJP destacou que o Papa fala do mercado, mas não aborda o capitalismo: "Temos de saber colocar o problema da economia para além da dicotomia capitalismo-socialismo".
"Bento XVI vai aos elementos estruturantes e fala de mercado", onde o valor das trocas tem de ser igual. O Papa acrescenta uma justiça "distributiva", que implica "a acção dos governos".
"O mercado não tem nenhum mecanismo que garanta a justiça do resultado do seu exercício", disse Bruto da Costa.
O documento papal, de facto, afirma que "deixado unicamente ao princípio da equivalência de valor dos bens trocados, o mercado não consegue gerar a coesão social de que necessita para bem funcionar". O Papa afirma mais à frente que "de per si, o mercado não é, nem se deve tornar, o lugar da prepotência do forte sobre o fraco".
Alfredo Bruto da Costa lembrou que "o mercado em estado puro não existe, existe num contexto de valores, de poder" e destacou a condenação da "especulação" feita na "Caritas in veritate", bem como a sua reflexão sobre o "sentido social da empresa"