Encadear a Palavra de Deus?

«A Palavra coloca-nos no Éden da liberdade e quando lida sem manipulações nem «pre-conceitos», confronta a Igreja consigo própria» Nunca vira um gato de trela, preso à casota. Foi no Verão passado. Episódio insólito e repugnante, este, o de observar o animal que representa a liderdade, a criatividade e a surpresa… preso, fechado na monotonia dos dias repetidos. Esta anamnese vem a propósito da última assembleia do Sínodo dos Bispos, sobre o papel da Bíblia na vida da Igreja. O objetivo mostra-se, à primeira vista, elevado e essencial. Podem jazer, a par disso, ocultos motivos, que visem, como trela amarfanhando a liberdade, impedir – tarefa inútil! – que a Palavra “liberte” o leitor das suas cadeias, quaisquer que elas sejam. Prova disso são afirmações proferidas por participantes na mesma assembleia, dizendo que a Igreja teria de “fixar” – leia-se aqui “encadear” – a interpretação das Escrituras, para evitar “erróneas interpretações”. Com Paulo de Tarso, hoje asseveramos: “A palavra de Deus não está presa”, mesmo que os seus ministros estejam presos por “trabalhos” ou outras “cadeias” (2 Timóteo 2:9), como é o medo da força avassaladora e renovadora da Palavra. É certo que a Bíblia nasceu no seio de um Povo, o de Israel, o Novo Israel. Mas terá uma mãe direito a determinar o presente e o futuro do seu filho, só por o ter gerado no ventre? Não é ele um ser, embora formado pelo corpo e o espírito da mãe, realmente novo, original, independente, livre, autor de histórias e da sua história? Não é um filho totalmente diverso, que pode ir muito mais além da mãe, no tempo e na criação? Como poderá, então, a Igreja bloquear, com doutrinas rígidas, o crescimento da Palavra (Atos 6:7; 12:24; 19:20), que, apesar das aves, das pedras e dos espinhos, produz “cem por um” (Marcos 4:4-8)? A Escritura Sagrada não está encadeada. As suas ambiguidades literárias e teológicas são fonte de sentidos novos, de profundidades surpreendentes. As fendas deixadas abertas pelos redatores fazem dela um livro livre, libertador das escravizantes “certezas falsas”. A Palavra de Deus não é manipulável, mas poço inesgotável, inabarcável, nunca consumido. “Interpretações oficiais”, quiçá não bíblicas ou até anti-bíblicas, servem para embaciar o “espelho” em que a Igreja teme encarar-se como povo sempre em construção, inacabado, que nunca se entende definitivamente. A Palavra, lida sem manipulações nem “pre-conceitos”, confronta a Igreja consigo própria, causando-lhe vertigem e transformando-a nessa verdade. A Palavra coloca-nos no Éden da liberdade (Génesis 2:15), para aí aprendermos a responsabilidade, para forjarmos resposta ao seus desafios chocantes. Portanto, prendei o gato à trela, e vereis os telhados voar (Marcos 2:4; Lucas 5:19; 19:40). Ricardo Tavares donamaat.blogspot.com

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