António Salvado Morgado, Diocese da Guarda
A palavra “periferia” faz parte do núcleo central do léxico do Papa Francisco. E todos sabemos, ou julgamos saber, o que o Sumo Pontífice pretende dizer quando refere as periferias com tanta insistência.
Não sei se inspirado no léxico papal ou não, mas é por aí que começa um livrinho do filósofo espanhol Josep Maria Esquirol, recentemente traduzido para português. Chama-se “A Penúltima Bondade” e aparece com subtítulo de “Ensaio sobre a vida humana”. «A nossa condição é a da “periferia”», assim escreve Esquirol logo no início da primeira página, para acrescentar de seguida: «Uma periferia muito singular, porque não se encontra definida a partir de nenhum centro. Aqui, na periferia, a génese e a degeneração, a vida e a morte, o humano e o desumano – porque só o humano pode ser desumano -, a proximidade e a indiferença.»
Sem entramos na clareza meridiana da mensagem papal sobre as periferias, vamos aceitar a verdade do filósofo Esquirol. É que, independentemente das teses defendidas no livro citado com que nem sempre estarei em concordância, dei por mim às voltas com a possível verdade da frase daquele filósofo espanhol: «A nossa condição é a de periferia». Nossa, ou seja, do ser humano. Só que nessa periferia existencial multiplicam-se ao infinito as periferias da vida em que nos movemos.
Já lá vai o tempo em que a Terra era o centro e o Sol, a circundá-la, encontrava-se na sua periferia. Era o sistema geocêntrico que fazia do nosso planeta o centro do universo. Tudo seria periférico, próximo ou distante, em relação à Terra. E, na Terra, o centro era o Homem. O geocentrismo andava associado ao antropocentrismo. Tudo era periférico em relação ao Homem.
Copérnico, com outros pais da chamada ciência moderna, virou o sistema do avesso. Afinal não era o Sol que girava à volta da Terra, mas é a Terra que anda à volta do Sol. E o sistema heliocêntrico impôs-se, não sem questiúnculas mais ou menos incompreensíveis para as nossas mentalidades. É a chamada «revolução coperniciana», expressão que ainda hoje se utiliza para significar a necessidade ou o imperativo de mudar o paradigma do pensar e do agir.
A ciência deu passos de gigante no século passado, continua a dar no presente e percorre caminhos difíceis de entender para o senso comum dos mortais. Mas parece que a descentralização continuou.
Não sou astrofísico, mas vou lendo com admirável assombro os bons livros de divulgação científica do nosso mercado livreiro. Afinal o nosso sistema solar faz parte de uma vasta colecção de astros, chamada Via Láctea e pensou-se durante muito tempo que ela englobaria todo o universo. Mas – demos a palavra a um grande cientista – «Sabemos agora que a Via Láctea é somente uma das centenas de milhares de milhões de galáxias que podem ser observadas com os telescópios modernos, e que cada uma dessas galáxias contém centenas de milhares de milhões de estrelas.» (Stephen W. Hawking, in A Teoria de Tudo – Gradiva, 7.ª edição, 2021).
Prestou bem atenção o leitor? São centenas de milhares de milhões de galáxias cada uma com centenas de milhares de milhões de estrelas que podem ser observadas com telescópios modernos! Quem poderá imaginar tal? Naturalmente impõe-se a pergunta: onde se encontra o centro de um Universo assim? E, no meio desta imensidade de imensidades de astros, onde fica o antropocentrismo do nosso orgulho humano? Numa espécie de anarquia astral cada ponto do Universo parece poder ser visto simultaneamente como centro e periferia. Tal como o ser humano.
Mas o Homem não terá aprendido a lição e continuou na Terra a pensar-se como centro exclusivo. Dono e senhor da sua pretensa centralidade, toda a periferia estaria ao seu serviço. E foi explorando a Terra sem medida nem lei como se os recursos do nosso planeta fossem também sem medida.
Entrado no comboio do crescimento cego movido pela alta tecnologia que a ciência colocou ao seu dispor, nem sempre o Homem, nos pretensos centros civilizacionais e de decisão por ele instituídos, tem a coragem de ver para decidir e agir em conformidade.
Hoje este centro humano, se quer continuar a ser centro, tem de recentrar-se e entrar em comunhão e cuidado com as periferias onde sempre, afinal, se encontrou, mas sem tomar bem consciência de que essas periferias constituíam a casa que importava cuidar. Impõe-se, pois, substituir o tradicional antropocentrismo por um «antropocentrismo situado» que reconheça que a vida humana não pode ser compreendida nem sustentada sem as outras criaturas com as quais o Homem se encontra indissoluvelmente unido.
A par de periferias topológicas do macro espaço físico do Universo, foi o Homem criando as periferias geográficas da geopolítica e, com elas, as «periferias ecológicas», no ar, na terra, nos rios e no mar, periferias directamente relacionadas com as periferias políticas, económicas e sociais, manifestas em periferias de migrantes que fogem à guerra ou procuram matar a fome e construir uma vida com dignidade. Manifestas também nos bairros periféricos das grandes metrópoles ou mesmo em espaços e recantos do seu interior citadino, onde seres humanos sem abrigo se recolhem estendidos em cartões e envoltos em velhos cobertores. Quem o pode ignorar? Onde estará o centro de tanta gente e onde encontrar as suas periferias. Quando uma sociedade ignora estas periferias ou passa ao lado delas é a própria sociedade que é periférica em relação a elas. O centro torna-se então periferia e a periferia torna-se centro.
Periferias da Humanidade global e periferias das comunidades políticas – internacionais, nacionais e locais. Periféricos que somos, neste Universo de miríades de milhões de astros, vamos construindo miríades de periferias sociais aonde parece ter desaparecido, tantas vezes, o sentido da vida humana, embora muito de dignidade se fale.
Manifestamente, a nossa condição é a de periferia. Pequenos grãos de pó que somos neste Universo de milhões de milhões de estrelas, andamos, de centros para as periferias e de periferias para centros, em busca de uma estrela que seja o Centro das nossas vidas. Um Centro que seja tão Centro, tão Centro simplesmente, que supere todas as nossas periferias.
Verdadeiramente, a nossa condição é a de periferia, mas de periferia que procura o seu centro. E Ele já lá está.
António Salvado Morgado