Em Mutação Cultural – Transmitir a Fé

Discurso de D. Jorge Ortiga na abertura dos trabalhos da Assembleia Plenária da Conferência Episcopal Portuguesa A Assembleia Plenária da Conferência Episcopal Portuguesa acontece entre duas datas verdadeiramente paradigmáticas: o 80º Aniversário de Sua Santidade o Papa Bento XVI e o segundo aniversário da sua eleição como Papa. Recordamos estas datas num espírito de comunhão com o Magistério Petrino. Com ele, reconhecemos que Cristo, no dom da Eucaristia, vem ao nosso encontro tornando-nos companheiros de viagem do povo que servimos nas dioceses e no país para, em Seu nome, promovermos um humanismo integral de verdadeira felicidade. Não posso deixar de formular votos de sincera comunhão eclesial com D. António Francisco dos Santos, D. Manuel José Macário do Nascimento Clemente e D. António José Cavaco Carrilho, entretanto nomeados Bispos de Aveiro, Porto e Funchal. Identificamo-nos com as potencialidades e os problemas pastorais das suas dioceses, esperando uma renovada colaboração no serviço que a Conferência proporciona à Igreja em Portugal. Continuaremos rezando pela saúde de D. Armindo Lopes Coelho e continuamos a contar com a dedicação eclesial do D. António Baltazar Marcelino e de D. Teodoro de Faria. Da agenda que iremos abordar retiro algumas considerações. 1 – A Fé perante a mutação cultural Esta Assembleia Plenária prossegue a reflexão que delineámos para o triénio 2005-2008: transmitir a fé na sociedade portuguesa. Numa partilha de experiências e de esperanças, recordo aquilo que afirmamos no Comunicado da última Assembleia Extraordinária: “Reconhecemos que esta realidade social, em muitas das suas manifestações, tem posto a descoberto, em vários aspectos, alguma fragilidade do processo evangelizador, mormente em relação aos jovens. A nossa missão pastoral, por todos os meios ao nosso alcance, tem de visar este fenómeno da mutação cultural, pois só assim ajudaremos a que os grandes valores éticos continuem presentes na compreensão e no exercício da liberdade”. Neste contexto, continuaremos a reflectir. Penso que se trata duma questão nevrálgica e dum verdadeiro desafio para a vitalidade da Igreja. Com muita facilidade, corremos o risco de cair na mera elaboração de documentos como subsídios para a evangelização. São imprescindíveis, mas não são suficientes. A preparação de manuais ou catecismos é uma tarefa tremendamente complexa. Mais importante, porém, são as pessoas que os vão usar. Sem catequistas marcados pela fé, na sua dimensão de conhecimento e experiência quotidianos, os catecismos podem revelar-se estéreis. A fé deve ser um encontro com Cristo, motivador de compromissos concretos e assumidos. Importa a alegria de ser discípulo dum único mestre. Para se atingir esse grau de adesão, que sobrevive às mutações culturais, torna-se necessário, um novo paradigma orgânico de evangelização. Urge apostar no acolhimento das pessoas que suscite a alegria do primeiro anúncio, para prosseguir num processo catecumenal de catequese, que venha a desaguar numa pastoral de aprofundamento. Só assim os cristãos estarão presentes nos mais variados sectores da sociedade: família, escola, comunicação social, saúde e tantos outros areópagos. Estas pequenas células de ambiente podem contribuir para uma plenitude humana da sociedade portuguesa. 2 – Paixão pela vida e o novo quadro legal relativo ao aborto Temos, diante de nós, uma sociedade marcada por diversos factores fracturantes, mas o essencial da missão da Igreja consiste em dar mais qualidade à vida, respeitando-a, promovendo-a e cuidando dela permanentemente. Há valores e causas que nunca se perdem. Antes pelo contrário, a sua importância vem ao de cima em tempos de crise. Como referimos, a propósito da questão do aborto, “não será o novo contexto legal que nos enfraquecerá no prosseguimento desta luta. A Igreja continuará fiel à sua missão de anúncio do Evangelho da vida em plenitude e de denúncia dos atentados contra a vida”. Não posso deixar de formular uma breve consideração sobre a legislação aprovada na sequência do referendo de 11 de Fevereiro último. Trata-se duma lei injusta a que, por isso, não podemos dar o nosso apoio. É nosso dever continuar a insistir, positivamente, no valor da vida. O enquadramento jurídico da lei não se limita a despenalizar o aborto, mas faz desta prática um direito, uma conduta legal e, por isso, passível da colaboração activa do Estado. A consciência de todos os cristãos e das pessoas que dão primazia ao direito à vida não poderá nunca resignar-se a aceitar esta lei. Até porque em democracia não há leis intocáveis e irreversíveis. Na tarefa de formar consciências, prosseguiremos na proclamação dum direito negado aos mais vulneráveis seres humanos. Lamentamos, igualmente, que se tenham gorado as possibilidades de limitar as injustiças que a lei encerra. Ao contrário do que foi proclamado durante a campanha por muitos partidários do “sim” (alguns deles com notórias responsabilidades legislativas e governativas) a legislação aprovada não contempla um sistema de aconselhamento obrigatório que, sem negar a liberdade de opção da mulher, pudesse funcionar como elemento dissuasor. Na verdade, caso existissem alternativas válidas, a maioria das mulheres não optaria pelo aborto. Face ao quadro legal aprovado, a nossa atitude há-de ser, pois, a de lutar pela formação das consciências e pela mudança de mentalidades, que limite o mais possível o recurso a esta lei. Procuraremos, também, acompanhar a sua implementação, estando atentos ao cumprimento dos (poucos) limites legais à prática do aborto. Neste âmbito, não esquecemos a necessidade de garantir o direito fundamental à objecção de consciência, o qual não pode acarretar para quem o exerce forma alguma de discriminação ou prejuízo na carreira profissional. E esforçar-nos-emos, sobretudo, por responder à banalização do recurso ao aborto através de uma acção redobrada de todas as comunidades cristãs, no apoio solidário às mulheres grávidas e às famílias com dificuldades em assumir a maternidade. Todas as medidas de apoio à maternidade terão o nosso apoio, venham de onde vierem. Na órbita da Igreja já surgiram muitas iniciativas. Muitas se seguirão. 3 – Cuidar da vida como compromisso a reactualizar Na sua missão de anunciar, a Igreja tem de privilegiar a Diaconia enquanto modo de se dizer e estar no mundo. A luta pela vida leva-nos a reconhecer o trabalho que já vamos efectuando no quotidiano de muitas instituições de solidariedade. É difícil de imaginar o que sucederia com a desistência das comunidades cristãs. A presença da Igreja nesta área é verdadeiramente significativa. Trata-se duma vivência da mensagem cristã a que nem sempre a sociedade civil e o Estado dão o devido valor. Daí que esta acção deveria encontrar um maior reconhecimento oficial na linha do princípio de subsidiariedade – que a concepção de Estado moderno aliás contempla – que não se pode restringir a meros subsídios. Estamos ao lado de todos e perto de cada um, o que significa que com eles vivemos um quotidiano de solidariedade. O nosso caminhar com todos só nos tem sido possível com um redobrado sentido de voluntariado que nos merece o maior reconhecimento pela gratuidade que o caracteriza. No contexto duma cultura que valoriza a vida, não podemos esquecer a verdadeira identidade das Instituições da Igreja. São iguais na exigência da qualidade e na paixão pela excelência. Mas, para além disso, devem ser verdadeiros testemunhos duma fé que é fermento de justiça, de fraternidade e de igualdade. Sem equívocos, e dando eco às palavras do Papa, “a vocação de cada um de nós consiste em ser, unido a Jesus, pão repartido para a vida do mundo” (Exortação Apostólica Pós-Sinodal Sacramentum Caritatis, nº 88). “Não é missão própria da Igreja tomar nas suas mãos a batalha política para se realizar a sociedade mais justa possível; todavia, ela não pode nem deve ficar à margem da luta pela justiça. A Igreja deve inserir-se nela pela via da argumentação racional e deve despertar as forças espirituais, sem as quais a justiça, que sempre requer renúncias também, não poderá afirmar-se nem prosperar” (Sacramentum Caritatis, nº 89 e Carta Encíclica Deus Caritas est, nº 28). 4 – Um corpo doutrinal a conhecer e viver A preocupação pela dignidade de todo e qualquer ser humano fez com que, ao longo dos tempos, se tenha articulado um conjunto doutrinal a que chamamos Doutrina Social da Igreja. A ocorrência do 40º Aniversário da Populorum Progressio e do 20º Aniversário da Sollicitudo Rei Socialis interpela-nos para dar maior visibilidade a esta Doutrina. A sociedade portuguesa está hoje ferida por problemas sociais que afectam em profundidade uma maioria significativa da população. Não podemos contentar-nos com o culto das aparências e com discursos que disfarçam realidades perante as quais não podemos ficar indiferentes. Não é necessário – e talvez não seja conveniente – proceder a uma descrição exaustiva. Basta uma referência sumária para relembrar muito mal-estar e angústia. O descontentamento dos jovens estudantes pode desaguar numa onda crescente de delinquência; o protesto contra as reformas na Segurança Social insinua perplexidade e dúvidas face ao amanhã; o desemprego ceifa perspectivas de futuro que nem uma imaginação acutilante e uma formação profissional conseguem restabelecer; as desigualdades no acesso à cultura e ao poder económico acentuam-se. Poucos usufruem de tudo e muitos sofrem mergulhados em becos sem saída. A desagregação da família compromete o futuro da humanidade. O isolamento e a solidão são sintomas duma desigualdade gritante onde os excluídos crescem a um ritmo desenfreado. Na Populorum Progressio, o Papa Paulo VI manifestava um optimismo que começa a ser defraudado. Fazia referência a uma humanidade que então se aproximava do destino de felicidade traçado pelo Criador: “como vagas na enchente da maré avançam sobre a praia, cada uma um pouco mais que a antecedente, assim a humanidade avança no caminho da história” (Populorum Progressio, nº 17). Afirmava ainda, “pode ser que, no seu realismo, se enganem e não se tenham apercebido do dinamismo de um mundo que quer viver fraternalmente e que – apesar das suas ignorâncias e dos seus erros, e até dos seus pecados, das suas recaídas na barbárie e das longas divagações fora do caminho da salvação – se vai aproximando lentamente, mesmo sem dar por isso, do seu criador” (Populorum Progressio, nº 78). Parece um sonho que se tornou utopia, de tal modo que, há 20 anos, João Paulo II se via já na obrigação de reconhecer que a humanidade pouco havia progredido porque “as esperanças de desenvolvimento, então bem vivas, parecem hoje longe da sua realização” (Sollicitudo Rei Socialis, nº 12). Daí que, como alerta profético proclamasse: “a situação actual do mundo, do ponto de vista do desenvolvimento, nos deixa uma impressão prevalentemente negativa” (Sollicitudo Rei Socialis, nº 13). E hoje? Ninguém, minimamente consciente, ignora que, apesar da evolução em diversos aspectos, a vida humana perdeu qualidade. Evocar estes textos proféticos significa acolher, como desafio, “a universalidade da questão social” e fazer com que os princípios sociais não sejam meras palavras de ordem mas fermento de acção. “A situação actual deve ser enfrentada corajosamente, assim como devem ser combatidas e vencidas injustiças que ela comporta. O desenvolvimento exige transformações urgentes, profundamente inovadoras” (Populorum Progressio, nº 30). Qual o melhor modo de comemorar os aniversários destas encíclicas? Levar a Doutrina Social da Igreja para os espaços de debate público, conscientes da sua verdadeira originalidade, de que ela não pretende “conferir poder à Igreja sobre o Estado; nem quer impor, àqueles que não compartilham a fé, perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta. Deseja simplesmente contribuir para a purificação da razão e prestar a própria ajuda para fazer com que aquilo que é justo possa, aqui e agora, ser reconhecido e, depois, também realizado” (Deus Caritas est, nº 28). 5 – Uma “alma” para a Europa Nesta linha de pensamento, pode ser oportuno aludir à celebração dos 50 anos do Tratado de Roma (25 de Março de 1957). Foram homens como Konrad Adenauer, Alcide De Gasperi, Robert Schuman que tornaram possível esta “semente da União Europeia”. Inspirados por grandes pensadores como: Emmanuel Mounier e Jacques Maritain, entre outros, este projecto, alicerçou-se, nos valores da prosperidade e da paz. Sonhavam uma comunidade respeitadora das diferenças, com um espírito genuinamente humanista. Importaria recordar esta origem, pois o futuro da Europa não pode ignorar as suas raízes culturais e históricas. Não serão estes valores dum autêntico humanismo, a “alma” perdida que a Europa almeja encontrar? Na fidelidade às origens, espera-se um desenvolvimento com perspectivas económicas sociais e ambientais. Não basta multiplicar considerações e medidas de ordem jurídica ou técnica. Sem um posicionamento moral e ético, sem uma solidariedade efectiva capaz de suscitar uma profunda transformação de modelos de comportamentos no consumo e na produção, o desenvolvimento integral e sustentável fica nas meras intenções. Nunca poderemos ignorar que o subdesenvolvimento desumanizante continua a conviver paredes-meias com o “sobredesenvolvimento” alienante. A pessoa continua a ser vista como estatística duma economia de mercado. Mas é, precisamente, a pessoa, na sua individualidade irrepetível, a única capaz de oferecer um desenvolvimento sustentável, criador duma distribuição equitativa das reservas do mundo e duma atenção responsável de todos por cada um. 6 – A Eucaristia cume e fonte duma humanidade renovada Para delinear a verdadeira estratégia da acção pastoral, partimos da Eucaristia que nos “habilita e impele a um compromisso corajoso nas estruturas deste mundo para lhes conferir aquela novidade de relações que tem a sua fonte inexaurível no dom de Deus… Obriga-nos a fazer tudo o que for possível, em colaboração com as instituições internacionais, estatais, privadas, para que cesse ou pelo menos diminua, no mundo, o escândalo da fome e da subnutrição que padecem muitos milhões de pessoas, sobretudo nos países em vias de desenvolvimento”. A Eucaristia é “fonte e ápice da vida e da missão da Igreja”, centro da vida do cristão, é manancial de pão para todos na mesa da fraternidade. Este é o verdadeiro sentido da Exortação Apostólica Sacramentum Caritatis. Alguns órgãos de comunicação social esquecerem o espírito do documento, concentrando-se em questões meramente acidentais. Importa, pois, que os cristãos mergulhem neste, como em tantos outros documentos, para adquirir uma formação sólida e esclarecida capaz de ultrapassar interpretações minimalistas. 7 – Conclusão Dominados por uma “ânsia” serena de transmitir a fé, conscientes das forças adversas e convictos de que o segredo reside na ousadia de “ser” Igreja, “Luz dos Povos”, – o que só depende de nós – termino com palavras de Bento XVI: “… A verdadeira alegria é reconhecer que o Senhor permanece no nosso meio, companheiro fiel do nosso caminho” (Exortação Apostólica Sacramentum Caritatis, nº 97). + Jorge Ferreira da Costa Ortiga, Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa

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Agência ECCLESIA

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