Padre Manuel Ribeiro, Diocese de Bragança-Miranda
A pandemia tem vindo a revelar o princípio de uma grande mudança. Julgo que estamos a iniciar um tempo novo: um tempo com novos paradigmas éticos, socias, políticos, filosóficos e espirituais. O próprio teólogo Walter Kasper afirma que o problema filosófico do acontecimento contingente volta a estar no centro da reflexão hodierna. Mas o que significa isto? Segundo este teólogo, trata-se “de um acontecimento cuja a verificação não é necessária segundo uma lei natural e que, no entanto, é possível”. Este é o problema que atravessa toda a história da filosofia, desde os pré-socráticos, a Aristóteles, passando por Tomás de Aquino, Kant, Hegel, Marx, Heidegger e continuando com Nietzsche.
Se o Terramoto de Lisboa de 1755 desencadeou e motivou um conjunto de novos paradigmas e abalou a fé no iluminismo e no progresso, marcando o fim da teodiceia de Leibniz, também a actual pandemia está a motivar um novo tempo com novíssimos paradigmas que, ainda, estaremos por saber. O teólogo Walter Kasper afirma que “a crise do coronavírus também terá por consequência a derrocada das nossas certezas sobre a civilização, sobre a comunidade, sobre a sociedade e sobre a cultura. E quase ninguém, hoje, pode prever com exactidão quais serão as consequências”.
A cristandade tem de passar, inevitavelmente, de uma igreja de serviços, profundamente aburguesada, para uma igreja mais discipular, mais militante e mais mártir. O martírio foi o final de todos os Apóstolos. Convém recordar que o futuro da Igreja terá de passar por este fim comum. Entenda-se o martírio não como um acto irrefletido, marginal ou extremista, mas, antes, como reflexo de uma relação ôntica e existencial de sentido e de pertença, plena de razoabilidade e de oblatividade. Resta saber, porém, se cada um de nós estará (ou não) disposto a morrer (entenda-se, a dor, a dar a sua vida) por Cristo, pelo seu Evangelho e pela sua Santa Igreja.
O ensaísta Henrique Raposo escreveu recentemente no Jornal Expresso (22.6.2021) que “as pessoas estão a sair das Igrejas e, em consequência, estão a ficar mais fanáticas e intolerantes, porque trazem o absoluto teológico para a política, porque passam a ver a política numa lógica imediata amigo-inimigo, zelota- pecador. Não rezam, purgam. Não olham para os seus defeitos, só veem os defeitos dos outros. Sem a presença de Deus, julgam que os seus totens conjunturais (ideologias, crenças, modas) são sagrados e intocáveis; não podem ser questionados, criticados ou gozados” (Henrique Raposo). Este parece ser o novo paradigma que se nos impõe e que se “normaliza”. A pandemia do coronavírus revela, segundo o teólogo Bruno Forte, que “o mito do ‘homo emancipator’, senhor do seu destino e dono das suas forças, vitorioso sobre tudo, é aqui posto em questão a partir dos seus fundamentos”.
O Frei Inácio Larrañaga afirmava que as pessoas não mudam e que, na melhor das hipóteses, apenas melhoram. Como? Com a seguinte condição: caso saibamos abraçar a Cruz, abraçar o serviço e a humildade, abraçar a Graça e a Misericórdia, então Deus transformará o nosso ser e transfigurar-lho-á, paulatinamente, à Sua imagem e semelhança (cf. Gen 1, 26-28).
Portanto, exige-se aos católicos a assunção do “martyrium”, da entrega total e sem limites a Deus Nosso Senhor, ao Seu Sagrado Evangelho e à Sua Santa Igreja. Precisamos de uma “alma comum, uma identidade partilhada, um impulso de generosidade generalizado, que permitam alimentar sonhos e projectos de longo alcance para o bem comum” (Bruno Forte) e para o bem maior da humanidade tocada e resgatada por Jesus Cristo, Nosso Senhor.
Padre Manuel Ribeiro,
reitor do Santuário diocesano do Imaculado Coração de Maria, em Cerejais, Alfândega da Fé