Lições da História Volta e meia, mesmo em clima de eleições, ouve-se falar de Ecumenismo. Na vida interna da Igreja, o tema aparece neste mês de Janeiro, a propósito da «Semana da Unidade dos Cristãos», ou seja, o esforço de diálogo dos três ramos do cristianismo (católicos, ortodoxos e protestantes) em ordem à unidade da Igreja e que existiu como única nos primeiros dez séculos. Interessa lembrar desde já que o Ecumenismo é um movimento cristão e refere-se unicamente aos cristãos, é algo fraterno, nada tendo a ver com as religiões não cristãs e muito menos com os não crentes. O diálogo com esses grupos não se chama ecumenismo, mas respectivamente «diálogo inter-religioso» e «diálogo com os não crentes». No ano 1024 consumou-se a primeira grande ruptura no seio da Igreja com o afastamento do Patriarcado de Constantinopla ou Bizâncio a que presidia o patriarca Miguel Cerulário. É certo que já antes daquela data houve grupos cristãos no Egipto e na Síria que, por motivos de especulação teológica, influências culturais e domínio muçulmano, se haviam afastado da unidade eclesial, mas a ruptura oficial da cristandade oriental deu-se no citado séc. XI. De modo geral, dá-se o nome de Ortodoxos a todos esses cristãos que, sobretudo na Europa Oriental, grega e eslava, vivem separados da obediência ao Papa. No séc. XVI, protagonizada por Martinho Lutero, dar-se-ia uma nova ruptura, agora no seio da Igreja latina ou ocidental, em que uma parte significativa de nações da cultura anglo-saxónica se afastaram da obediência ao Papa. A esses cristãos nascidos da ruptura no séc. XVI dá-se o nome genérico de protestantes ou reformados que, de modo gradual, dariam origem a dezenas de grupos dos mais variados nomes, passando alguns deles a seitas, tal é o extremismo a que foram conduzidos pela leitura individualista e subjectiva da Bíblia e pela pressão do mundo. Volvidos estes séculos e verificadas as feridas e consequências na vida dos povos, os cristãos mais lúcidos de qualquer confissão cristã reconhecem que este estado de coisas é oposto ao plano de Jesus Cristo e merece um esforço conjunto de reconciliação. É também claro que, debaixo dos movimentos e gestos das independências e lutas religiosas, houve milhentos factores estranhos à fé, tais como as infiltrações de sentimentos de política local, as rivalidades culturais regionais, os interesses económicos, a vaidade pessoal, mesmo problemas de consciência pessoal, falta de piedade profunda e esclarecida. Ao longo dos séculos, houve Papas que tentaram a reconciliação, o último dos quais foi Pio XI que convidou a Igreja oriental para o I Concílio do Vaticano, mas só encontrou silêncio. Ao convocar o II Concílio do Vaticano, mesmo sabendo que não seria o Concílio da União, João XXIII convidou os Ortodoxos e Protestantes para estarem presentes no Concílio como observadores. O seu convite foi atendido e ali estiveram a acompanhar todo o Concílio delegados das Igrejas ortodoxas e protestantes, numa atitude muito diferente dos diplomatas. Foi um milagre, diria o grande teólogo protestante Dr. Cullmann. Desde o Concílio Vaticano II o clima tem vindo a melhorar muito. Aqui interessa fixar as lições da história, mormente o frequente inquinamento da vida eclesial por movimentos estranhos à fé, nomeadamente a exploração política do bairrismo das populações. Não quer isto dizer que o cristão deva manter-se alheio à vida do mundo. Pelo contrário, deve andar atento à sociedade e inserir-se corajosamente nos mecanismos sociais e políticos, mas isso deve nascer por exigências internas da própria fé e não por derivação partidária. É ainda oportuno recordar que o Ecumenismo é um movimento de fé e não de calculismo diplomático. O Ecumenismo não corresponde a uma espécie de negociações de grupos religiosos em que cada grupo faz uma proposta e respectivo desconto para se chegar a um acordo mútuo. Isso conduziria a um sincretismo, uma poção religiosa de mínimos que se aproximaria do laicismo para poder ser bebida por todos. Pelo contrário, o Ecumenismo vive da conversão interior de cada um, é um movimento de máximos e de verdadeiros cristãos: «Não há verdadeiro Ecumenismo sem conversão interior. Os anseios de unidade nascem e amadurecem a partir da renovação da mente, da abnegação de si mesmo, e da libérrima efusão da caridade», escreve o decreto conciliar sobre o Ecumenismo (n.7). Cada grupo cristão é convidado a aprofundar a sua fé , a reflectir sobre ela , a vivê-la até ao fim, colocando-se diante de Deus e libertando-se de tudo o que possa ser orgulho, facciosismo, paixão, disposto a seguir corajosamente os movimentos que o Espírito Santo sugerir. Há posições doutrinárias que podem ser revistas em determinados aspectos sem deixar de ser o que são. Dentro da Igreja, temos o caso da Missa que, mantendo-se a mesma de sempre, viu alterado o modo de celebrar-se, colocando o altar mais próximo e visível da assembleia, dando maior importância à Palavra e aos ministérios laicais, recorrendo às línguas locais, factos que alguns diriam dizer oriundos da prática protestante, mas que são rigorosamente extraídos da doutrina católica sobre o baptismo. De modo semelhante, a afirmação de Cristo como única fonte de Revelação, tendo a Bíblia e a Tradição como meios de acesso a Cristo revelador, é cada vez mais aceite por católicos e protestantes, ultrapassando querelas antigas. A própria noção de «justificação», o grande pomo da discórdia da Reforma, foi recentemente expressa num texto assinado por católicos e luteranos, reconhecendo que a fé na acção pessoal de Cristo é fundamental e, ao mesmo tempo, as acções da vida de cada um são insubstituíveis na assimilação da fé. Outros aspectos da doutrina e disciplina, mesmo o ministério do Papa, continuam a merecer o estudo de grandes teólogos, e tudo isto por fidelidade à fé católica e não por calculismo ou mero desejo de simpatia. Os grandes obstáculos ao Ecumenismo são, de um lado, o fanatismo e o fundamentalismo, e, do outro, a ausência de piedade na vida de católicos, ortodoxos e protestantes e mais ainda o laicismo, o abandono do sentido religioso da vida. Joaquim Gonçalves, Bispo de Vila Real, in “A Voz de Trás-os-Montes”