Historiador Eduardo Franco lança um olhar sobre os desafios do diálogo inter-confessional para o século XXI Nunca se falou tanto como hoje de ecumenismo. Mas os acontecimentos trágicos resultantes da proliferação beligerante do fundamentalismo religioso islâmico, instigador de movimentos neo-cruzadísticos, parece, na verdade, lançar mais sombra que luz sobre as esperanças de um entendimento global entre as religiões. O ecumenismo impôs-se nas últimas décadas no quadro das relações entre as religiões e das religiões entre si como preocupação e caminho a realizar. Impôs-se como assunto da agenda dos líderes religiosos e passou a fazer parte do discurso oficial e das atitudes do politicamente correcto. Não podemos esquecer que a preocupação ecuménica nasceu no seio do cristianismo, fracturado em confissões e seitas, motivada pelo desejo de restabelecer a unidade quebrada especialmente a partir da época moderna. No seio da Igreja Católica o ecumenismo passa a ser promovido de forma decidida na sequência do Concílio Vaticano II que declarou o trabalho em favor da unidade dos cristãos uma prioridade, aliás, para atender ao mandato evangélico de Cristo “que todos sejam um” e superar o escândalo da divisão dos cristãos. No entanto, o conceito de ecumenismo, originariamente desenvolvido no seio do cristianismo, acabou nos últimos anos por ser alargado e cobrir o esforço de entendimento e cultivo de relações pacíficas e de respeito mútuo entre as diversas religiões do mundo, em particular aquelas que têm tradição conflitual entre si. O ecumenismo ergueu-se como um processo necessário para a paz entre os povos, aplicando-se assim operativamente o significado mais puro da palavra que significa “terra habitada”, isto é, uma terra que se quer habitada harmonicamente por todos, ou a ideia de uma casa comum para todos e onde todos tenham lugar. Esta extensão do conceito de ecumenismo foi em grande medida motivada pelas novas formas de violência e conflito bélico promovidos em nome da religião, que levaram Samuel P. Huntington a anunciar um novo paradigma para enquadrar as novas formas de conflito internacional: o “choque de civilizações”. A globalização do terrorismo em nome de Deus e a capacidade de redes de células terroristas afrontarem grandes estados imperiais como aconteceu no 11 de Setembro de 2001, em Nova Iorque, bem como a proliferação do fundamentalismo religioso gerador de focos de violência em pontos sensíveis de fractura civilizacional (maxime Médio Oriente) colocaram a religião na ordem do dia e valorizaram o trabalho ecuménico como caminho para a paz. O ecumenismo tornou-se omnipresente como assunto de debate e tema recorrente dos discursos políticos. Com ele o diálogo inter-religioso adquiriu grande interesse mediático. O Papa João Paulo II já tinha contribuído significativamente para a mediatização do discurso ecuménico com o gesto profético da reunião dos líderes religiosos mundiais em Assis, em 1986 e repetida em 2002, a fim de rezarem juntos pela paz. Os responsáveis religiosos declararam nesses encontros a importância das religiões para a promoção da convivência pacífica entre os povos, começando pela promoção de relações amistosas e fraternas entre os que professam deferentes sistemas religiosos. Nesse contexto, a Papa apelou para a necessidade de purificação da memória, do perdão como meio e o método para aplanar as cicatrizes muitas vezes ainda abertas em ferida da história sangrenta de violências em nome da Fé. Na semana passada, Paulo Mendes Pinto, reputado historiador das religiões com vasta obra publicada no domínio da ciência das religiões, expressou, no jornal Público, o seu desencanto perante os parcos resultados da “era do ecumenismo”. A sua desilusão resulta também do cepticismo em relação à possibilidade de haver um ecumenismo eficaz dada a natureza expansionista e universalizante especialmente das duas grandes religiões mundiais historicamente conflituais entre si: o cristianismo e o islamismo. Perante os frutos que não vê desse esforço de aproximação inter-religiosa, entende que se entrou na era do pós-ecumenismo e que importa seguir outro caminho e pensar o diálogo à luz de outro conceito, o conceito de cidadania. Religião e Cultura Esta reflexão, que levanta questões pertinentes e complexas em torno da natureza, da doutrina e dos fins próprios da religiões equacionados com o processo ecuménico e que o mesmo ecumenismo não poderia pôr em causa sob pena de anular a essência própria dos diferentes sistemas religiosos, suscitou-nos a explicitação de uma reflexão em torno de um conceito operativo que tem presidido ao nosso trabalho científico no plano da pesquisa da história cultural. Num tempo em que o ecumenismo se tornou moda nos discursos política e religiosamente correctos, importa falar de um ecumenismo cultural antes de um (ou a par de um) ecumenismo religioso. A construção de “uma casa comum”, de uma “terra habitada”, onde todos tenham lugar, passa primeiro por um ecumenismo “ecológico” das culturais e das mentalidades. Um ecumenismo que não quer dizer aqui inculturação, aculturação ou endoenculturação. A antropologia cultural tem contribuído muito para afirmar o valor das diferentes tradições culturais pela via da paridade e não pela sua valoração em termos de superioridade ou inferioridade. A auto-imagem de determinadas culturas, a sua afirmação e expansão em detrimento da anulação de outras conduziram no passado a desastres e perdas culturais irreparáveis e a verdadeiros choques civilizacionais guiados pelo fito da anulação do outro, como aconteceu com o processo colonial eurocêntrico. O ecumenismo cultural, traduzido no respeito por aquilo que “faz com que o homem seja homem” (definição de cultura segundo o Padre Manuel Antunes, sj), passa pela formação de uma mentalidade pluralista, capaz de respeitar, apreciar e valorizar a diversidade das diferentes formas do homem estar, pensar, actuar e viver em sociedade e transformar a mundo, com os seus ritos, símbolos e as diversas expressões espirituais e materiais. Um respeito activo que implique o reconhecimento do valor e da dignidade próprias dos diferentes sistemas culturais e civilizacionais. Aqui naturalmente que o religioso entra como forma suprema (e das mais antigas) de produção de cultura e de modelação civilizacional. Por isso pensamos que o ecumenismo cultural deve preceder o ecumenismo religioso, pois aquele precede e é mais abrangente do que este e mais criador de cidadania e democracia. Se nos quisermos centrar no espaço da sociedade portuguesa e na nossa história da cultura, não deixa também de ser pertinente trabalhar em favor de um ecumenismo cultural. A construção da nossa história comum, nas suas derivas e diferentes andamentos até chegarmos à era democrática em que vivemos, foi atravessada por movimentos conflituais e hostis entre si. Movimentos, correntes, grupos étnicos, classes sociais, instituições produtoras de micro-universos culturais que procuraram afirmar-se através da luta contra movimentos, instituições, correntes eleitas como adversários e que procuravam eliminar ou pelo menos inibir ao máximo a sua influência. Esses dinamismos de oposição conspiracionista criaram uma mentalidade “anti”, que fracturou transversalmente a sociedade e condicionou a leitura do passado pela formação de uma memória histórica dividida no plano da avaliação do papel dessas diferentes instituições no nosso passado com implicações no presente. A nossa memória histórica está, de facto, estilhaçada por movimentos fracturantes. Anti-semistismos, anti-islamismos, anticlericalismos, antimaçonismos, anticastelhanismos, antijesuitismos, anticomunismos, antiliberalismos, antifeminismos e outras formas formas de conspiracionismo e de execração do Outro povoaram a nossa memória de demónios e fantasmas que ainda nos causam medo e perplexidade. Promover o ecumenismo cultural, em primeiro lugar pela via do conhecimento científico desapaixonado, contribuir para a despreconceitualização da história ou para a leitura despreconceitualizada do nosso passado, capaz de olhar para os deferentes produtores e reprodutores de cultura sem a atitude da suspeita metódica, será certamente um serviço importante para a construção de uma cidadania plena numa democracia madura. Deseja-se, pois, um ecumenismo cultural que advenha do conhecimento da globalidade dos micro-universos culturais, colocando-os a olhar de frente, com gosto de conhecer e de entender, instituições, movimentos, grupos que historicamente estiveram de costas voltadas uns para os outros, que recearam o olhar de medusa que temiam encontrar no outro, que recusaram conhecer-se sequer, a não ser para obter um conhecimento estratégico para melhor afinar os métodos de combate. Um ecumenismo cultural que construa um conhecimento que faça brotar o respeito recíproco, a apreciação e a valoração da diferença colocando-o em paridade para uma relação de diálogo e de integração em convívio sereno. O ecumenismo cultural será em Portugal, na Europa e no mundo o trabalho prévio à “interiorização da democracia”, como defendia o P. Manuel Antunes, o qual entendia lucidamente que não basta impor um regime democrático e aceitá-lo na forma. Decisivo é interiorizar a essência da democracia e criar uma mentalidade democrática. O sonho de uma sociedade democrática quer local, quer nacional, quer mundial passa necessariamente pelo desenvolvimento do ecumenismo cultural que valorize a singularidade, a riqueza e a dignidade da diversidade das culturas humanas. Feito o ecumenismo cultural, o ecumenismo religioso, estará facilitado, se entendido como entendimento, respeito, diálogo, reconhecimento da dignidade do outro e não fusão ou anulação do outro. Com o ecumenismo ergue-se o valor da diferença e contribui-se para a edificação de uma humanidade que tenha a paz como meta. José Eduardo Franco, Historiador