Economia solidária

Bairro em Lisboa promove moradores e envolve população na procura de soluções integradas para ultrapassar tempo de crise económica e social Numa altura em que todos os discursos apontam para a crise económica e financeira, para a crise social que não deixa ninguém de fora da espiral do descrédito, o Bairro da Horta Nova, na freguesia de Carnide, em Lisboa, promove um caminho para ultrapassar diferenças e unir esforços. A proposta é percorrer o caminho da economia solidária, uma forma de distribuir a riqueza com a participação e valorização humana. Nada de novo, mas em tudo novo do habitual sistema económico capitalista que tem no lucro o seu principal objectivo. A economia solidária é uma forma de produção que tem por base o associativismo e o cooperativismo. Segundo Rogério Roque Amaro, professor do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, ISCTE, explica que esta crise veio mostrar que a economia que só pensa no mercado, que enaltece o lucro, a ganância e o ganho, não podia sustentar a humanidade. “E humanidade entende-se também pela vida humana, a animal, a vegetal e sobretudo a sustentação entre estas três formas de vida. Isto não estava a acontecer. A economia afectava e punha em causa a vida e por isso era insustentável”. O professor do ISCTE afirma à reportagem do 70 x 7 que é tempo de na “Europa e no mundo se abrirem caminhos para inverter tendências”. Rogério Roque Amaro, economista e professor no ISCTE, é, em Portugal, uma das vozes da economia solidária. Este professor acredita que talvez agora as coisas possam ser diferentes. “Estamos a dizer que é possível outra economia e que é absolutamente necessária para o Séc. XXI que seja compatível com a vida”. Economia solidária não no sentido social, mas no sentido sistémico, adianta. “Uma economia solidária com as pessoas e solidária com a vida no planeta, com a natureza, com a diversidade cultural, com a diversidade do conhecimento não apenas o académico, mas também o conhecimento que advém do terreno”. A criação de alternativas é um dos caminhos desta economia. A freguesia de Carnide percebeu a importância do trabalho comunitário como plataforma de transformação. Paulo Quaresma, Presidente da Junta de Freguesia explica que “um grupo comunitário pode discutir desde o buraco da calçada até uma intervenção no âmbito do trabalho com idosos a médio ou a longo prazo, ou até mesmo, discutir medidas de acompanhamento a pessoas que estão desempregadas”. O mesmo espaço que envolve todos os cidadãos numa reunião pode servir para discutir como organizar o arraial comunitário ou como organizar o dia do vizinho. As pessoas são as respostas aos seus próprios problemas, tornando-as responsáveis e protagonistas dos seus projectos de vida. Este é o princípio sublinha por Rogério Roque Amaro. “Implica que as pessoas sejam encaradas como detentoras de direitos e deveres. Estes factores são fundamentais na democracia. Não estamos a trabalhar para as pessoas, mas com as pessoas”. O trabalho desenvolvido à luz da economia social ou economia solidária obedece a princípios claros. Fundamental é o pressuposto de que cada território tem a sua marca e a sua identidade, logo, tudo tem de ser vivido de forma enraizada. “O trabalho feito não pode ser realizado de pára-quedas, porque se vem cá de vez em quando. Tem de se estar articulado, reconhecido pelas pessoas, tem de se estar muito envolvido”. O princípio que o professor assume como de territorialização. O segundo princípio é o da participação. “O ideal seria que os actores principais fossem as pessoas da comunidade”. Tarefa longe de ser fácil, é, sem dúvida o objectivo que ao longo de 16 anos tem estado presente. “Tem sido um processo construído”, afirma Roque Amaro. O terceiro princípio fundamental é a visão integrada. Significa que os problemas, as soluções, o trabalho tem de ser visto de forma articulada e conjunta. “Não podemos partir as pessoas em segmentos. As pessoas não são problemas de educação, não são problemas de emprego, não são problemas sociais, não são problemas económicos, não são problemas de saúde. As pessoas são pessoas que têm todas essas componentes e têm de ser vistos nessa complexidade. Naturalmente, implica trabalhar em parceria, juntar recursos e perspectivas e, naturalmente, as instituições que trabalham em todas estas áreas”, aponta o professor do ISCTE. Paulo Quaresma explica que por vezes “pode cair-se numa situação de desalento e de achar que não valeu a pena, mas continuamos a achar que é o principal instrumento. Esta freguesia ganhou muito com isso”. Rogério Roque Amaro afirma que este trabalho acaba por ser utópico. “Mas acreditamos que a utopia é que transforma história. Temos de construir utopias e não fazer o que já se faz em todo o lado”. Sendo uma utopia, “está a ser realizável. Vai tendo conquistas e resultados”, adianta. Envolver para solucionar A Cooperativa Hora dos Sonhos é um dos resultados positivos. Nasceu na sequência de um outro projecto do bairro Padre Cruz, também na freguesia de Carnide. A sua criação foi pensada dentro de uma reunião comunitária. Sofia Brito, do Centro de Animação Infantil e Comunitária – CAIC, explica que as reuniões no espaço comunitário tem precisamente o objectivo de “saber quais as necessidades e agir em conformidade. Este Bairro difere um pouco dos restantes, precisamente por isso”. O Babysitting social é outra faceta desta centro de animação infantil. Este é um serviço que funciona nas “pontas do dias” para ajudar os pais que vão trabalhar muito cedo pela manhã, ou que saem tarde, no final do dia. Não são raros os casos de mães que vão trabalhar pelas 5 horas da manhã e não tinham com quem deixar os filhos, ou situações registadas ao final da tarde, quando as mães são confrontadas com o encerramento dos infantários às 18 horas e não têm ajuda depois desse horários. “As pessoas não têm dinheiro para pagar esses serviços extra”, explica Paulo Quaresma. Soluções de proximidade Colmatar maiores ou menores necessidades é o objectivo do grupo comunitário. Envolver a comunidade é um processo que levará às decisões que mexem com a sua própria vida e com a vida do bairro. “Se antes das soluções criarmos espaço para as pessoas poderem discutir, dar sugestões, sentirem-se como parte da solução do problema, as coisas melhoram significativamente”. Tudo isto assente na consciência de que o processo está marcado por avanços e retrocessos. Paulo Quaresma alerta para o facto de se considerar este processo “muito fácil. Facilmente se poderá pensar que trabalhar na área comunitária é muito fácil, mas é uma ideia errada”. Rogério Amaro acrescenta que neste trabalho as vitórias nunca são definitivas, tal como as derrotas que “não nos arrumam de vez. Tudo é passível de ser revertido. Existe uma boa capacidade psicológica de enfrentar os sucessos e insucessos sem entrar em euforia ou desânimo excessivo”. Este equilíbrio é conseguido com a colaboração das várias instituições. Se houver um conflito dentro do bairro, o responsável pela Associação de Pais ou pela Associação de Moradores conhece e tem uma relação de proximidade com o responsável pela esquadra. Sónia Oliveira, da Associação de Desenvolvimento do Bairro da Horta Nova explica ser diferente uma deslocação ao gabinete de uma instituição a partilha num grupo comunitário. “No grupo comunitário, no final, o morador vai acalmar, vai ouvir e, possivelmente, acabar por perceber porque razão determinada coisa aconteceu ou falhou”. Esta associação nasceu no meio da própria população de um grupo de jovens embuído do espírito comunitário. “Surgiu de uma necessidade de ser a voz da população. A associação de moradores é recente e na realidade, queríamos apenas fazer o que já fazíamos informalmente, mas com o desejo de formalizar uma associação que fizesse mais pelos moradores. Queremos chegar às instituições como porta-vozes dos moradores e lutar por aquilo que consideramos ser justo para eles”. A participação no grupo comunitário é aberta a todos os moradores. Duas vezes por mês, à Quinta-feira, articulam-se esforços e as instituições ganham cara. “Em momentos mais complicados no Bairro, o facto de existir uma cultura de encontro, facilita o desbloquear problemas e encontrar soluções”. É nas reuniões que se afasta a “frieza dos documentos” e mostram os rostos que ajudam dentro das instituições. Sónia Oliveira foca a confiança que se estabelece entre a população. “A população passa a confiar nas instituições, para além de se facilitar as burocracias”. Roque Amaro acrescenta serem resultados de proximidade. “Significa que as pessoas têm nome. Aqui não falamos de desemprego, mas de pessoa tal que está desempregada”. A personalização implica “passar do problema para a pessoa com o problema, passar da pessoa com um problema para uma pessoa com soluções”, explica o professor. Mudar estigmas Alcançar a transformação dentro e fora do Bairro será a parte mais exigente, numa responsabilidade repartida. Sónia Oliveira conhece o sabor do estigma de pertencer a um bairro social, conferindo-lhe uma diferente visão do bairro e da importância deste trabalho. “Entre os moradores vive-se a saturação”. Factores decorrentes da descriminação, da situação em que muitos vivem concorrem para a saturação. “Quando reclamam em alguma instituição vão já a explodir porque levam a acumulação. As instituições refugiam-se na lei, na estrutura institucional, incapazes de sair do pedestal e perceber que a pessoa à sua frente está irritada porque tudo lhe corre mal”. “Estamos a tornar as pessoas em pessoas”. O professor do ISCTE explica que pela percurso de vida “elas não são muitas vezes tratadas como tal. Queremos ajudar estas pessoas, se quiserem, a ser actores das suas vidas. É fundamental para lhes dar dignidade, caso contrário estarão sempre de mão estendida”. Tiago, Wilson e Claúdio são jovens envolvidos na rede comunitária. Nem toda a gente do bairro sabe, e para alguns eles são apenas mais uns que engrossam as estatísticas do abandono escolar e da pequena criminalidade. Eles são o resultado de muitos tipos de abandono e, ao mesmo tempo, a imagem da esperança. Roque Amaro refere que todos os jovens, “sem excepção”, que ali passam, tiveram percursos de vida muito complicados. “Se eu tivesse passado pelo mesmo percurso de vida, não seria diferente. Aconteceu-lhes de tudo, experiências negativas no quadro familiar, no quadro de vizinhança, na relação com a sociedade dominante, quer pela via da polícia como pela via dos serviços públicos. Há um acumular de más experiências e exclusões, difíceis de alterar”. Mas é isso que se quer. Mudar e rumo e renascer. Ricardo Tomás, no Núcleo de Apoio ao Emprego e à Empresa, é um dos que contribui diariamente para isso. “Falta auto confiança nos jovens. Esta falta de auto confiança está relacionado com o estigma, no quadro que muitos viveram desde a infância até à adolescência ou mesmo até ao presente. Este estigma dificulta a entrada dos jovens numa actividade profissional”. São muitos os que aparecem à procura do primeiro emprego, alguns depois de passarem por um trabalho precário. “Tento mostrar-lhes que nesta fase da vida, devem apostar seriamente na formação profissional”. Pelas mãos de Ricardo Tomás passam muitos jovens à procura de uma segunda oportunidade. Em 2008 foram integradas 118 pessoas no mercado de trabalho e cerca de 50 pessoas na formação profissional. Roque Amaro explica que este é um caminho demorado. “Está muito enraizado nas suas vidas, na sua mentalidade, na sua forma de ser e olhar o mundo, como avaliam o que os cerca. É um trabalho fundamental para termos uma sociedade mais justa e coesa. Precisamos de ter mais dinâmicas de proximidade com as pessoas e multiplicar isto por vários locais para ter esperança numa sociedade mais justa”. Estes são novos caminhos para uma nova forma de ver o mundo, de ver a economia, a política e a sociedade. Um trabalho de promoção social e humana que nasce do esforço comunitário que quer ultrapassar diferenças para edificar o bem comum.

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