Ecologia da paz

Na mensagem para a celebração do Dia Mundial da Paz, as palavras do Papa Bento XVI convidam-nos a avaliar a medida do risco antropológico no tempo actual. Desenvolvemos um mundo consu-mista onde tudo se transforma em bem de consumo: consumimos a natureza, consumimos os outros, consumimos Deus e consumimos nós mesmos numa cupidez e bulimia compulsiva; consumimo-nos a consumir, na busca de um alimento que sacie a nossa fome já saciada de haveres, mas faminta de luz, de sentido e de paz. Toda a mensagem é um manifesto da ecologia da paz. É esta precisamente a expressão que serve de título ao desenvolvimento dos parágrafos 8 e 9, onde o Santo Padre explicita e aprofunda o sentido de que a expressão é portadora. Desde 1886, altura em que o biólogo alemão Ernst Haekel usa pela primeira vez a palavra ecologia, pretendendo significar a ciência da economia, dos hábitos, do modo de vida e das relações vitais entre os organismos, o conceito de ecologia vê-se investido de novas semânticas, não estritamente ambientais. Entre muitas outras expressões encontramos, por exemplo, ecologia das ideias (Gregory Bateson), ecologia da inter-subjectividade (Félix Guattari), ecologia económica (Maurice Bellet), ecologia política (Os Verdes), “ecologia humana” (João Paulo II) e “ecologia da paz” (Bento XVI). Estas diversas denominações analógicas permitem perceber que a crise ecológica ambiental é somente a ponta do iceberg de uma crise mais vasta. No pensamento do Santo Padre, a crise ecológica ambien-tal manifesta um mal mais profundo – a progressiva devastação do humano, em forma de crise geral do ambiente natural, das sociedades e dos indivíduos – resultante de “um conceito desumano de desenvolvimento” (§9). Ao evidenciar “o nexo incindível” entre a ecologia ambiental e a ecologia humana, Bento XVI chama a atenção para a necessidade de se aprender a pensar na transversal as interacções entre os ecossistemas naturais e os contextos sociais e individuais. Procurar um princípio integrador que prefigure uma ecologia holística, respeitadora da natureza e potenciadora do “desenvolvimento humano integral”. Ecologia ambiental, mas sem fundamentalismo naturalista; ecologia humana, mas sem fundamentalismo humanista; antes, busca da “paz com a criação e a paz entre os homens” (§8) à luz da promessa bíblica: “farei da Paz a tua administradora, e da Justiça a tua autoridade suprema. Na tua terra não se tornará a falar em violência, nem em devastação e destruição das tuas fronteiras (Is 60,18). O Dia Mundial da Paz celebra-se à luz do mistério mais admirável a que o humano alguma vez teve acesso. Os céus, de temidos na mentalidade animista, passam a ser contemplados, na fé expectante: “Oxalá fendesses o céu e descesses” (Is 63,19). E Deus desce, incarnando no seio da Virgem Maria e nascendo num lugar jamais pensado para um deus, num estábulo, tendo por berço uma manjedoura. Eis o mistério da fé: as estrelas iluminam o caminho, os animais aquecem o Menino, os soberanos seguem a estrela e inclinam-se diante da Suprema Majestade. Doravante, não há lugar no mundo, seja ele o mais sombrio, marginal ou insignificante, que não seja lugar e coisa sagrada. A paz acontece quando a sacralidade das criaturas é reconhecida e respeitada. Sacralidade que diz dignidade e interdita a violação. Sacralidade que diz limite, comportando simultaneamente um imperativo de restrição e um vocativo de excesso. Não entres como dono se podes entrar como amigo. Não venhas pela força; avança em doçura. O limite diz: eu não sou uma humilhação para ti, sou a tua vocação. Neste sentido, o “não matarás” (mandamento que não se refere simplesmente à eliminação física de outrem, mas também às sentenças de morte executadas no quotidiano por meio da violação dos direitos e deveres dos seres humanos e da natureza), mais do que um relativo (provisório) político-cultural é um absoluto (definitivo) imperativo teologal que, numa formulação positiva, poderá ser traduzido do seguinte modo: cuidarás da vida, de toda a vida, a vida toda, em todas as circunstâncias, mormente a vida fragilizada. No mundo actual, em particular no contexto europeu onde o argumento teológico é progressivamente desclassificado, a dignidade do ser humano, como valor absoluto, fica ao critério exclusivo do argumento antropológico. Ora este, mesmo na sua formulação mais plena, não deixa de ser relativo, e portanto não comporta em si o fundamento absoluto da dignidade humana. O laicismo europeu é, assim, confrontado a uma aporia que não pode ignorar: ou afirma o valor absoluto da dignidade humana, e para tal tem de avançar um fundamento absoluto da mesma dignidade – o argumento antropológico não chega a este nível de fundamentação – ou, então, todo e qualquer fundamento relativo faz da dignidade humana um valor relativo, à mercê dos tempos e das vontades. Isabel Varanda Professora de Teologia UCP

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