E se deixássemos o diabo em paz?

Padre Vítor Pereira, Diocese de Vila Real

Padre Vitor Pereira, Diocese de Vila Real

Ainda vejo para aí muitos discursos e homilias, com grande eco nas redes sociais, sobre o diabo ou o demónio, ou o que lhe quisermos chamar, e como combater as suas tentações ou possessões. Há quem enuncie detalhamente as formas e estratégias de combater as ciladas dessa sub-reptícia entidade, que por aí anda a atezanar as boas almas do mundo. Não entendo como é que se consegue ainda alimentar este tipo de discurso e não consigo vislumbrar qual a utilidade e o sentido destas prédicas eclesiásticas, a não ser fomentar a crendice e a confusão na cabeça de muitos crentes e não crentes.

Acho que já é tempo da Igreja pôr fim ao discurso sobre o diabo e suas anárquicas e requintadas malquerenças, acabar com as fantasias de que anda por aí um ser misterioso que se mete com as pessoas e as tenta para fazerem o mal, que entra nas pessoas e as adoece. Tudo isto cheira a parlenda bafienta, a medievalismo e a obscurantismo, que são perfeitamente dispensáveis na mensagem da Igreja Católica do século XXI.

Penso que já era tempo de se promover uma revisão do Ritual do Sacramento do Batismo, onde, no momento central das promessas batismais, se pergunta se renunciam a Satanás, às suas obras e às suas seduções. Saberemos certamente atualizar estas palavras, mas parece-me claramente que é uma linguagem que está fora do tempo, e pergunto-me sempre o que muitas pessoas entenderão sobre esta linguagem, ou se até não acharão perturbadora, esdrúxula e arcaica. Face ao conhecimento que hoje temos da saúde e da mente humana, é impossível continuar a sustentar qualquer fundamentação da existência do diabo e é um assunto indigno de uma fé adulta e esclarecida, que não deve perder muito tempo com fantasias pitorescas e folclóricas.

Os evangelhos contam-nos muitos episódios em que Jesus libertava as pessoas de demónios e de espíritos impuros, que infligiam a desordem e o sofrimento na vida das pessoas. À distância de dois mil anos, percebemos essa linguagem e não nos é difícil compreender que, na sua grande maioria ou até totalidade, eram doenças desconhecidas da cultura daquele tempo: distúrbios de personalidade, de âmbito psicológico e psiquiátrico, mazelas e maleitas físicas, convicções mórbidas, cismas, epilepsias, convulsões, histerias e por aí fora. Não eram nenhuns demónios ou espíritos que se metiam nas pessoas. Mais intrigante é o célebre tentador que Jesus teve no deserto e na hora da cruz: o diabo. Não era diabo nenhum. Os textos que nos apresentam estas cenas são uma parábola, e outra coisa não querem dizer senão que, no seu íntimo, Jesus experimentou o mistério do mal e da divisão na sua vida, como qualquer ser humano experimenta, os dois caminhos que se abrem diante do homem: ser fiel e obediente a Deus ou não ser fiel e obediente a Deus, centrando-se em si e nos ídolos do mundo, trocando-se Deus pelos falsos absolutos do mundo. Como homem que era, não pôde deixar de sentir a tentação e a contradição, mas escolheu sempre o caminho de Deus, a sua vontade e a sua missão.

Recordo uma afirmação do Papa Bento XVI, no livro Diálogos sobre a Fé, ainda como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé: «O demónio é, para a fé cristã, uma presença misteriosa, mas real, pessoal, não-simbólica. É uma realidade poderosa, o Príncipe deste mundo, é uma liberdade maléfica e sobre humana, oposta à de Deus, mas não é um outro deus. Unidos a Jesus, temos a certeza de vencê-lo». Rebatendo a tese de que o diabo é uma imagem e um símbolo, uma personificação do pecado e do mal, reafirmou: «O diabo é mesmo uma potência concreta, não é uma abstração. O homem é por ela ameaçado e é dela libertado por obra de Cristo». À luz da exegese bíblica e dos avanços científicos que hoje temos ao dispor nas diversas áreas das ciências, não vejo onde se pode alicerçar esta argumentação.

O diabo e tudo o que lhe é atribuído é uma forma de nós tentarmos explicar, muitas vezes, a existência de muito mal que vemos acontecer e nos é incompreensível, é uma tentativa, que é, isso sim, uma verdadeira tentação, de compreendermos, de forma fácil, o que é inexplicável. Muitas «possessões» que por aí andam são fruto de imaginação fértil e de graves distúrbios psicológicos e psiquiátricos ou da necessidade de ter uma justificação para o que é esquisito. Não têm nada de diabo. E quanto à convicção de que ele tenta as pessoas, centremo-nos é na nossa liberdade, no seu exercício e na sua adequada formação: O mal não está no diabo, mas no abuso e má formação da nossa liberdade, que nem sempre escolhe o que é bom, correto, certo e justo, está nas ações e desejos desordenados das pessoas. Se tirarmos do coração muitos sentimentos ruins que lá aninhamos (orgulho, soberba, ódio, ganância, vaidade, racismo, xenofobia, entre outros) e educarmos a nossa liberdade no caminho da liberdade responsável, também tiramos o «diabo» da nossa vida. Uma vida humana saudável, sem vícios, com amizade, uma afetividade saudável, trabalho, solidariedade, partilha, convívio, comunhão com os outros, amor, oração e vivência ativa da fé, desporto e cultura é o melhor exorcismo contra o diabo.

Pe. Vítor Pereira
Diocese de Vila Real
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