ClaraVilhena, coordenadora do Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo, afirma que o IVA zero «pode ajudar» mas é insuficiente e «a grande questão» para tirar pessoas da rua «é mesmo o teto», porque «a casa dá segurança»
Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Paulo Rocha (Agência Ecclesia)
Pela experiência que tem no acolhimento de pessoas em situação de sem-abrigo, que retrato faz da realidade atual? A inflação, a subida de preços faz aumentar as dificuldades e isso também se reflete nas pessoas que estão em situação de sem abrigo?
Sim claro. O número de pessoas está a aumentar. Até agora, em Setúbal, os sem abrigo, não eram visíveis como aqui em Lisboa… Não os víamos na rua. Neste momento, sim, são bem visíveis e o número começa a aumentar. E o que nos está a preocupar é que as pessoas que estão a chegar até eles não são com as características que estávamos habituados. Ou seja, pessoas que tinham associados alguns vícios ou do álcool ou de aditivos. Agora, estão-nos a chegar inclusivamente famílias com crianças que ficaram desalojadas por causa do mercado de habitação.
Por causa da especulação?
Sim, sim, sim.
Neste momento, para ter rendas mais baixas, as pessoas não fazem contratos e, portanto, não têm um contrato de arrendamento e ficam desprotegidos. Se o proprietário pretende vender a casa, diz que eles têm de sair em prazos muito curtos. Em Setúbal, começamos a sentir isso já alguns anos atrás com o aumento dos quartos .Para os nossos utentes a hipótese de casa é muito reduzida, porque recebem o rendimento social de inserção, que é muito baixo, mas ainda permitia que alugassem um quarto. Neste momento, há 2 ou 3 anos para cá, nem isso, porque os quartos dispararam e não conseguem alugar.
Já vamos às respostas que a Caritas de Setúbal tem pensadas também para essas situações. Ainda sobre a população em situação de sem-abrigo ou que procura a Cáritas, há uma mudança de perfil? Referiu famílias que vos batem à porta: há empregados com rendimentos baixos, com empregos precários, há mais pessoas a bater à porta da Cáritas, mesmo com emprego?
Sim. E tudo toca na habitação. Nós temos pessoas a pedir ajuda a nível alimentar que trabalham, têm o seu ordenado, o ordenado mínimo, mas tem o seu ordenado. Mas, como pagam um valor de 450 EUR de renda de casa, não lhes permite fazer face depois à alimentação. E, neste momento, é o que mais nos preocupa, pois são famílias inteiras, inclusivamente com crianças. E isso preocupa-nos. Alguns deles até tem emprego, mas depois também tem associado a doença mental, e estas 2 componentes, por vezes são muito complicadas e levam as pessoas até a rua.
E que respostas tem conseguido a Cáritas de Setúbal dar a essa população?
A nossa preocupação tem a ver agora com estas novas famílias que nos chegam, porque as nossas respostas não estavam direcionadas para este tipo de população. Nós temos avançado com algum tipo de respostas, principalmente de habitação. Avançamos, em 2021, com os apartamentos partilhados: a Cáritas aluga o apartamento e depois as pessoas que nós acompanhamos pagam um x por um quarto. Só para ter assim uma ideia, quem recebe o rendimento social de inserção, que agora subiu para 200 euros, paga 75 EUR do quarto. Portanto, é um valor que vão conseguindo pagar e, ao mesmo tempo, permite eles sentirem que no fundo estão a colaborar.
O que vai acima é suportado pela Cáritas?
O resto é suportado pela Caritas, sim. Nós temos um protocolo com segurança social que nos dá aqui algum apoio neste projeto.
Temos depois um outro projeto, que iniciámos o ano passado, em 2022, e esse é mais complicado. Nós avançámos para o “housing first”, que significa as casas primeiro, que é uma metodologia completamente diferente daquela que nós utilizávamos até aqui.
O “housing first” já existe aqui em Portugal desde 2009, penso que já há algum tempo aqui em Lisboa, mas no resto do país começou agora a aparecer e nós aderimos também. Nós, Cáritas de Setúbal, aderimos também aqui a este projeto: assinámos um protocolo o ano passado com a segurança social, mas até à data, ainda não recebemos qualquer apoio e tem sido a Cáritas a suportar.
Este projeto do “housing first” são casas em que as pessoas que estão na rua entram diretamente para as casas e a partir daí é que nós começamos a trabalhar com elas outras questões como a da saúde. Trabalhamos também as capacidades daqueles que têm ainda a possibilidade de poder aceder ao mercado de trabalho.
A Cáritas já alugou 5 apartamentos, onde temos casais e uma família que tem uma bebé. A autarquia disponibilizou-nos uma habitação e estamos a acompanhar uma outra senhora que está em habitação social, numa habitação da Câmara.
O que nós sentimos com a atribuição de casas é que a casa dá segurança e é a partir dessa segurança que nós conseguimos fazer outro tipo de trabalho e até a adesão das pessoas.
Com o apoio da segurança social conseguiriam ajudar muitas mais pessoas?
Muitas mais. Quando fizemos a candidatura, tínhamos 15 com protocolos e, no “housing first”, tínhamos pensado em 30. E todos com doença mental, porque era aqui que nós queríamos investir na doença mental, que são os mais desprotegidos.
Há, de facto, uma problemática que se agrava em torno deste setor da habitação e foi criado um pacote de medidas que tarda em chegar ao terreno. Na sua opinião, continuamos muito reféns da burocracia?
Eu penso que sim. Isto é como se fosse um vulcão e eu acho que estamos agora a entrar na problemática, mesmo. E o que eu sinto é que podíamos ter avançado com algumas medidas anteriormente e não deixar chegar ao ponto que estamos a chegar. Há agora alguns projetos para a construção de habitação social, e habitação mais apoiada, mas que ainda vai tardar porque eles vão começar agora a construção e, portanto, vai demorar ainda 2 anos e as coisas estão a atingir proporções muito grandes.
E se juntarmos a este calvário burocrático, a necessidade de aferir a constitucionalidade, por exemplo, de algumas das medidas, como é o caso do arrendamento coercivo, podemos estar perante mais uma manifestação de intenções que não passará do papel?
Pois é essa sempre a nossa preocupação porque neste momento, em Setúbal, o apoio da Cáritas é o único para estas pessoas que chegam ao fim da linha, ou seja, que chegam à situação da rua. E não temos resposta suficiente, mesmo com estes projetos que estamos a avançar, não temos resposta suficiente para conseguir apoiar todas estas pessoas. Principalmente quando se trata de crianças. E faz-me alguma confusão, por vezes, separar estas crianças dos pais só porque eles tiveram a infelicidade de vir parar à rua quando realmente são famílias organizadas. E só se desorganizaram porque lhes aconteceu isto na vida, deixaram de ter casa, alguns por causa de terem ficado desempregados. E isto é uma situação muito complicada.
E é de facto uma situação que pode pôr em causa até a Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem-abrigo… O presidente da República tinha manifestado o desejo de, até 2023, retirar as pessoas da rua. Com a habitação como está, será pouco provável…
Eu também sinto isso: também acredito que seria possível se, a nível político, as coisas avançassem de uma forma diferente.
É preciso intervir na no preço da habitação, no preço das rendas da habitação?
É preciso intervir… É preciso a construção ser mais rápida porque, se tivesse iniciado há mais tempo, talvez não estivéssemos a chegar a esta situação. E depois tem a ver também com o mercado imobiliário. Em Setúbal, até agora, ainda conseguimos alguns hostels a um preço que permite receber algumas das pessoas que estão na rua. A partir de Maio, quando vêm os turistas, deixa de ser possível durante o Verão todo, até setembro.
Ou se existem, é a preços muito caros…
Isso mesmo…
Há quem defenda uma intervenção metropolitana, uma estratégia metropolitana para este problema e não nacional. Qual é a sua análise: podia ser seria possível resolver de uma forma mais próxima, a partir dos municípios?
A população que nós acompanhamos circula muito pelo país. Neste momento, conseguimos ainda ir colmatando em termos de alimentação, banhos… Não sei se por isto, está aumentar, em Setúbal, o número de com pessoas que chegam de Lisboa, do Seixal e de outras zonas. E nós somos os únicos a dar uma resposta, o que está a dificultar muito o trabalho.
Isso significa então que não há essa estratégia para a integração das pessoas em situação de sem-abrigo, que foi definida em 2017?
A estratégia existe, mas a questão é mais profunda… Não há meios, não há respostas. Daqui a dois ou três anos, nós conseguimos, provavelmente, dar uma ou outro tipo de resposta com esta construção de habitação e a nível municipal. Mas, até lá, vamos ter estes anos em que não conseguimos dar mais resposta.
Há pouco dizia que a Cáritas é a única entidade que dá resposta a esta situação de sem abrigo em Setúbal?
É. Há uma outra associação, a Associação Casa, que dá resposta a nível alimentar…
Mas ao nível municipal não há resposta?
Não, não… Somos só nós.
Na terça-feira, entra em vigor o diploma que introduz o IVA zero para mais de 40 bens essenciais por um período de meio ano. É uma medida que foi sendo reclamada pelo setor social. Será suficiente nesta fase?
Eu penso que não. Pode ajudar, mas este tipo pessoas de que eu falo, mais do que a alimentação – porque para alimentação, as instituições ainda se vão organizando e vão conseguindo dar uma resposta. Pode não ser uma resposta total, mas vamo-nos conseguindo organizar – a grande questão é mesmo o teto, estas pessoas terem um teto.
Provavelmente, estas medidas avulso que estão a surgir vão ajudando… Pelo menos as pessoas não pagam tanto pela aquisição de alguns bens alimentares, mas eu penso que não são suficientes.
Defende que esta medida se deveria alargado a outras necessidades do setor social, por exemplo a construção?
Sim, penso que têm de ser medidas a mais abrangentes. Isto pode ajudar, mas tem de ser visto num todo. As pessoas não são os espartilhadas e têm de ser vistas num todo e nas necessidades que têm.
Desde que a medida foi anunciada, já tivemos oportunidade de verificar novas subidas de preços. Não faltará aqui também alguma solidariedade social por parte de quem promove os preços?
Provavelmente…
Não haverá demasiada especulação?
Provavelmente há… Quando estamos numa sociedade em que o dinheiro ainda é o que pesa mais… Enquanto não mudar este paradigma, continuamos sempre com estas desigualdades: uns a encherem-se mesmo numa altura em que outros estão a empobrecer cada vez mais.
Clara Vilhena acompanha esta realidade social na Cáritas de Setúbal já há algum tempo. E, há pouco, utilizou uma expressão a propósito da habitação, mas que acredito se aplique a outros problemas sociais: estamos no centro do vulcão! Sente que a população, no distrito de Setúbal, está a atingir os limites e não encontra respostas para as suas necessidades e as instituições não têm como dar resposta também?
Sinto. A Cáritas de Setúbal coordena o Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-abrigo, o NPISA, e depois somos coordenados pelo ENIPSSA (Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem-Abrigo). O que nós sentimos é que recorrem a nós sempre que alguém está na rua. Mas nós não temos resposta! E isto é um sentimento de impotência que, no dia a dia, começa a ser muito complicado para conseguirmos gerir o estar permanentemente a dizer, ‘eu não tenho vaga’, ‘não tenho sítio onde colocar essa pessoa’.
Que consequência pode ter esta situação?
Nem consigo imaginar, mas estou muito apreensiva.
A mais contestação social, mais manifestação na rua?
Provavelmente vai acontecer. Mas não sei se temos força suficiente para que essa manifestação consiga dar alguns frutos e consiga, pelo menos, colocar os decisores, as pessoas que têm o poder de decisão, atentos ao que realmente começa a gritar cá de baixo.. Nós temos situações cada vez mais gritantes.
Até agora, tínhamos mais pessoas na rua homens e as mulheres que estavam na rua tinham um companheiro. Neste momento, não! Estamos a alterar o nosso centro de acolhimento para acolher mais mulheres, porque neste momento temos mulheres na rua e depois não conseguimos dar resposta.