«E o Verbo fez-se carne e habitou entre nós» (Jo. 1,14)

Homilia do Patriarca de Lisboa na Missa de Natal

1. Nesta solene celebração do Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo, os textos da Sagrada Escritura convidam-nos a alargar o horizonte do nosso olhar, indo para além da contemplação do Menino no presépio, e abrir o nosso coração à profundidade do mistério de Deus, uno e trino, que nos envolve com o seu amor, num desejo inesgotável de missão. Aquele Menino tinha sido anunciado como o Emanuel, nome que significa “Deus connosco”. É o eterno desejo de Deus de entrar em diálogo com o homem, de o atrair para a comunhão de amor. Aquele Menino é o Verbo eterno de Deus, que agora se diz na realidade humana, anunciando que Deus se quer dizer, se pode revelar, em toda a realidade humana. “E o Verbo fez-se carne e habitou entre nós” (Jo. 1,14). É toda a profundidade da nossa fé e o sentido último da existência humana que estão contidos nesta encarnação do Verbo de Deus. A recente Exortação Apostólica “Verbum Domini”, di-lo claramente: o prólogo do Evangelho de São João dá-nos a conhecer o fundamento da nossa vida: o Verbo que desde o princípio está junto de Deus, fez-se carne e veio habitar entre nós. Trata-se de um texto admirável que oferece uma síntese de toda a fé cristã (cf. V.D. nº 5). Ao exprimir-se na realidade humana e habitar connosco, isto é, ao estar presente como palavra reveladora de sentido em toda a nossa aventura humana, a encarnação do Verbo revela o sentido da própria existência humana. “É à luz da revelação feita pelo Verbo divino que se esclarece definitivamente o enigma da condição humana” (V.D. nº 6).

2. Quem é este Verbo eterno que se exprime totalmente em Jesus de Nazaré? Ele é Deus: “O Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus” (Jo. 1,1). Ele é a expressão de Deus: quando Deus se revela, entrando em diálogo, Ele é a sua Palavra; quando Deus age, na criação e na história, Ele é a sua força criadora: “Tudo se fez por meio d’Ele e sem Ele nada foi feito” (Jo. 1,2). Tudo o que Deus nos diz e faz, brota do amor, e atrai-nos para o amor, porque “Deus é amor” (1Jo. 4,16).

A encarnação deste Verbo eterno enquadra-se no desígnio eterno de Deus, de criar e atrair todos os homens para o seu mistério de comunhão amorosa. Para São João, isso é claro: o quadro desta revelação é a criação e a história da humanidade. É o princípio, isto é, o começo. E esse início de todas as coisas brota de Deus, do seu Verbo.

Porque Deus é amor, as Pessoas divinas foram-nos reveladas como Pai e Filho, unidos no amor transcendente, que é o Espírito. Eles são o nosso princípio, o princípio de todas as coisas, que só encontrarão a sua verdade definitiva, regressando a esse princípio.

3. É este mistério de amor, esta densidade de vida, que se exprime toda na humanidade de Jesus de Nazaré. Quem olha para Ele vê um Homem, o filho do carpinteiro; quem olhar para Ele, alargando na fé o horizonte do seu olhar, encontra-se com Deus, pode escutar Deus, beneficiar, na sua vida, da força criadora de Deus. Tudo na humanidade de Jesus é divino: a sua Palavra, a sua força criadora, o seu amor ardente por todos os homens.

Esta encarnação do Verbo eterno foi o único caminho possível para que o homem pudesse tocar Deus, senti-l’O próximo, a fazer parte da sua vida. No Antigo Testamento generalizou-se a convicção de que ninguém poderia ver a Deus, que quem O tocasse ou se aproximasse morreria. São João conclui, no Evangelho que escutámos: “A Deus nunca ninguém o viu. O Filho Unigénito, que está no seio do Pai, é que O deu a conhecer (Jo. 1,18). Há uma humildade de Deus neste tornar-se próximo do homem. Esta humildade de Deus anuncia, aos cristãos, o caminho da humildade da fé. É o desafio de Paulo aos Filipenses: “Tende entre vós os mesmos sentimentos que havia em Jesus Cristo: Ele, que era de condição divina, não reivindicou o direito de ser equiparado a Deus, antes se despojou a Si próprio, tomando a condição de escravo, ficando semelhante aos homens” (Fil. 2,5-7). E a Exortação Apostólica “Verbum Domini”recorda-no-lo: “O próprio Filho é a Palavra, é o Logos. A Palavra eterna fez-se pequena; tão pequena que cabe numa manjedoura. Fez-se criança, para que a Palavra possa ser compreendida por nós” (V.D. nº 12).

Esta humildade de Deus sugere o ritmo da nossa fé. Não se progride na fé sem humildade. Só esta nos levará a não absolutizar a luz da razão, convidada, ela própria, a abrir-se à profundidade do mistério. Só esta humildade nos permite confiar que podemos tocar Deus através da humanidade de Jesus, da sua Palavra, dos seus actos, dos seus gestos; acreditar que n’Ele, as coisas simples nos fazem encontrar Deus; que a humanidade se pode transformar, progressivamente, em linguagem de Deus, em sinal da sua presença e da sua acção.

Para isso, basta acolher aquele Menino, aquele Jesus, Homem como nós, que nos leva através de toda a sua humanidade, ao encontro de Deus: “Àqueles que O receberam e acreditaram no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus”. É uma nova criação, porque “estes não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus”, porque “o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós” (Jo. 1,12-14).

O Verbo feito carne transformou profundamente o sentido da convivência humana. Em Cristo, podemos ser, uns para os outros, caminhos de Deus. E porque a redenção recupera a beleza da criação, em Cristo aprendemos a descobrir, em todos os caminhos humanos, dons de que Deus nos dotou, ao criar-nos, caminhos de Deus. Cristo não nos separou da verdade da criação; possibilitou-nos olhar para tudo e sentir Deus connosco no concreto da vida. Ele, Cristo, recapitula em Si todas as coisas.

Abramo-nos, nesta festa tão bela, a esta simplicidade do coração que nos levará, com coração de criança, a tocar Deus em tudo o que é verdadeiramente humano. Aprenderemos a acolher, como Palavra eterna de Deus, toda a humanidade de Jesus.

† JOSÉ, Cardeal-Patriarca
Sé Patriarcal, 25 de Dezembro de 2010

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