Homilia do Patriarca de Lisboa na Missa de Natal
1. Nesta solene celebração do Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo, os textos da Sagrada Escritura convidam-nos a alargar o horizonte do nosso olhar, indo para além da contemplação do Menino no presépio, e abrir o nosso coração à profundidade do mistério de Deus, uno e trino, que nos envolve com o seu amor, num desejo inesgotável de missão. Aquele Menino tinha sido anunciado como o Emanuel, nome que significa “Deus connosco”. É o eterno desejo de Deus de entrar em diálogo com o homem, de o atrair para a comunhão de amor. Aquele Menino é o Verbo eterno de Deus, que agora se diz na realidade humana, anunciando que Deus se quer dizer, se pode revelar, em toda a realidade humana. “E o Verbo fez-se carne e habitou entre nós” (Jo. 1,14). É toda a profundidade da nossa fé e o sentido último da existência humana que estão contidos nesta encarnação do Verbo de Deus. A recente Exortação Apostólica “Verbum Domini”, di-lo claramente: o prólogo do Evangelho de São João dá-nos a conhecer o fundamento da nossa vida: o Verbo que desde o princípio está junto de Deus, fez-se carne e veio habitar entre nós. Trata-se de um texto admirável que oferece uma síntese de toda a fé cristã (cf. V.D. nº 5). Ao exprimir-se na realidade humana e habitar connosco, isto é, ao estar presente como palavra reveladora de sentido em toda a nossa aventura humana, a encarnação do Verbo revela o sentido da própria existência humana. “É à luz da revelação feita pelo Verbo divino que se esclarece definitivamente o enigma da condição humana” (V.D. nº 6).
2. Quem é este Verbo eterno que se exprime totalmente em Jesus de Nazaré? Ele é Deus: “O Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus” (Jo. 1,1). Ele é a expressão de Deus: quando Deus se revela, entrando em diálogo, Ele é a sua Palavra; quando Deus age, na criação e na história, Ele é a sua força criadora: “Tudo se fez por meio d’Ele e sem Ele nada foi feito” (Jo. 1,2). Tudo o que Deus nos diz e faz, brota do amor, e atrai-nos para o amor, porque “Deus é amor” (1Jo. 4,16).
A encarnação deste Verbo eterno enquadra-se no desígnio eterno de Deus, de criar e atrair todos os homens para o seu mistério de comunhão amorosa. Para São João, isso é claro: o quadro desta revelação é a criação e a história da humanidade. É o princípio, isto é, o começo. E esse início de todas as coisas brota de Deus, do seu Verbo.
Porque Deus é amor, as Pessoas divinas foram-nos reveladas como Pai e Filho, unidos no amor transcendente, que é o Espírito. Eles são o nosso princípio, o princípio de todas as coisas, que só encontrarão a sua verdade definitiva, regressando a esse princípio.
3. É este mistério de amor, esta densidade de vida, que se exprime toda na humanidade de Jesus de Nazaré. Quem olha para Ele vê um Homem, o filho do carpinteiro; quem olhar para Ele, alargando na fé o horizonte do seu olhar, encontra-se com Deus, pode escutar Deus, beneficiar, na sua vida, da força criadora de Deus. Tudo na humanidade de Jesus é divino: a sua Palavra, a sua força criadora, o seu amor ardente por todos os homens.
Esta encarnação do Verbo eterno foi o único caminho possível para que o homem pudesse tocar Deus, senti-l’O próximo, a fazer parte da sua vida. No Antigo Testamento generalizou-se a convicção de que ninguém poderia ver a Deus, que quem O tocasse ou se aproximasse morreria. São João conclui, no Evangelho que escutámos: “A Deus nunca ninguém o viu. O Filho Unigénito, que está no seio do Pai, é que O deu a conhecer (Jo. 1,18). Há uma humildade de Deus neste tornar-se próximo do homem. Esta humildade de Deus anuncia, aos cristãos, o caminho da humildade da fé. É o desafio de Paulo aos Filipenses: “Tende entre vós os mesmos sentimentos que havia em Jesus Cristo: Ele, que era de condição divina, não reivindicou o direito de ser equiparado a Deus, antes se despojou a Si próprio, tomando a condição de escravo, ficando semelhante aos homens” (Fil. 2,5-7). E a Exortação Apostólica “Verbum Domini”recorda-no-lo: “O próprio Filho é a Palavra, é o Logos. A Palavra eterna fez-se pequena; tão pequena que cabe numa manjedoura. Fez-se criança, para que a Palavra possa ser compreendida por nós” (V.D. nº 12).
Esta humildade de Deus sugere o ritmo da nossa fé. Não se progride na fé sem humildade. Só esta nos levará a não absolutizar a luz da razão, convidada, ela própria, a abrir-se à profundidade do mistério. Só esta humildade nos permite confiar que podemos tocar Deus através da humanidade de Jesus, da sua Palavra, dos seus actos, dos seus gestos; acreditar que n’Ele, as coisas simples nos fazem encontrar Deus; que a humanidade se pode transformar, progressivamente, em linguagem de Deus, em sinal da sua presença e da sua acção.
Para isso, basta acolher aquele Menino, aquele Jesus, Homem como nós, que nos leva através de toda a sua humanidade, ao encontro de Deus: “Àqueles que O receberam e acreditaram no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus”. É uma nova criação, porque “estes não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus”, porque “o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós” (Jo. 1,12-14).
O Verbo feito carne transformou profundamente o sentido da convivência humana. Em Cristo, podemos ser, uns para os outros, caminhos de Deus. E porque a redenção recupera a beleza da criação, em Cristo aprendemos a descobrir, em todos os caminhos humanos, dons de que Deus nos dotou, ao criar-nos, caminhos de Deus. Cristo não nos separou da verdade da criação; possibilitou-nos olhar para tudo e sentir Deus connosco no concreto da vida. Ele, Cristo, recapitula em Si todas as coisas.
Abramo-nos, nesta festa tão bela, a esta simplicidade do coração que nos levará, com coração de criança, a tocar Deus em tudo o que é verdadeiramente humano. Aprenderemos a acolher, como Palavra eterna de Deus, toda a humanidade de Jesus.
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca
Sé Patriarcal, 25 de Dezembro de 2010