É impossível falarmos em família humana com «filhos de primeira e de segunda»

No contexto da Semana Cáritas, que vai começar este domingo, Eugénio Fonseca, presidente da organização católica, explicou à Agência ECCLESIA os objetivos da iniciativa, partilhou preocupações e analisou os principais projetos que estão em curso

Agência ECCLESIA (AE) – “Num só coração, uma só família humana”, o que é que o tema da Semana Cáritas pretende reforçar junto das pessoas?

Eugénio Fonseca (EF) – Primeiro, reforçar a campanha que foi lançada há pouco mais de um ano pela Caritas Internationalis, com o apoio do Santo Padre, que tem mesmo esse mote, “Uma só família humana”, que visa consciencializar a humanidade de que é possível a erradicação da fome no mundo. Mata-se a fome em família. Claro que não é só a solidariedade que pode atingir este objetivo, ele passa por assumirmos atitudes de maior justiça social porque há fome no mundo não porque haja menos recursos que possibilitem o acesso à alimentação de todos os habitantes do planeta.

A quantidade de desperdício alimentar é muito superior àquela quantidade de alimentos que seria necessária para garantir a subsistência das pessoas que hoje passam fome. Depois, para que isto seja possível, é preciso ter consciência de que somos mesmo uma família e lutar contra algo que se instalou no mundo, através de uma civilização muito materialista e que gerou ou está a gerar um individualismo atroz.

Para nós cristãos, há uma responsabilidade acrescida, que deriva de sabermos que Deus é Pai, um Pai que não faz aceção dos filhos, quer tratar todos por igual, não quer que uns se sentem à beira da mesa sempre ao longo da vida, à espera que caiam as migalhas, porque a mesa está posta para todos.

Nesta perspetiva de fé, as fronteiras humanas ou territoriais, devem ser apenas entendidas como formas de organização social ou territorial, mas não têm que ser forçosamente muros a dividir os seres humanos.

Por isso, o sofrimento que acontece numa latitude do mundo muito distante de mim tem que me causar a mesma compaixão que aquela que me causa o sofrimento que está mais perto. Aquilo que temos de fazer é construir na humanidade uma família, que não faz distinções de raças, pensamentos, posição social, de qualquer tipo de poderes. É aqui que reside também a escolha deste tema.

 

AE – Há cada vez mais pessoas, crianças, jovens e adultos a passarem fome. Como colocar esta noção mais presente na sociedade?

EF – Se o desígnio é conseguirmos que a humanidade viva como uma família, isso nunca se alcançará se as nações não o conseguirem ser por si só. E nós claro, temos que viver esta dimensão da fraternidade de uma forma mais próxima, mais local, a começar cada um na sua família, depois na sua paróquia, na sua empresa, no clube a que pertence, para depois irmos para a cidade, a região e o país e todos juntos conquistarmos essa família humana universal.

Agora, nós no nosso país, nos últimos tempos, temos vindo a acentuar ainda mais esta evidência de que não somos uma família. Porquê? Porque alguns continuam sentados à mesa confortavelmente, pessoas que pouco têm sido molestadas pela crise económica e financeira que o mundo atravessa, a Europa e de forma muito particular Portugal.

Enquanto outros, que são também filhos desta nação, têm sido altamente flagelados pelas medidas de combate à mesma crise. E havendo filhos de primeira e filhos de segunda, digo mais, havendo filhos e enteados não há família.

Nesta semana, cada diocese fará de acordo com as suas possibilidades, um momento de reflexão à volta deste tema. Chegaremos até mais longe, falaremos a propósito deste tema, daquilo que está a acontecer no mundo com este fenómeno transformador que veio através da comunidade islâmica, que está o vulcão no Médio Oriente.

E depois não queremos ficar apenas pela reflexão, queremos também confiar a Deus estas nossas preocupações, para que nos encoraje em família a defendermos os nossos irmãos, a vivermos como irmãos, e isto faz-se na partilha. Por isso iremos ter o peditório público, de quinta a domingo, em vários pontos do país.

Em todas as cidades irá aparecer alguém devidamente qualificado com o símbolo da Cáritas a solicitar esse apoio. E no terceiro domingo da Quaresma, Dia Nacional da Cáritas, 8 de março, a coleta que se recolher nesse dia em todas as igrejas será entregue depois à Cáritas dessa diocese.

Para quê? Para acudir às necessidades dos nossos irmãos que nos estão mais próximos. Nas paróquias, nas dioceses, e depois com uma pequenina percentagem de cada peditório de rua, chegar às dioceses que menos recursos têm, a partir do Fundo Social Solidário que a Conferência Episcopal Portuguesa criou e que, em dois anos, já distribuiu mais de dois milhões de euros.

 

A caridade dá «dimensão social ao compromisso cristão»

AE – Tem defendido que mais do que uma lógica de assistencialismo, é preciso consolidar na sociedade uma lógica de maior justiça social. Como é que se isso se pode concretizar?

EF – Antes de mais eu gostava de dizer, mais uma vez, que não devemos ter qualquer vergonha ou nos sentir menorizados por investir em práticas de assistência. A Cáritas, nos últimos anos, a grande parte dos recursos que os portugueses lhe confiaram foram para satisfazer necessidades de primeira linha, que têm a ver com a subsistência: casa, eletricidade, água, medicamentos, acesso à escola, isto é assistência.

Há gente que confunde assistência com assistencialismo, mesmo gente que deveria ter a obrigação de fazer esta distinção. Quem defende a teoria de que é preferível dar a cana a dar o peixe correrá o risco de deixar as pessoas morrerem sem alguma vez terem a possibilidade de alcançar a cana, ou quando lhes for dada a cana não terem forças para pegar nela. Estas forças são muitas vezes as forças anímicas. Eu costumo dizer que quem contraria esta ação, a assistência, tem a barriga cheia, não sente a fome.

Nós temos investido na assistência mas, e aqui é que se diferencia do assistencialismo, sempre com a preocupação de não ficarmos só satisfeitos com o dar coisas, mas saber as causas que levam as pessoas a precisarem dessas coisas para, com elas, arranjarmos formas delas deixarem de necessitar aquilo que nós lhes estamos a dar.

E do que é que as pessoas necessitam? De trabalho! É trabalho que falta! As pessoas que caíram nesta situação estão ansiosas de que lhes devolvam o posto de trabalho que perderam. Portanto, aqui há um grande desafio que se lança a todas as instituições sociais, e neste caso à Igreja em particular, porque tem princípios orientadores que nos apontam para aí que depois são explicitados pela Doutrina Social da Igreja.

Nós devemos estar preparados para ajudar as pessoas a superarem as causas da sua pobreza e não ficarmos apenas na administração, na gestão das carências das pessoas.

Isto exige termos agentes de ação social nas paróquias mais preparados, precisamos de ter gente até mais nova, com capacidade de sonhar, de empreender realmente projetos novos que possam tornar-se aliciantes para que as pessoas encontrem modos de autonomia financeira.

Porque há gente que pode vir a não ter trabalho por conta de outrem e ter que criar a sua própria forma de subsistir. E isto vai-nos trazer exigências à renovação da ação social e caritativa da Igreja, isto é urgente!

 

EF – Em primeiro lugar, que as comunidades cristãs tenham esta dimensão presente, que não vivam só em torno da dimensão catequética e litúrgica e que deixem para segundo plano esta dimensão da organização da caridade. Porque, como dizia Bento XVI na encíclica Deus Caritas est, a caridade também se organiza, e como se organiza a catequese e a liturgia, a comunidade cristã também tem que ter esta dimensão evangelizadora ou então não será comunidade.

Nenhuma dimensão é mais importante do que a outra, elas complementam-se, mas eu para dar credibilidade à Palavra em que acredito e celebro, tenho que a viver na vida. Esta é a dimensão social do meu compromisso cristão.

A renovação da ação social da Igreja é muito importante e por isso temos de apostar na formação das pessoas, temos de trazer mais gente, gente mais nova, sem dispensar a experiência dos mais velhos.

Mudou o perfil da pobreza em Portugal. Nós tínhamos acentuadamente um tipo de pobreza mais geracional, agora aquilo que chamamos – que eu não gosto de chamar – novos pobres, gente que pertenceu à classe média, não propriamente média baixa, e que hoje caiu nas malhas da pobreza.

São pessoas que têm consciência dos seus direitos sociais, laborais, cívicos, e nós temos que fazer com que essas pessoas não percam essa consciência, porque ao perderem essa consciência facilmente perdem autoestima, e perdendo autoestima correm maior risco de cair na fatalidade, de estar na teia da pobreza e dela não sair.

 

«Alguns gostariam de nos ver mais na sacristia»

AE – A Cáritas tem atualmente a decorrer vários projetos que procuram ir ao encontro destas problemáticas que referiu. Que balanço faz dessas ações?

EF – Nós atualmente temos referenciados quatro grandes projetos, embora todos girem à volta desse grande eixo que é o projeto “+ Próximo”. Mais do que um projeto, é um programa de formação para os de dentro da Cáritas e para os de fora, que está a ser muito bem acolhido.

Ele tem como objetivo formar aqueles que já estão nas paróquias dedicados à ação social e caritativa, pretende sensibilizar os que, na comunidade cristã, nós designamos como católicos praticantes mas cuja prática é cumprir o preceito dominical, para que se envolvam na ação pastoral que tem várias vias, uma delas é esta do testemunho caritativo. Através dos módulos formativos que este programa “+ Próximo” tem, no âmbito da Doutrina Social da Igreja, do voluntariado, dos fundamentos da ação social, permite explicar aos não católicos porque é que a Igreja está envolvida nesta dimensão da vida, das pessoas.

Porque alguns gostariam de nos ver mais na sacristia, e acham que o nosso papel é mais da dimensão espiritual e religiosa, como se estas tivessem algum sentido se não fosse também contemplada a dimensão das pessoas.

Ninguém pode estar bem espiritualmente se fisicamente não estiver, o espirito encarna no ser humano concreto.

 

EF – Este é o eixo, e depois à volta dele temos o programa “Dar e Receber”, como parceiros da organização “Entreajuda”, e aqui o que se visa é fundamentalmente criar os tais grupos de ação social onde eles ainda não existam nas comunidades cristãs. Não quer dizer que cada paróquia tenha de ter um, agora até há unidades pastorais, há párocos que têm mais do que uma paróquia. Não vamos exigir que cada paróquia, nestas circunstâncias, tenha um grupo, mas que pelo menos que haja um representante de cada paróquia num grupo.

Temos também neste programa “Dar e Receber”, que durará até Julho deste ano, a preocupação de rejuvenescer alguns grupos que precisam efetivamente de gente mais nova. Depois temos o programa “Cri(a)tividade”, para a criação de postos de trabalho. Já temos felizmente cerca de 30 projetos que vão ocupar 45 pessoas e poderemos chegar a mais de 100 se nos for viabilizado aquilo que é necessário, como acesso ao crédito ao nível da banca, porque isto faz-se através do microcrédito, do chamado franchising social. Também estamos a trabalhar nesta dimensão, que até agora não era possível.

Há ainda o programa dos Grupos de Interajuda Social, que não tem sido tão bem sucedido talvez por não termos conseguido agarrá-lo bem, e que pretende pôr os desempregados a falarem uns com os outros.

Isto é muito importante, porque há pessoas que vivem na solidão o drama de não terem trabalho, e não é só o não ter ao fim do mês uma quantia monetária para sobreviver, é muitas vezes perder também o estatuto social.

E portanto as pessoas precisam de se encontrar para desabafar, para dizerem das suas preocupações mas também dizerem aquilo que gostariam de fazer se tivessem apoios, como já aconteceu em alguns grupos e daí terem resultado ideias de criação empreendedora, de certo tipo de atividades.

Dizer onde as pessoas se podem dirigir porque uns já se dirigiram e foram bem-sucedidos e podem dizer aos outros.

Isto evita problemas tão graves como aqueles que estão a atravessar a vida de muita gente, que são as depressões psíquicas, e no limite até pode evitar que as pessoas optem, como algumas infelizmente já optaram, por soluções mais radicais.

 

Autarquias vão dar «novo fôlego» a projeto dedicado a desempregados com mais de 45 anos

AE – Ainda sobre o emprego, a Cáritas promoveu um projeto para pessoas com mais de 45 anos, o “Inspira”. Que não tem dado passos tão consolidados como se pretendia.

EF – Penso que agora está a ganhar um novo fôlego. Nós sonhámos mas cá está, a conjuntura não era a mais favorável porque não havia as tais canas. A nossa preocupação, que mantemos, é sobre aquelas pessoas que têm mais de 45 anos, e pusemos aqui esta baliza porque podíamos até recuar um bocadinho mais, poderem não vir a ter trabalho por contra de outrem ou como tinham até agora.

E criámos uma plataforma em que empresas devidamente credenciadas se podiam inscrever e ao mesmo tempo pessoas desempregadas identificavam as suas tarefas, aquilo que eram capazes de fazer, as suas competências, e as empresas iam lá buscá-las.

Conseguimos meia dúzia de casos, mas agora as câmaras municipais estão a envolver-se também, apanharam a génese deste projeto e estão a protocolar até connosco e com a ajuda delas talvez este projeto possa ter um novo fôlego.

 

AE – Além da alimentação e do emprego, outra grande preocupação que tem transmitido está relacionada com a habitação, com o facto de muitas pessoas terem perdido a sua casa devido à crise.

EF – É um problema muito sério, que ainda não se encarou de forma frontal, um problema crucial. Por um lado, respeitar um direito fundamental das pessoas, que é o direito à habitação. Por outro, para se evitar aquilo que está a acontecer, que é a desarmonia conjugal que leva ao aumento da violência doméstica, à desagregação familiar que leva à separação dos casais, que regressam à casa dos pais levando até os filhos, separando os filhos.

Isto é o desmontar de uma coesão social que é imperiosa para vivermos em harmonia, e temos que arranjar alternativas porque aquilo que está a acontecer é extremamente injusto.

As pessoas foram, muitas delas, assediadas com facilitismos que interessavam na altura às entidades credoras, a que se juntava a necessidade de ter uma habitação. Hoje as pessoas casam mais tarde, porque não têm possibilidade, não têm emprego, capacidade de ter casa.

Apanhando facilidades de crédito, foi isso que aconteceu, os bancos enganaram as pessoas, porque muitas vezes concederam créditos mediante rendimentos declarados que se via perfeitamente que as pessoas podiam não ter a possibilidade de respeitar os compromissos. Mas não se adivinhava que, passado alguns anos das pessoas assinarem esse contrato, elas ficassem sem qualquer rendimento.

É disso que iremos dentro de dias falar com o secretário de Estado da Habitação. Não adiantarei já a proposta porque seria fazer já aqui a reunião, mas ela já está marcada para dia 9 de março.

Esperamos que possa sair dessa reunião pelo menos algum acolhimento por parte do Governo. Sabemos que os bancos não são entidades de solidariedade mas também têm de assumir o capital de risco.

José Carlos Patrício

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