Isabel Figueiredo, diretora do Secretariado Nacional das Comunicações Sociais
«E agora?» A pergunta repete-se, umas vezes no tom acusatório de quem se sente no direito legítimo de exigir respostas, outras na pergunta genuína, de quem deseja saber o que fazer com a descoberta de uma realidade escondida.
A apresentação do relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica em Portugal, no passado dia 13 de fevereiro, desencadeou uma reação emocional e racional de enorme impacto mediático que nos obriga a continuar a refletir com discernimento, ponderação e verdade.
A verdade impôs a necessidade de se assumir a questão dos abusos a menores no seio da Igreja e o Papa Francisco exigiu-nos a concretização de uma tolerância zero e transparência total no tratamento desta realidade. Para tal foram criadas Comissões Diocesanas para Proteção de Menores e Adultos Vulneráveis – no Patriarcado de Lisboa, a Comissão trabalha desde 2019 – e surgiram outro tipo de Comissões que fizeram estudos sobre este drama, dimensionadas à realidade de cada país. As respostas foram diferentes, como seria de esperar, mas comum é a confirmação de que a Igreja não conseguiu evitar comportamentos abusivos no seu seio e encobriu, ao longo do tempo, esses mesmos comportamentos, que têm um espectro imenso. Em muitos casos, o abuso e a pedofilia cruzam-se, o abuso do poder e o abuso sexual são cumulativos e os comportamentos imorais normalizam-se em vidas ocultas e paralelas.
Mas, voltando ao relatório da Comissão Independente, um dos primeiros pontos que me parece ser de sublinhar refere-se ao facto de que este trabalho parte de testemunhos. Não estamos a falar de denúncias, nem de denúncias que obrigaram à realização de investigações prévias e, menos ainda, de acusações resultantes de processos criminais. Mas é um passo com carater de urgência, que permite abrir a fresta de uma janela que desejamos escancarada e com os vidros transparentes de tão limpos que estejam…
Por outro lado, julgo que a leitura de frases curtas, com uma carga visual tremenda, obteve o resultado pretendido, isto é, transformou centenas de páginas com informação recolhida e trabalhada num documento vivo, em carne e sangue, capaz de dar vida a uma dose de sofrimento que nos coloca perante verdadeiras imagens de tortura, esquecidas há dezenas de anos. A vergonha, a compaixão, a incompreensão, tornaram-se palpáveis naquela sala cheia de gente que escutava em silêncio a leitura intensa que ia sendo feita.
O meu primeiro pensamento foi para as vítimas – “teriam autorizado aquela exposição da sua intimidade? Teriam consciência de que o anonimato é muito frágil nos dias de hoje, em que tudo se cruza e há sempre alguém que fala? Os fins justificam os meios?” Tendo a dizer que era necessário tornar inesquecível e inadiável esta revelação. Mas mesmo assim, guardo uma secreta esperança de que tenham sido salvaguardados todos os direitos de cada homem e cada mulher que corajosamente voltaram ao seu passado e o relataram na sua enorme dureza e crueldade…
Quase a seguir, pensei nos abusadores, nos homens que destruíram a pureza das crianças, a ingenuidade de tantas outras, os sonhos e as esperanças de jovens que encontraram na Igreja o mistério da presença de Deus no mundo. São demasiadas destruições que nos impelem à vontade de punir exemplarmente os culpados. “Que direitos lhes assistem? Que compaixão nos merecem?” Perguntas que permanecem no meu coração, porque não encontro resposta. Ainda não consigo encontrar uma resposta que me tranquilize. Mas sei que a certeza do exercício da justiça é fundamental numa vida em sociedade, estejamos a falar do ensino, da família, do trabalho, da economia, do poder político ou da Igreja.
E no turbilhão dos pensamentos que se seguiram àquela manhã, na sequência do visionamento de inúmeras peças jornalísticas, das capas de jornais, da escuta de múltiplas declarações, a pergunta mantém-se persistente, inquietante: «E agora?» Este «agora» pode ter múltiplas facetas, todas elas exigentes e necessárias. Das muitas que vão surgindo, em conversas de café, à mesa de nossas casas, em entrevistas e reportagens, entre amigos e inimigos, julgo que todos concordamos na necessidade de entregar à Justiça o que é da Justiça; tal como na certeza de que a Igreja em Portugal vai tomar medidas concretas e publicáveis do cumprimento das ordens transmitidas: na convicção de que a revelação de abusos de crianças na Igreja Católica pode e deve abrir a investigação, publicação e análise da dimensão dos abusos de crianças em toda a sociedade portuguesa; na urgência de falar de educação sexual, de prevenção de abusos, de comportamentos imorais, de violência, de uma forma adaptada a diferentes idades, mas clara e consequente. Na família, na escola, na Igreja.
Por último, uma certeza que me tem acompanhado, mas que se vincou com maior intensidade desde a passada segunda-feira: nunca podemos tomar a parte pelo todo. Na sua larga e imensa maioria, Bispos e Padres, Escuteiros e Catequistas, Professores e Superiores nunca exerceram qualquer forma de abuso sexual sobre crianças, antes pelo contrário, dão as suas vidas pela Igreja e na Igreja. Ajudam a cuidar dos nossos filhos e netos. Ajudam a cuidar dos nossos pais e avós. São exemplares nos seus comportamentos e não merecem ser olhados de nenhuma outra forma.
Isabel Figueiredo
Diretora do Secretariado Nacional das Comunicações da Igreja
Membro da Comissão de Proteção de Menores do Patriarcado de Lisboa