Dos massacres ao grito da vitória

Jornalismo na independência de Timor-Leste Um espelho só é importante quando reflecte a realidade, da mesma forma que os jornalistas se revelaram importantes para Timor Leste a partir do momento em que apresentaram ao mundo a tragédia que os timorenses já viviam, em segredo, há demasiados anos. Desde a ocupação do território pela Indonésia que o povo de Timor foi massacrado mas, aos olhos do mundo, sem o espelho da comunicação social, a imagem do terror era invisível, como se não existisse. Mário Carrascalão, antigo governador do território, garantiu-me um dia, ainda durante a ocupação, que ocorreram outros massacres como o do cemitério de Santa Cruz, a 12 de Novembro de 1991… a diferença é que não havia jornalistas por perto. Foram as imagens captadas por Max Stahl e a denúncia da morte, e do desaparecimento, de centenas de pessoas que sobressaltaram a consciência de alguns líderes mundiais. Com o tema nas páginas dos jornais, começava a pressão internacional sobre a Indonésia. Foi a década em que se realizaram as chamadas reuniões “intra-timorenses”, na Áustria. Enquanto jornalista da Rádio Renascença, tive a oportunidade de acompanhar um desses encontros, no castelo de Krumbach, não muito longe de Viena. A organização coube às Nações Unidas. O objectivo era encontrar plataformas de diálogo entre os timorenses pró-Indonésia e os que queriam a autodeterminação. Através de uma mediação, sábia, por parte da Igreja Católica foi possível sentar à mesma mesa pessoas tão distantes quanto José Ramos Horta e Francisco Lopes da Cruz, embaixador itinerante da Indonésia. O mais importante era manter aberta a janela do diálogo… mas ela quase se fechou perante a rivalidade, antiga, de dois movimentos timorenses unidos agora na resistência: FRETILIN e UDT. As feridas rasgadas em 75 ainda não tinham sarado apesar de estarem envolvidos numa causa comum – a libertação de Timor. A Indoné-sia aproveitava, ainda, essa fragilidade. De qualquer forma, jornalistas de vários países acompanharam a reunião e escutaram, tal como eu, alguns relatos, na primeira pessoa, sobre o que se passava em Timor. Armandina Gusmão, irmã de Xanana – detido então em Jacarta – vivia em Díli, e contou-nos algumas das mais recentes atrocidades cometidas sobre o povo timo-rense. Relatos idênticos foram feitos por alguns jovens e por Ma´huno. Este antigo comandante da resistência disse-nos que os guerrilheiros, nas montanhas, nunca iriam desistir de combater o inimigo… Três meses mais tarde consegui, finalmente, ‘visto’ para ir a Timor… não sem antes parar em Jacarta. Foi em Fevereiro de 1999 que conheci Xanana Gusmão. Tinha sido transferido da cadeia de Cipinang para uma casa-prisão. Face à pressão internacional, a Indonésia permitiu o impensável – que Xanana, apesar de detido, reunisse com Nelson Mandela ou Madeleine Albright, a secretária de estado norte-americana. Era um estadista preso. Sucediam-se também as entrevistas aos jornalistas de todo o mundo. A primeira foi concedida, em conjunto, a um grupo de jornalistas portugueses, de que fiz parte. Xanana, determinado, insistiu na importância de ajudar a Indonésia a libertar-se do “fardo” de Timor. Assim se tinha referido ao território, dias antes, o então presidente indonésio, Habibie. Xanana disse também uma frase, a propósito do futuro de Timor, que jamais esquecerei: “Uma casa com uma bandeira pode ser um país”. O líder timorense já não tinha dúvidas de que Timor Leste conquistaria a independência, só não sabia quando. A esperança crescia no mundo e também no território, através da comunicação social… e foi esperança, misturada com uma evidente apreensão, que encontrei ao chegar a Timor, no primeiro contacto com a população. As pessoas falavam-me como se um quarto de século não tivesse passado desde a partida dos portugueses. Um homem aproximou-se de mim e mostrou-me uma velha cigarreira, com a bandeira portuguesa gravada na tampa. Aos abraços seguiam-se invariavelmente as queixas, em português. Eram feitas em surdina, porque os militares indonésios estavam por toda a parte e havia também os “informadores” do regime. Como tantos outros jornalistas, pude confirmar e relatar, na altura, algumas das perseguições e atrocidades cometidas pelos militares. Nessa primeira visita que fiz ao território foram raros os dias em que não surgiram notícias de timorenses mortos pelos militares indonésios. Encontrei centenas de refugiados na casa de Manuel Carrascalão. Ele protegia-os como podia, dava-lhes arroz e sobretudo palavras de esperança. Vi-os rezar, em português, ao cair da noite, nas traseiras da velha casa… a casa que, meses mais tarde, viria a ser incendiada pelas milícias e onde foi barbaramente assassinado Manelito, filho de Manuel Carrascalão. Os jornalistas contaram também ao mundo que estavam a ser organizados grupos de milícias integracionistas… formados pelos militares indonésios. Encontrámos a prova em Balibó. Vimos centenas de homens com faixas vermelhas e brancas (cores da bandeira indonésia) na cabeça. Nas mãos tinham catanas e armas de fogo artesanais. Eram timorenses humildes e pareciam passar fome. A troco de umas moedas para comprar comida, ou porque eram obrigados, juntaram-se à primeira cerimónia oficial das milícias. Era essencialmente uma demonstração de força… e não havia só armas artesanais. Estavam lá para-militares, com espingardas Mauser e G-3. Os chefes da polícia e do exército assistiam a tudo activamente, participaram na formação das milícias integracionistas que mais tarde iriam arrasar Timor. Apesar da denúncia dos jornalistas e dos alertas feitos pelos dois bispos timorenses (D. Ximenes Belo – Nobel da Paz – e D. Basílio do Nascimento), preocupados com a crescente actividade das milícias, foram os indoné-sios a assumir a segurança do Referendo de 30 de Agosto de 99. Venceu a independência… mas os sorrisos da população duraram pouco. Aos primeiros dias de Setembro, avançou o “Plano B” de Jacarta: o ajuste de contas. Nos ecrãs de televisão, nas ondas da rádio, os relatos foram aterrorizadores. Inúmeras pessoas assassinadas, casas incendiadas por toda a parte, timorenses a procurarem refúgio nas montanhas e em Timor Ocidental… os “campos de concentração” vigiados pelas milícias. As imagens transmitidas a partir de Timor chocaram o mundo. Os jornalistas foram o espelho que divulgou a tragédia mas também, meses depois, mensageiros da paz que os timorenses conquistaram. O resto é de todos conhecido. A Interfet chegou ao território… após uma longa maratona negocial na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, que acompanhei, como enviado da Renascença. Havia fortes resistências ao avanço da forma multinacional. O impasse manteve-se madrugada fora. Às 4 da manhã, Richard Holbrook, embaixador norte-americano junto da ONU, entrou na sala do debate e, apenas 10 minutos volvidos, saiu. A decisão estava tomada: os EUA acabavam de “convencer” a Indonésia. Jacarta iria, também, retirar os seus militares de Timor Leste, dias mais tarde. A independência foi alcançada a 20 de Maio de 2002. Pedro Mesquita, Jornalista da RR

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