Dos bloqueios de um processo à exemplaridade de Santo Óscar Romeno

José Eduardo Borges de Pinho

1. Naquela tarde de 24 de Março de 1980, a notícia do assassinato de D. Óscar Romero em plena celebração da eucaristia caiu nas redações dos meios de comunicação social como um acontecimento que era receado, mas que se esperava nunca viesse a suceder. A Junta militar em El Salvador e os célebres “esquadrões da morte” tinham de calar a voz incómoda de alguém que, também através da rádio da sua diocese, denunciava as injustiças, a opressão, as violações de direitos humanos fundamentais. Trabalhando então na Rádio Renascença, nessa altura com a tarefa de coordenar um espaço informativo eclesial, a notícia, recebida com alguma emoção, mereceu atenção particular. Para quem acompanhava a vida da Igreja, eram bem conhecidas a coerência e a coragem do arcebispo salvadorenho no anúncio do Evangelho e na consequente defesa da justiça para com os mais pobres e da dignidade da pessoa humana.

 

2. Uns bons anos depois, encontrei ocasionalmente um alto responsável pelos processos de canonização em Roma. Depois de uma ampla conversa sobre vários outros assuntos, perguntei-lhe diretamente porquê o processo de canonização de D. Óscar Romero, afinal com indicativos tão claros aos olhos comuns, não avançava, em contraste com outros casos conhecidos. A resposta recebida, entre “meias” palavras e alguns silêncios, confirmou-me inequivocamente que forças ideológicas, tanto na Cúria Romana (excluo os Papas) como em El Salvador, bloqueavam o andamento deste processo.

 

3. Desde então – e isto é um aparte que vai para além de Óscar Romero – cresceu em mim a convicção de que nos processos de canonização há aspectos que necessitam de ser revistos e aprofundados. Desde logo, o discernimento eclesial que, indiscutivelmente, precisa de ser feito pode ser mais célere, mais coerente, teológica e eclesialmente mais transparente. Ponto de partida e ponto de referência fundamentais, decisivos mesmo, não podem deixar de ser as expressões a nível local/regional do sensus fidei fidelium (o sentido da fé dos crentes) e os indicativos que daí vêm para o discernimento dos sinais da presença de Deus e seus frutos na vida de uma pessoa nos contextos e circunstâncias singulares da sua existência. Além disso, e entre outras coisas que será indispensável rever, está o percurso e a finalização destes processos: o reconhecimento eclesial tem de assentar na confiança de que Espírito Santo acompanha a Igreja nesse discernimento, relativizando assim a expectativa de que aconteçam sinais miraculosos por intervenção pontual de Deus (algo que não pode deixar de questionar a ideia cristã de Deus e os próprios indicativos do Evangelho).

Dentro dos limites que persistem, é mérito do Papa Francisco, tendo conhecido mais proximamente a pessoa, o contexto existencial de vida e o sentido profético do agir crente e pastoral do arcebispo salvadorenho, ter dado o impulso decisivo em ordem à canonização que ontem ocorreu. A proclamação da santidade de D. Óscar Romero é o reconhecimento, por parte da Igreja, de que nesta história de vida, marcada por circunstâncias de martírio, há consistência e exemplaridade à luz do Evangelho que merecem a atenção dos cristãos a nível universal.

 

4. Que resulta, então, como interpelação a partir deste acontecimento? Várias coisas, das quais destaco três.

a) Ressalto, em primeiro lugar, a exemplificação concreta de como a existência cristã, vivida com coerência na busca de fidelidade ao Evangelho, será sempre uma “existência sob a cruz” (isto é, sujeita a dificuldades, contradições, rejeições) e, às vezes mesmo, uma “existência crucificada” até à morte (continua a haver diversas formas de martírio). Nunca será demais lembrar isso num mundo em que, por vezes, parece prevalecer, tanto nas pessoas como nas instituições, um “cristianismo adocicado”, mais marcado por critérios de “honrarias humanas” e “conveniências quotidianas” do que pelos critérios de Deus, e, assim, um cristianismo sem capacidade profética para discernir e reconhecer o que vai mal (tanto na Igreja como na sociedade). O Papa sublinhou ontem que os novos santos, “em diferentes contextos, traduziram na vida a Palavra de hoje: sem tibieza, nem cálculos, com o ardor de arriscar e deixar tudo”.

 

b) A vida e morte de D. Óscar Romero traz consigo, por outro lado e talvez de maneira eminente, a pergunta pela autenticidade que reconhecemos à coerência prática da vida cristã inserida em contextos sociopolíticos concretos. Nos seus 85 anos, completados há cinco dias, o insuspeito Gisbert Greshake expressou no livro “Maria-Ecclesia” (2014, 636 páginas, no seu próprio dizer o último livro que escreveria) a sua perplexidade perante o facto de que a Igreja se apressava, por vezes, a condenar (verdadeiras ou pretensas) heresias teológico-doutrinais, mas deixava sem palavras condenatórias ou até mesmo de excomunhão regimes e pessoas claramente opressores e injustos, atentatórios da elementar dignidade humana. Bem sei que aqui têm de ser considerados realisticamente também aspectos conjunturais que salvaguardem as pessoas e comunidades cristãs que vivem nessas situações (ontem como hoje). Mas que a pergunta merece resposta, pelo menos como corretivo de uma pretensa ”ortodoxia teórica” que esquece a “ortodoxia prática” (da vida), não há dúvida nenhuma.

 

c) A vida de D. Óscar Romero – certamente marcada também pelos limites e falhas que toda a existência humana tem – lembra, por fim, que a opção da Igreja pelos pobres e injustiçados não é uma questão secundária ou relativa, mas toca no cerne da identidade cristã, do seguimento de Jesus, do verdadeiro sentido da missão da Igreja no mundo. Podemos sentir-nos insignificantes perante a grandeza da tarefa. Podemos ter dificuldade em tirar todas as consequências das palavras que proferimos. Podemos sentir-nos limitados por contextos sociais, económicos e políticos, por exigências práticas familiares ou outras. Não podemos, todavia, desistir da busca de sermos o mais possível fiéis ao Evangelho de Jesus. E não podemos ficar indiferentes (muito menos disfarçar ignorância) perante a interpelação que resulta para a nossa situação de testemunhos de vida como estes. “O problema – lembrou ontem o Papa Francisco – está do nosso lado: o muito que temos e o muito que ambicionamos sufocam-nos o coração e tornam-nos incapazes de amar”.

 

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Agência ECCLESIA

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