«Domingo da Palavra»: O desafio «imenso» de traduzir a Bíblia, entre a língua original e o português de hoje

Padre Mário de Sousa coordena comissão responsável pelo novo texto que vai ser adotado pela Conferência Episcopal

Lisboa, 23 jan 2021 (Ecclesia) – O padre Mário de Sousa, coordenador da Comissão da Tradução da Bíblia para a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), disse à Agência ECCLESIA que este trabalho é um “desafio imenso” de conciliação entre a atualidade e a fidelidade ao texto original.

“É um desafio imenso e a nossa maior dificuldade: fazer uma tradução em português escorreito, que seja entendível, quando proclamado, e que, por outro lado, conserve toda a riqueza metafórica, arqueológica, antropológica das línguas originais”, referiu o sacerdote, numa entrevista a respeito do ‘Domingo da Palavra’, que se celebra pela segunda vez, no dia 24 de janeiro.

O especialista assinala que a tradução pedida pelos bispos católicos é, em primeiro lugar, para a Liturgia, com o intuito de ser “proclamada”.

“O esforço que está a ser feito é o de manter a fidelidade ao texto, para não perder toda a sua riqueza – porque, se a tradução for muito aberta, isso perde-se um pouco -, e, por outro lado, também não ser tão literalista que se perca a compreensibilidade”, observa.

O padre Mário de Sousa admite “isto não é fácil de conjugar, mas é possível”.

“O trabalho que se está a fazer, neste sentido, vai ser levado a bom porto”, aponta.

Padre Mário Sousa

Natural de Vila Real de Santo António, o sacerdote é professor de Novo Testamento no Instituto Superior de Teologia de Évora, diretor do Centro de Estudos e Formação de Leigos do Algarve e presidente Associação Bíblica Portuguesa desde 2017.

A nova tradução da Bíblia em português já contou com a publicação dos quatro Evangelhos e dos Salmos, em edição experimenta.

Neste momento, os trabalhos seguem “a bom ritmo”, com um corpo de tradutores que abarca mais de 40 biblistas.

“É natural que cada tradutor o faça da sua maneira”, admite o coordenador, adiantando que os livros da Bíblia estão traduzidos quase na sua totalidade, faltando apenas alguns do Antigo Testamento.

As duas subcomissões científicas, do Antigo Testamento (46 livros, escritos antes do nascimento de Jesus Cristo) e do Novo Testamento (27 livros, dos Evangelhos às várias cartas dos primeiros apóstolos, concluindo-se com o Apocalipse) têm agora a tarefa de “harmonizar” as traduções de cada livro.

“Não é uniformizar, mas harmonizar, para que a mesma palavra em Paulo apareça, nas diferentes cartas, sempre traduzida da mesma maneira, dentro do possível”, precisa o padre Mário de Sousa.

“Isso leva muito tempo”, admite.

O trabalho quer permitir, “a quem não tem acesso às línguas originais – o hebraico, o grego, o aramaico -, que se possa perceber, pela tradução, quando se trata da mesma palavra, no original”.

A primeira proposta feita às comunidades mereceu vários comentários, com pessoas a manifestar-se a respeito das mudanças, dado que estavam “habituadas a ler de outra maneira”, algo que o sacerdote considera que esse é um dado positivo.

“É preciso que aquela palavra seja a Palavra de Deus e, para isso, tem de ser compreensível. Se não for compreensível, dificilmente se torna palavra, porque não permite a comunicação”, realça o coordenador da Comissão da Tradução da Bíblia para a CEP.

Questionado sobre a importância do Domingo da Palavra, instituído em 2019 pelo Papa Francisco, o entrevistado sublinha que a iniciativa visa “não só redescobrir a Bíblia, mas, sobretudo, redescobrir na Bíblia a Palavra de Deus”.

Para o responsável, é preciso “conhecer, entender, saber contextualizar” o texto bíblico.

“A Bíblia foi escrita numa mentalidade muito diferente da nossa, numa cultura e numa época muito distante da dos nossos tempos”, prossegue.

Em setembro de 2020, pelo 16.º centenário da morte de São Jerónimo, o Papa publicou uma carta apostólica sobre a Bíblia, ‘Sacrae Scripturae affectus’ (O afeto pela Sagrada Escritura), na qual questiona o desconhecimento de um texto fundamental do Cristianismo e da Cultura ocidental.

“Esse desconhecimento é preocupante e tem consequências a nível espiritual, do seguimento de Jesus. Como é que posso perceber o que Deus diz se não perceber o texto em si? Isso pode ter um efeito completamente inverso: querer que o texto diga aquilo que eu penso”, declara o padre Mário de Sousa.

O sacerdote sustenta que as comunidades católicas devem viver “uma Palavra de Deus que é conhecida, porque só se for conhecida é que Deus pode falar através dela e iluminar cada momento da existência”.

OC

D. José Ornelas, presidente da CEP e especialista no estudo da Bíblia, considera “importante que a Igreja continue a lançar as suas raízes, fundamentalmente, na Palavra de Deus”.

O bispo de Setúbal destaca que a catequese “vive da Palavra” e é fundamentalmente “a explicação da Palavra de Deus e a sua continuação, que se concretiza na vida da Igreja em tantos modos”.

Para o responsável católico, é necessário criar momentos e atitudes, lugares que deem visibilidade à Bíblia, oferecendo “novos caminhos de perceção”, na atualidade, para que a Palavra fale com culturas diferentes.

D. José Ornelas, antigo docente de Sagrada Escritura na Universidade Católica, destaca que “há uma aprendizagem de aproximação à Palavra”, que vem de um tempo diferente, de outra situação geográfica e cultural.

“A Bíblia não tem de ser uma coisa chata, tem de se ler com gosto”, indica, convidando a uma aposta desde a infância, com edições específicas para as crianças e “instrumentos novos”.

“Os jovens devem ser portadores da Palavra, traduzindo-a com palavras deles”, acrescenta

O especialista observa que a Bíblia exige “tradução constante” e só assim “cria vida”.

“Isto há de ser das últimas coisas, até que tenha conhecimento, é por aí que quero ir: a Bíblia é para entender a vida inteira”, confessa, abordando este diálogo constante com o texto, que “questiona e, ao mesmo tempo, aprofunda”.

“É uma coisa viva, é como a música. Não posso simplesmente ficar a recordar a música, tenho de ouvi-la constantemente”, acrescenta D. José Ornelas.

HM/OC

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Agência ECCLESIA

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