Ele fala do silêncio a propósito de nascentes, de um quadro de Morandi, de duas ou três sílabas, de uma cidade do sul, de palmeiras, cujo silêncio é hirto, de espelhos, cujo silêncio é baço, da fonte de Pascoaes, do barro ainda quente, da poesia japonesa, dos mortos que nos deixam «sentados no silêncio» ou dessas casas (e ele sente tanta pena dessas casas) onde não é possível ouvir o silêncio correr. Para ele o silêncio também é branco, como se costuma referir, mas não só. É «branco do deserto», «branco sem costura», um branco, que ele juraria, «às vezes quase azul». No único poema seu, a que o silêncio dá o nome, é do verão que ele fala, e aí «o rastejar do silêncio», «a secura do silêncio», «a lâmina acerada do silêncio» são figuras da claridade rigorosa, a que a sua arte, mais que tudo, aspira. Ele sabe que o silêncio é um território vastíssimo e misterioso, tem «sete bicas», «vertentes», «flancos». Se lhe perguntam como sabe, responde: «o silêncio é o meu domínio». É a mais pura verdade. Pertence-lhe este «sopro reticente» e «torrencial». «Aparição», ao mesmo tempo, antiquíssima e repentina e tardia, sem que nisto resida qualquer contradição. O silêncio com «seus martelos» e «violência», «crispado», apesar da doçura. «O despenhado silêncio» que «queima». O «doloroso, insuportável», «cego», «duro», «difícil» silêncio, que «desce», «escorre», «apodrece», «sobe», «cala-se» e, por fim, morre, como um mar que se afasta, como um ramo que se quebra sob o peso do mundo. Mas ele sabe também, ou não fosse herdeiro dessa linha poética que passa por Dante e João da Cruz, aquilo que só «no silêncio brilha», essa «fenda no escuro/ do silêncio», a «calma/ e profunda corrente de silêncio/ entre mim e o que de mim ainda/ se aproxima». Pois este silêncio é «pedra viva», «leite espesso», «abrunho maduro», uma força secreta que às escuras «se suga», como o explicaram, por exemplo, esses mestres imprevisíveis que, entre os séculos III e VI, trocaram Constantinopola e Roma pelo silêncio indescritível do deserto, pois aí, nesse soberano abandono, podiam viver a vida ‘de um homem que não existe’. É tremendo pensar que essas paisagens que agora vemos bombardeadas, nos telejornais, já tiveram um silêncio que alimentou místicos, como o anacoreta António, pai do monaquismo, Macário, Arsénio, Evrágio ou esse extraordinário poeta que é Efrém. Que o mundo já teve um silêncio que alimentou Efrém. Ele sabe, porque os poetas vivem na vizinhança dessa palavra que faz «do silêncio a casa». E o seu ofício, ele o descreve como uma tão grande «paixão pelo silêncio/ pelo sussurro do silêncio,/ pelo ardor/ do silêncio»: «Na porosa fronteira do silêncio/ a mão ilumina a terra inacabada». Essa mão, reconhecemos, é a sua. É fundamental pensar o empobrecimento da linguagem, cercada por uma cultura de ‘slogans’, asséptica, nesses monossílabos que resumem (ou melhor, substituem), muitas vezes, o encontro do ser humano consigo próprio e com os outros. Mas a perda do silêncio. José Tolentino Mendonça