Padre José Alves, Congregação da Missão
Embora o tema possa não merecer muito interesse da parte dos leitores, julgo-o importante porque revela a clarividência e a abertura do Santo aos novos ventos da compreensão do Homem e da sua forma de ver o mundo, bem como dos seus fenómenos envolventes.
Qual o pensamento de Vicente de Paulo sobre as novas descobertas científicas? Culturalmente, como situá-lo? No ambiente retrógrado dos meios rurais, marcados pela ignorância, ou nos ambientes reacionários de quem desconfia, à partida, de tudo o que é novo? É preciso fazer uma leitura dos seus escritos para descobrir o seu pensamento. Neles nunca versou, “ex professo”, um assunto científico, mas quando vem a propósito tem gosto em explaná-lo. Aliás, a sua formação universitária inicial, o seu contacto prolongado com a Universidade da Sorbonne e o ouvir falar das tertúlias literárias e científicas do palácio da rainha Margot, a quem serviu como esmoler durante alguns anos, e por onde passaram, nessa altura os mais ilustres cientistas e escritores, devem-no ter mantido em contacto com os livros e as recentes descobertas.
Um dos aspetos mais discutidos, no seu tempo, está relacionado com a astronomia. Uns analisam os fenómenos astrais supersticiosamente; outros, mais afoitos, ridicularizam as novas descobertas. Em 1654, com 74 anos, recebe duas cartas de um confrade de Cracóvia, confessando-lhe o seu medo pelo que, um eclipse solar havido, trará de malefícios no futuro. O Padre Vicente na primeira resposta diz-lhe simplesmente «que estes sinais extraordinários não são indicio certo de algum mau acontecimento», mas, percebendo que isso era um assunto que perturbava o confrade e a Comunidade, responde-lhe à segunda, em que mistura a ironia, a pedagogia e a informação científica: «Os nossos astrólogos asseguram ao público de que não há nada a temer quanto ao eclipse. Encontrei-me com o senhor Cassandi (1), homem sábio e experiente, que se ri de todos os que têm medo do que vai acontecer. Como razão, diz que todos os seis meses há eclipses, quer no nosso hemisfério, quer no outro, devido ao facto de o sol e a lua se encontrarem em linha eclíptica. Se o eclipse comportasse toda a malignidade de que você me falava, pelos maus efeitos com que nos ameaça, sentiríamos muitas mais vezes a fome, a peste e os flagelos outros de Deus sobre a terra. Se a privação da luz do Sol, devido à interposição entre nós e o sol, produzisse este mau efeito, devido à suspensão das benignas influências do sol sobre a terra, seguir-se-ia que a privação do mesmo sol, durante a noite, produziria efeitos ainda piores porque tal privação seria muito mais longa e porque o corpo da terra é três vezes mais espesso que o da lua… conclui o dito senhor, com razão, que não há nada a temer deste eclipse, julgo que os sábios em astrologia não estão preocupados com tal fenómeno e muito menos ainda os que forem instruídos na escola de Jesus Cristo porque sabem que o homem sábio “dominábitur astris”» (2).
Por outro lado, diante da conceção mágica do mundo, então dominante, diante da crença da possessão demoníaca, como tentativa de explicar o que não se entendia, o Padre Vicente de Paulo toma uma atitude contrastante com o seu tempo. Com efeito, perante uma jovem que todos diziam possessa, o Padre Vicente vê apenas uma questão de temperamento melancólico. Na carta que escreve aos pais da jovem não se sabe o que mais admirar, se a sua fina perspicácia que o leva a ver mais fundo do que as outras pessoas, se o seu grande respeito pela opinião das mesmas: «Há três ou quatro meses recebi ordens do senhor oficial de Paris para visitar a vossa filha, já que o senhor conde Maure lhe tinha pedido permissão para a mandar exorcizar, segundo o conselho que várias pessoas de grande piedade lhe tinham dado, pois receavam que essa jovem estivesse a ser trabalhada por alguma possessão ou obsessão maligna. O motivo que apresentavam era a aversão que ela tinha pelas coisas de Deus… Chegando a ponto de não rezar há mais de três anos e de se conservar fechada num quarto em Port-Royal, sem ouvir missa, há dois. Este foi o motivo que levou as pessoas a formular tal opinião, e a razão pela qual julguei conveniente ir visitá-la. Falou-me da sua situação com acerto e candura; embora um pouco melancólica, tem um espírito incomparavelmente mais são e mais sólido do que o comum das raparigas. A minha primeira opinião foi de que ela apenas se encontrava dominada por este humor de melancolia (3). No entanto, o respeito que devo àqueles que pensam que se trata de uma possessão faz com que submeta o meu parecer ao deles; ao fazer o relatório para o senhor oficial, disse-lhe que pensava não haver inconveniente que o padre Carpentier lhe fizesse alguns exorcismos» (4).
O referido padre exorcista adoeceu e não pôde executar o trabalho. Adoeceu igualmente a jovem tida por “possessa”. A sua vida estava em perigo. É chamado o Padre Vicente. Tem uma conversa com ela. A doente confessa-se e pede para receber a Eucaristia por iniciativa própria, sem qualquer pressão exterior. E na mesma carta, o Padre Vicente de Paulo continua: «depois de curada, ela sentia-se totalmente livre, de modo que pediu para continuar a confessar-se e a comungar comigo, como tinha feito durante a doença; fez isto com toda a liberdade de espírito como o faria outra pessoa qualquer».
O resto da carta ao duque D’Atri, pai da referida jovem, destina-se a dizer-lhe como tentou dissuadi-la de entrar na vida religiosa, devido ao seu estado de saúde psíquica. Não o conseguiu; houve pressões da família e o Padre Vicente fala «do perigo em que se coloca essa boa rapariga». Ao longo de toda a carta o Padre Vicente não esconde a sua descrença quanto à aludida possessão: «por isto me convenci mais da minha opinião».
Vê-se que Vicente de Paulo é bem permeável à mudança gradual de um universo cultural marcado pelo maravilhoso, por um outro universo marcado pela procura racional dos fenómenos, com base na experiência. Palavra que muitas vezes repetia: «Esta é a minha experiência».
Pe. José Alves, CM
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(1) Trata-se do cónego Pierre Cassendi, filósofo e astrónomo.
(2) Pierre Coste, S. Vincent de Paul – Correspondance, Entretiens, Documents, V, 180-181. Cfr. Ibidem, 166.
(3) A palavra “humor” tinha, no século XVII, um sentido que hoje não tem: «em medicina, chama-se humores às quatro substâncias líquidas que embebem todos os corpos animais e que se crê serem as causas dos diversos temperamentos. São eles: a fleuma, o sangue, a bílis, a melancolia…» (Furetière, Dictionaire, 1690).
(4) Pierre Coste, op. cit., 470-471.