DO PASSADO, UM PRESENTE – São Vicente de Paulo e o ecumenismo

Padre José Alves, Congregação da Missão

O ecumenismo é a busca da união, da comunhão e da harmonia entre cristãos, apesar das diferenças; procura este movimento a unidade da fé em Jesus Cristo, na diversidade de expressões e de ritos.

No tempo de São Vicente de Paulo, numa França dilacerada por guerras religiosas (Calvinismo, Jansenismo, …) cujas marcas continuavam bem vivas no coração das pessoas, a linguagem era dura e o preconceito dividia, em muitos casos, sem possibilidades de aproximação e muito menos de bom relacionamento. Expressões de vingança e de ódio apareciam em declarações, de parte a parte. Face a esta questão, o que pensava o Padre Vicente? Como agia?

O Padre Vicente de Paulo cedo teve contacto com homens de outros “credos”, pelas piores e pelas melhores razões: a sua ordenação sacerdotal ocorreu na capela da residência episcopal, em Château-l’Évêque, onde o bispo de Périgueux se encontrava exilado porque a catedral tinha sido incendiada pelos calvinistas; no cativeiro, teve contacto com a mulher do seu dono, cristã ortodoxa, ele, um apóstata, natural de Nice, e, através dela, o marido retorna à fé católica e dele se serve Deus para libertar o Padre Vicente, fugindo, de barco, com a família para Avinhão, no sul de França; quando nomeado pároco de Châtillon-les-Dombes, vai hospedar-se em casa de um calvinista e de quem se torna amigo; de São Francisco de Sales, bispo de Genebra, aprendeu como lidar com os que pensam de maneira diferente, sem fúria nem exaltação, mas com suavidade e compreensão (1).

Nas cartas e conferências de Vicente de Paulo encontramos uma linguagem nada comum, no seu tempo, embora também não aquela a que estamos habituados, após o Concílio Vaticano II. A um missionário leigo embarcado para Madagáscar, em companhia de alguns huguenotes (2), e que exercia a profissão de cirurgião escreve: “Estou preocupado por saber que alguns huguenotes viajarão no mesmo barco e, por conseguinte, haverá muito que sofrer da parte deles. Mas, enfim, Deus é o dono desta obra e permitiu tudo isso por razões que nós desconhecemos. (…) talvez para o obrigar a si, a ser mais contido na presença deles, e mais humilde e mais devoto para com Deus, mais caritativo para com o próximo, para que, vendo a beleza e a santidade da nossa religião encontrem razões para a ela voltar. Evite, com muito cuidado, toda a espécie de discussão, mostre-se amável e afetuoso, ainda que o provoquem ou falem contra as nossas crenças e práticas religiosas. A virtude é tão bela e amável que se sentirão obrigados a amá-la, em si, se você a praticar bem. Nos serviços que desempenha no barco, não faça aceção de pessoas; não estabeleça nenhuma diferença entre católicos e huguenotes, para que percebam que você os ama em Deus. Espero que os seus bons exemplos aproveitem a uns e a outros. Cuide da sua saúde e da dos nossos missionários” (3). Resulta, então, que o Padre Vicente realça a força do testemunho através das obras, realizadas com dedicação e amor, mais convincente do que a polémica e argumentação agressiva.

Por vezes, abordavam-se estas questões a partir do preconceito: “se é como eu penso, é bom”, caso contrário, “é mau”; “se é católico, é bom, se não é católico, é mau”. Numa carta escrita ao Padre Guilherme Gallais, Superior de Sedan, enredado em algumas polémicas jurídicas, recomendava: “(…) Não é conveniente, padre, que nos metamos em negócios seculares ainda que tenham alguma coisa a ver com o espiritual. Ou os assuntos se referem somente a católicos, ou só a pessoas da outra religião; ou, então, dizem respeito a católicos e huguenotes. Pois bem, (…) se a questão é entre um católico e um huguenote, como sabe você que o católico tem justos motivos para a demanda? Há grande diferença entre ser católico e ser justo! Ainda que você esteja convencido de que a demanda em tribunal é justa, quem lhe garante que os juízes não julgaram de acordo com a sua consciência?” E termina a carta: “Que bons missionários seríamos, você e eu, se soubéssemos animar as almas com o espírito do Evangelho. Garanto-lhe que nada mais santifica os católicos e converte os “hereges” do que esta maneira de proceder, como também nada mais os afasta do que a atitude contrária” (4). Toda a carta é, pois, uma chamada de atenção, quase repreensão, sobre algumas maneiras de agir desse missionário, metido em polémicas jurídicas em que entravam pessoas de confissão calvinista.

Sobre a validade do sacramento do Batismo ministrado pelos huguenotes, corria a informação de que não era válido porque não respeitava o essencial da forma. O Padre Vicente pede a um missionário, a trabalhar nessa zona, que investigue, seriamente, sem fazer ruído, e o informe; a quem lhe pedia esclarecimento comunica: “depois de uma séria investigação para saber a verdade, os huguenotes batizam validamente porque não falham no essencial” (5).

Vemos que no Padre Vicente de Paulo há uma preocupação ecuménica que vai fazer escola nos Padres da Congregação da Missão. Por isso, não resisto a fazer uma referência a um acontecimento moderno que está na origem do movimento ecuménico da Igreja e que vai culminar no Concílio Vaticano II com o Decreto “Unitatis Reintegratio”, sobre o ecumenismo: as Conferências de Malines. Protagonistas destas Conferências foram o Lord Halifax (anglicano) e o Padre Fernando Portal, CM (francês, da Congregação da Missão) ambos temporariamente a residir na ilha da Madeira, lugar escolhido providencialmente, para arquitetar este arranque do movimento ecuménico, mais tarde (em 1925) a desabrochar com o alto patrocínio do cardeal Mercier, arcebispo de Malines, e do arcebispo de Cantuária, Randal Davidson.

De destacar, igualmente, o Padre Justino de Jacobis, missionário vicentino na Etiópia, herdeiro desta preocupação ecuménica do Padre Vicente Paulo, que vai chamar para Igreja Católica uma parte dos cristãos de tradição copta daquele país, respeitando, contudo, os seus ritos, língua e tradições litúrgicas.

É na aceitação da diferença, no acessório, que se constrói a comunhão no essencial: em Jesus Cristo.

Padre José Alves, CM

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(1) São Francisco de Sales, nomeado bispo de Genebra, vivia em Annecy, porque Genebra estava dominada pelos Calvinistas.

(2) Huguenotes, palavra para designar os membros da Igreja reformada em França de origem calvinista.

(3) Cfr. Carta a Filipe Patte, irmão leigo da Missão em Nantes (San Vicente de Paúl, Obras completas, Tomo VIII, 167-8).

(4) Cfr. Carta ao Padre Guilherme Gallais, superior da casa de Nantes (San Vicente de Paúl, Obras completas, Tomo II, 376-377).

(5) Cfr. Carta ao Padre Edmundo Jolly, superior da casa de Roma (San Vicente de Paúl, Obras completas, Tomo VIII, 106).

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