Padre José Alves, Congregação da Missão
Não vamos imaginar o Padre Vicente de Paulo com cartazes ou discursos em defesa dos direitos das mulheres. Não! Seria anacrónico. Mas parece-me ter dado um grande contributo para que a mulher pudesse ter um lugar cada vez mais relevante na sociedade.
Salvo raras exceções, constituídas por senhoras da realeza ou da nobreza, o papel da mulher era de trabalhadora doméstica, em casa da família, ou de camponesa, sempre sob a orientação do marido ou, então, no convento.
O Padre Vicente vai lidar, ao longo da sua vida, com umas e com outras, fazendo com que as primeiras se comprometessem na transformação social através de obras sociais, e com que as segundas ganhassem confiança e se pudessem afirmar na sociedade do seu tempo. Senhoras da alta sociedade e possuidoras de enorme riqueza foram capazes de sair da bolha da sua nobreza, e de orientar todo o seu enorme potencial económico para minorar as grandes bolsas de pobreza e de miséria do seu tempo, a contrastar com o luxo e espavento em que viviam. Lembro a duquesa de Aiguillon, sobrinha e herdeira do poderoso Richelieu, que empregou toda a sua fortuna ao serviço dos pobres. Esta e muitas outras senhoras notabilizaram-se não só pela linhagem a que pertenciam, mas, também, pelo destino que deram aos seus bens.
Mas quero sobretudo apresentar o Padre Vicente de Paulo como pedagogo, na ascensão da condição feminina aos lugares de decisão na vida quotidiana. As primeiras moças vindas das aldeias para servir nas confrarias paroquiais de Caridade, eram, muitas delas, analfabetas, de hábitos rudes, mas trabalhadeiras, honestas e de uma dedicação a toda a prova (1). Era preciso fazer trabalho com elas, espiritual, cultural e profissionalmente. Luísa de Marillac, uma dessas senhoras nobres, propôs-se reuni-las e acompanhá-las, em sua casa. Ali recebiam formação básica que as capacitaria para o serviço dos pobres.
O Padre Vicente tem a seu cuidado a formação cristã e espiritual. Estamos no tempo dos grandes conferencistas e pregadores (Francisco de Sales, Bossuet,…). Vicente de Paulo opta por um estilo diferente, coloquial. Antecipadamente, indica-lhes um tema, um assunto. Chegando à conferência põe as participantes de tal modo à vontade que cada uma é convidada a dizer o que pensa sobre o assunto proposto. De seguida, ele faz a síntese, ora distribuindo elogios ao que foi dito, ora corrigindo o que de errado foi afirmado, e completa o seu tempo de formação com o que levava preparado. Através deste processo, aquelas moças iam descobrindo aquilo de que eram capazes, ao mesmo tempo que despertava nelas o desejo de saber mais… e de ir mais longe.
Associava a esta metodologia a paciência a ter com hábitos e costumes que cada uma trazia consigo. É interessante ler os conselhos que ele dá a Luísa de Marillac, impaciente com a demora de algumas em adquirir hábitos novos ou em corrigir comportamentos que não se ajustavam às novas atividades que eram chamadas a desempenhar: uma que queria a touca deste jeito ou daquele, o avental desta ou daquela forma ou, o que era mais sério, um temperamento mais arisco a moderar. O Padre Vicente recomendava: “dê-lhe tempo para a mudança; vai ver que daqui a uns meses estará diferente”. E, em jeito de consolo, dizia: “também tenho aqui dessa gente”, referindo-se aos padres da Congregação da Missão, em São Lázaro (Paris).
E sobre a necessidade de formação dizia-lhes: “tendes de saber o necessário para confecionar e aplicar a medicação (mezinhas), ensinar as meninas a ler e a escrever e a ensinar as verdades da fé necessárias à salvação”, isto é, formação literária, profissional, doutrinal. E algumas tornaram-se exímias profissionais e ganharam de tal modo a confiança dos doentes que eram preferidas aos cirurgiões (2) a ponto de alguns se queixarem de não terem trabalho. Luísa de Marillac, para evitar melindres, interveio recomendando às Irmãs que somente deviam atuar na ausência do cirurgião ou quando este estivesse impossibilitado de se deslocar.
Um dos serviços públicos mais degradados eram as prisões dos condenados às galés: doentes, ou à espera de serem escalados para remarem nos navios da armada real, no mar Mediterrâneo. Vicente de Paulo, nomeado capelão mor da marinha, vai encaminhar estas jovens para tratarem destes desgraçados, condenados a morrerem lentamente nestas enxovias. A entrada delas nestas prisões transmitia um ar de esperança na arrumação e limpeza dos espaços, na frescura da roupa lavada ou nos tratamentos de enfermagem prestados.
Ao conseguir aprovar, no Parlamento de Paris, esta associação de serviço aos pobres e necessitados – a Companhia das Filhas da Caridade, hoje comumente conhecidas como Irmãs Vicentinas – conferiu-se a estas jovens mulheres o estatuto de quem presta um serviço público, dando-lhes responsabilidade e iniciativa para tratarem com as autoridades condições de trabalho e modos de os assistirem nas cadeias, nos hospitais ou no apoio domiciliário (3).
Foi o reconhecimento oficial do trabalho da mulher naquilo que hoje apelidamos de “utilidade pública”. Passo importante para ela conquistar o seu lugar na sociedade, não por concessão, mas pela força do seu trabalho e dedicação.
Pe. José Alves, CM
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(1) Tornou-se célebre a pastora Margarida Naseau (a primeira Filha da Caridade), analfabeta, mas com um grande desejo de ajudar as meninas a romper com a sua condição de eterna inferioridade, e de ajudar os doentes e os pobres. Para isso, aprendeu a ler e a escrever, perguntando a quem passava o nome das letras. O objetivo era estar capacitada para ensinar as outras meninas.
(2) Em alemão, cirurgião diz-se “wundarzt”: “o médico das feridas, aquele que trata as feridas”. “A Boticária advertirá as Irmãs que, na medida do possível, não se deve sangrar ninguém que disponha de meios para recorrer aos cirurgiões”. V. Luísa de Marillac, Écrits spirituels, p. 445; Regulamento, p. 756.
(3) Apesar de acompanhado das “Cartas Patentes do Rei”, a aprovação do pedido de aprovação da Companhia das Filhas da Caridade, apresentado no Parlamento, demorou anos. Chocou com o preconceito. Não se concebia uma associação de mulheres vivendo vida secular. O Procurador, que presidia ao Parlamento, “não desaprovava tal desígnio, mas uma coisa de tal importância merecia ser bem pensada”. V. Santa Luísa de Marillac, Auto Retrato, pp. 154-155.