Padre José Alves, Congregação da Missão
Este assunto anda na boca de muita gente e é foco de atenção dos responsáveis de instituições e de empresas sob pena de ficarem ou fora do seu tempo, ou de não responderem aos objetivos propostos. Encontraremos esta mesma preocupação em São Vicente de Paulo, no século XVII?
O Padre Vicente nasceu, cresceu e exerceu o seu ministério numa época de grandes mudanças: feridas de guerras religiosas dividiam a França; luta em busca de um poder cada vez mais centralizado a caminho do poder absoluto; escandalosa injustiça na distribuição das riquezas; chocante ignorância do povo resvalando facilmente para a magia e a superstição, à procura de resposta para os seus problemas e aflições; um clero divido em alto clero, possuidor de rendas e prebendas, geradoras de grande riquezas, e o baixo clero, sem formação adequada para o exercício do ministério, visto como carreira e ascensor social; total controlo da Igreja pelo Estado a caminho do prepotente galicanismo. Por outro lado, o fervilhar de novas ideias e descobertas científicas deram início à revolução científica abrindo caminho para o que ficou na história, mais tarde, com o nome de ‘Iluminismo’: nova linguagem, nova atitude, nova ação pastoral.
À tentativa de algumas reformas isoladas na vida da Igreja, respondia a lentidão na aplicação dos decretos reformistas do Concílio de Trento que só tiveram luz verde, em França, em 1617. O Padre Vicente via-se, assim, entre um passado de que era fruto, um presente instável à procura de rumo e de consolidação e um futuro que ele desejava, vislumbrava e em cuja construção queria participar. Dele, sabemos que se formou na Universidade de Toulouse, frequentou Saragoça, licenciou-se em Direito em Paris e, numa carta ao senhor Comet, diz continuar os seus estudos em Roma. Por sua formação e pela leitura que fazia da realidade social e eclesial, sentia necessidade de uma profunda reforma, que só poderia ter êxito através de uma adequada formação inicial e permanente.
A primeira ação, neste sentido, são os ‘Exercícios Espirituais ao Clero’. Nasce esta obra daquilo que, hoje, chamaríamos uma ‘boleia’ do bispo de Beauvais. Com efeito, numa viagem que era longa, conversavam sobre os problemas da Igreja. E um dos principais era o clero; não pela escassez, mas pela incompetência, fruto da falta de preparação. “Monsenhor – recomenda o Padre Vicente – nunca ordene ninguém sem que antes faça um retiro de 15 dias”. E ele mesmo se ofereceu para o fazer. Numa carta escrita ao Padre Du Coudray, em 15 de setembro, dá conta de como está a decorrer esta atividade: a) exame aos candidatos; b) constituição da equipa: Padres Messier, Duchesne, Vicente de Paulo, um pároco local e o próprio bispo, chamado a tomar conta de algumas matérias (1). O resultado foi tão bom que a experiência se institucionalizou em São Lázaro e em muitas dioceses. Dela nasceram os Seminários Maiores através do alargamento do tempo de formação: de quinze dias para dois meses, para seis meses, para um ano, para dois anos, …
Mas era necessário cuidar dos sacerdotes já ordenados e prepará-los para o exercício do ministério. O Padre Vicente tem a ideia de juntar, em São Lázaro, um grupo de amigos para estudo e oração: nascem as célebres ‘Conferências das Terças-feiras’. Por ali passaram algumas das figuras mais ilustres da Igreja francesa, v.g., Bossuet, Olier, Duval, …
Nessa mesma carta, escrita, de Beauvais, não esquece o pequeno grupo de São Lázaro, início da Congregação da Missão, onde parece ter-se criado o hábito da formação permanente: “Estão todos bem? Andam alegres. Continuam estudando e exercitando-se na controvérsia. Peço-lhe padre que todos aprendam bem o pequeno Bécan (2). Nunca é demais dizer quanto este livrinho é útil. Quanto aos mais jovens, talvez seja bom lerem o ‘Mestre das Sentenças’ (3).
Na conferência de 5 de agosto de 1659, toda ela dedicada ao saber que era necessário adquirir, rever e atualizar para o bom desempenho dos vários ministérios face às novas ideias e aos novos tempos, Vicente lamenta que alguns tenham esquecido a administração dos sacramentos ou não saibam responder a algumas questões sobre a Eucaristia: “Procuraremos tornar-nos capazes de ensinar essas coisas àqueles que nos foram confiados pelos senhores Bispos”. Depois, passa a um aspeto prático: “Amanhã, pedirei ao Padre Almerás que distribua exemplares dos “Colóquios” (4) aos estudantes e aos padres do Seminário: faremos tudo na sala de São Lázaro. À tarde, depois das vésperas, começaremos o exercício da administração dos Sacramentos, etc. Quanto às pregações, far-se-ão no tempo do almoço e do jantar”. Toda a conferência tem como objetivo convencer o seu auditório a dispor-se a uma formação contínua. Passa diante dos seus ouvintes todas as áreas do ministério sacerdotal: pregação, catecismo, teologia moral, liturgia, … E diz-lhes que não é vergonha nenhuma rever matéria esquecida e aprender coisas novas. Aos mais renitentes ele mesmo diz que sente muitas vezes necessidade de o fazer e diz estar no grupo porque precisa de recordar muitas coisas e aprender outras novas.
As preocupações do Padre Vicente de Paulo são de uma atualidade extraordinária quanto à necessidade de formação e de formação contínua para um bom exercício do ministério. Hoje também há os que já sabem tudo, têm respostas para tudo e nada precisam de aprender; há os que, não sabendo, também não se preocupam por saber, porque sempre assim fizeram, e assim é que está certo. Outros há que, fechados no seu mundo, não se dão conta das mudanças e vão repetindo a ‘sua ação pastoral’ como quem repete uma cassete, aos soluços, com contínuas interrupções, completamente desligada dos destinatários, sem que passe a mensagem de que foram constituídos mensageiros. Ler esta conferência de um sacerdote de 78 anos ajuda-nos a sair de alguma letargia e acordar para uma renovação de linguagem, de métodos e de conteúdos e, sobretudo, de compromisso.
Pe. José Alves, CM
—–
(1) Bernardo Duchesne e Luís Messier, ambos formados na Universidade da Sorbonne e membros da Comunidade de São Nicolau de Chardonnet. Vicente de Paulo tinha a capacidade de agregar pessoas de outros grupos para uma obra comum.
(2) Martin Bécan, jesuíta belga. Compôs uma Suma Teológica e um manual de Controvérsias. Era muito apreciado, sobretudo pela clareza e pelo método.
(3) Além de Pedro Lombardo, autor das “Sentenças”, aparecem autores citados ou recomendados pelo Padre Vicente: Frei Luís de Granada, dominicano, autor muito apreciado pelas suas obras de teologia e de espiritualidade; e São Francisco de Sales, com a sua obra famosa “Tratado do Amor de Deus”.
(4) “Colóquios dos Ordinandos” era uma espécie de sebenta, redigida, a pedido do Padre Vicente, pelos Bispos de Bolonha (Francisco Perrochel), de Alet (Nicolau Pavillon) e pelo Padre Olier, cujo conteúdo se referia sobretudo à teologia moral.
(Os artigos de opinião publicados na secção ‘Opinião’ e ‘Rubricas’ do portal da Agência Ecclesia são da responsabilidade de quem os assina e vinculam apenas os seus autores.)