DO PASSADO, UM PRESENTE – São Vicente de Paulo e a restauração do Púlpito

Padre José Alves, CM

Não! Este título não trata do restauro de nenhuma peça de arte! A palavra púlpito, no sentido figurado, significa pregação sagrada destinada a mover os corações, a mudar as atitudes, a transformar projetos de vida e, através da mudança pessoal, chegar à transformação social; na perspetiva cristã, destina-se a conduzir as pessoas a Jesus Cristo. É o sermão!

Na França do século XVII, o sermão era um acontecimento social e um espetáculo em que se exibiam as vaidades, o burlesco, o cómico, o chiste e as “alfinetadas” do clericalismo. Outros sermões havia em que o pregador burilava a frase carregando-a de enfeites de estilo para agradar ao purismo e preciosismo da época, fazendo com que o povo simples nada entendesse do que, com tanto brilho, era pregado no púlpito, causando apenas estupefação e admiração, sem mover o coração (1).

Vejamos como o Padre Vicente descrevia a situação, ele que não era dado a exageros de linguagem: “este grande aparato, esta pompa da vã eloquência não leva a nenhuma restituição nem a qualquer mudança de vida. E os culpados são os pregadores que cuidam das frases e descuidam as almas (…). Fazem-se tantas pregações diariamente nesta cidade, tantos Adventos e tantas Quaresmas: mostrai-me um homem, entre os que ouvem esses sermões, há trinta ou quarenta anos, que se tenha tornado melhor. Ó Salvador! Seria difícil encontrar um só que fosse, um só convertido, depois de ter ouvido todos estes sermões” (2).

“A soberba da vida: querer sobressair em tudo, inventar palavras novas, brilhar nos púlpitos, nas conferências aos ordenandos, nos catecismos! E para quê? Que se pretende com isso? Quereis saber, irmãos? A lisonja da vaidade! Queremos que falem de nós; procuramos o louvor, que se diga que nos saímos bem, que fazemos milagres… que nos exaltem. Enfim, isto é pregar-se a si mesmo, e não Jesus Cristo, às almas” (3).

Vários homens da Igreja tentaram mudar esta maneira de pregar, dando-lhe um pouco mais de dignidade, entre os quais, São Filipe de Neri, com os oratorianos, São Francisco de Sales, o Padre Bérulle e outros, mas com resultado reduzido porque o sermão continuava a ser considerado um “acontecimento” como género literário, e, enquanto tal, precisava de ser cultivado.

O mérito do Padre Vicente de Paulo consiste em aprender com todos estes, lembrar os seus exemplos, mas, sobretudo, em mudar a perspetiva, a ótica ou os “carris” em que se desenvolvia o sermão; o Padre Vicente colocou o sermão onde ele devia estar e de onde nunca devia ter saído. O sermão não é um acontecimento social; ele é uma ação pastoral, é catequese, é instrução cristã destinada a mover o coração e levar à mudança de vida. Para que retomasse a sua função era preciso “re-situá-lo” na forma, no conteúdo e na cabeça do pregador.

Isto foi trabalho de Vicente de Paulo nas reuniões semanais, às terças-feiras, na casa de São Lázaro, em Paris. Aí se estudava e refletia tudo o que à vida pastoral dizia respeito, e o tema da pregação vinha muitas vezes a debate, através do chamado “Pequeno Método” ou “Método simples de pregar” (4). Não poucas vezes, aqueles eclesiásticos influenciados pelo ambiente académico de onde vinham, ou imbuídos pelo pensamento dominante, cediam à tentação de sacrificar a mensagem à erudição e à eloquência. O Padre Vicente não deixava passar estes deslizes; depois de pedir perdão pela ousadia, de joelhos, pedia ao visado que fosse um pouco mais simples e que usasse mais a eloquência do coração e não tanto a da academia. Depois, solicitava aos presentes que dessem o seu testemunho acerca dos bons resultados sobre este método de pregar, já utilizado noutros lugares, interpelando alguns dos sacerdotes mais experimentados: “conte-nos lá, Padre Martin, o que esta maneira de pregar tem feito na Itália, e mesmo em Roma”. “E era ouvi-los a contar episódios de reconciliação social e familiar, de restituições por prejuízos causados, de duelos que não se realizaram, de verdades que foram repostas, de mentiras que foram desmascaradas, de roubos com restituições (…)” (5).

O Padre Vicente não gosta de vozes retumbantes, de vozes cantantes, de vozes teatrais. Quer que se use uma linguagem coloquial, simples de modo a ser entendido por toda a gente, numa linguagem educada, sem trivialidades, e aceite por todos. A um membro da congregação que tinha alguma dificuldade em assumir esta maneira de pregar escreve: “Alguém me informou de que o padre se esforça muito quando fala ao povo e que por causa disso está muito enfraquecido. Em nome de Deus, lhe peço, padre, cuide da sua saúde, modere as palavras e os sentimentos. Já uma vez lhe disse que Nosso Senhor abençoa os sermões feitos num tom comum, num tom familiar, porque Ele próprio pregou desse modo. Esta maneira de falar, porque é natural, torna-se mais fácil do que a outra que é sempre forçada. O povo gosta e aproveita mais. Até os comediantes já se deram conta. Por isso, já mudaram o seu modo de falar e de recitar os versos. Fazem-no com uma voz mediana, como quem fala familiarmente numa roda de amigos. Foi o que me contou um amigo meu que pertence ao ramo”. E, no fim da carta, subliminarmente vem a chamada de atenção cortante, à qual o visado não tinha como ripostar: “Ora, se o desejo de agradar ao mundo pôde conquistar o espírito dos atores, que motivo de confusão não terão os pregadores de Jesus Cristo, se o afeto e o zelo pela salvação das almas não tiverem sobre eles, pelo menos, igual poder?!” (6).

E, para convencer os seus interlocutores, o Padre Vicente traz para a conversa o exemplo de Calvino, que, para fazer passar a sua mensagem, organizou, de três em três meses, um conjunto de colóquios em que os vários ministros tratam desta matéria e aprendem a pregar de maneira convincente: enquanto um prega, os outros vão-no corrigindo sobre a força (ou debilidade) da sua comunicação. Este exercício é tão importante que quem não o seguir não pode ocupar nenhum cargo. E se a heresia faz todos estes esforços para se manter e expandir, como não havemos nós também de nos esforçarmos por manter este santo método (7).

Para o Padre Vicente o sermão só será produtivo se o pregador o centrar na pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo; se se submeter a um processo de conversão contínua; se viver num desapego total de tudo o que seja aplauso; se desenvolver grande capacidade de empatia, pondo de parte o tom crispado e os “ralhetes” diretos aos seus ouvintes.

A frase evangélica: “médico, cura-te a ti mesmo” (8) e a expressão de Paulo “tem cuidado contigo” (9), que Vicente de Paulo usava muitas vezes a este propósito para colocar o pregador sob uma vigilância constante sobre si próprio, a sua linguagem, e os seus objetivos, continua a ser uma “boa dica” para manter atento aquele que é chamado a anunciar Jesus Cristo, quanto ao que anuncia e como anuncia.

 P. José Alves, CM

 

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(1) Cfr. J. Calvet, “Cara Caridade: Vicente de Paulo”, p. 195.
(2) J. Calvet, “Cara Caridade: Vicente de Paulo”, p. 196.
(3) Vincent de Paul, “Oeuvres”, XI, p. 280; XII, p. 22.
(4) O Pequeno Método ou Método Simples de pregar consiste em usar, na pregação, uma linguagem capaz de ser compreendida pelo mais humilde dos ouvintes, linguagem adaptada ao seu modo de viver, com exemplos tirados da sua profissão, dos seus trabalhos diários como fazia Jesus Cristo; em dividir o sermão em três pontos bem definidos: no primeiro, mostram-se os motivos para praticar tal virtude ou para evitar tal mal; no segundo, explica-se em que consiste esta virtude ou este mal; e, no terceiro, indicam-se os meios para adquirir a virtude ou evitar o mal.
(5) S. Vincent de Paul, “Obras Completas”, XI, p. 173.
(6) Vincent de Paul, “Oeuvres”, VI, p. 378.
(7) Cfr. S. Vicente de Paul, “Obras Completas”, XI, Conferência de 22 de agosto de 1655.
(8) Lc IV, 23.
(9) 1 Tim VI, 16.

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