DO PASSADO, UM PRESENTE – São Vicente de Paulo e a Liturgia

Padre José Alves, Congregação da Missão

Para o Padre Vicente de Paulo, a Eucaristia é o centro de toda a ação litúrgica e como que compendia todos os mistérios da nossa Salvação. Depois de propor os “inefáveis mistérios da Santíssima Trindade e da Incarnação como centro de toda a nossa devoção”, acrescenta: “para venerar estes mistérios nenhum meio é mais excelente do que o devido culto e bom uso da Sagrada Eucaristia quer enquanto Sacramento, quer enquanto Sacrifício, pois contém em si como que a súmula dos outros mistérios da fé e, por si mesma, santifica e, finalmente, glorifica as almas dos que comungam e devidamente celebram, resultando daí amplíssima glória a Deus, uno e trino, e ao Verbo Encarnado” (1). Desta centralidade da Eucaristia, na ação litúrgica, resulta um comportamento, uma atitude a tomar que ele recomenda aos seus confrades: “trabalharemos com todo o desvelo para que, por todos, lhe seja dada a mesma honra e reverência… impedindo, quanto puder ser, que acerca dele (Sacramento Eucarístico) algo se faça ou se diga irreverentemente e, ensinando com diligência aos outros o que devem crer acerca deste tão soberano mistério e de que modo devem venerá-lo” (2).

Para tentar perceber esta preocupação de Vicente de Paulo é preciso recordar a situação caótica em que se encontrava a liturgia, em França, nos primeiros anos da sua vida sacerdotal. Por razões políticas, os decretos do Concílio de Trento, 50 anos após a sua conclusão, ainda não tinham sido publicados em França, com força de lei. Isto aconteceu, apenas, em 1615, com a publicação da “Pragmática Sanção” de Luís XIII. Numa conferência  aos seus confrades sobre uma certa uniformidade na maneira de pregar e de exercer o ministério, para não criar confusão e desorientação nos fiéis, lembra os disparates na celebração da Eucaristia: “se tivésseis visto, nem falo de como era esteticamente desagradável, mas apenas da diversidade das cerimónias da missa, há 40 anos, vós sentiríeis vergonha; julgo não haver nada no mundo tão feio como a diversidade com que se celebrava: uns começavam a celebração pelo “Pater noster”; outros levavam a casula no braço e vestiam-na depois do “Introíbo altare Dei”. Certa ocasião, em S. Germain, contei sete ou oito sacerdotes celebrando cada um ao seu jeito: uns faziam umas cerimónias, outros, faziam outras; uma variedade digna de lamentação. Bendito seja Deus que se foi pondo um pouco de ordem nisto; é certo que ainda se nota muita diferença na celebração dos sagrados mistérios. Quantos sacerdotes ainda estão nesta situação porque não estudam ou não querem seguir as normas das rubricas (3).

A grande preocupação do Padre Vicente é evitar confusão nas pessoas. Viviam-se tempos de rutura, por vezes muito agressiva. Era preciso criar alguma uniformidade para que se identificasse a Comunidade católica em relação às outras confissões cristãs. É interessante notar que ele, implicitamente, faz alusão aos debates do Concílio de Trento, quando diz: “ainda que alguns criticassem a celebração feita numa língua ininteligível, todavia para se conservar certa uniformidade de espírito, depois de tudo bem pesado e de se ter avaliado esta dificuldade em comparação com os inconvenientes que resultariam se cada país celebrasse a Santa Missa na sua própria língua, decidiu-se pela uniformidade em todas estas coisas. Decidiu-se que todas as nações se acomodariam aos usos que se determinaram, apesar das queixas em contrário. E porquê? Porque, com esta prática, se cria uniformidade e se evitam grandes abusos” (4).

É interessante notar que o princípio que esteve na origem da revisão do Missal Romano, aprovado por São Pio V, é o mesmo princípio que presidiu à Revisão do Missal Romano após o Vaticano II, publicado por São Paulo VI, e bem expresso na constituição apostólica “Missale Romanum”: “Não se deve pensar que esta renovação do Missal Romano tenha sido feita de modo improvisado, pois o seu caminho foi preparado pelo progresso das disciplinas litúrgicas nos últimos quatro séculos. Se, de facto, após o Concílio Tridentino, o estudo dos antigos manuscritos da Biblioteca Vaticana e de outros recolhidos de toda parte, como se exprime a Constituição Apostólica “Quo Primum” de nosso predecessor São Pio V, muito contribuiu para a revisão do Missal Romano, de então para cá também foram descobertas e publicadas as mais antigas fontes litúrgicas” (5).

Os instrumentos de investigação histórica e arqueológica de hoje trouxeram ao nosso conhecimento elementos que não estavam ao alcance dos investigadores do século XVI.

Mas não era isto que preocupava o Padre Vicente; ele não tem uma posição de princípio, mas uma posição pastoral. Reconhece que houve debate; que esse debate era razoável, mas nas circunstâncias da altura, pareceu pastoralmente mais aconselhável optar pela uniformidade, sem pôr em causa tradições diferentes legitimamente constituídas, como seja os ritos ambrosiano, bracarense, moçárabe, dominicano.

Para o Padre Vicente de Paulo, é importante não criar confusão na cabeça das pessoas nem nas comunidades católicas a braços com muitas forças divisionistas. As Comunidades luteranas e calvinistas tinham criado as suas liturgias em vernáculo. Era importante que, nos vários países da Europa e nas novas terras, em que a atividade missionária estava a desenvolver-se, houvesse uniformidade e que as não confundissem com as novas Comunidades cristãs em rutura com a Igreja católica.

Em vista do crescimento espiritual do povo cristão, o Padre Vicente de Paulo sentia a urgência no coração, a pressa na ação e a clareza nas palavras.

P. José Alves, CM

 

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(1) San Vicente de Paúl, Obras Completas, X, 508.
(2) San Vicente de Paúl, Obras Completas, X, 508.510.
(3) San Vicente de Paúl, Obras Completas, XI, 550.
(4) San Vicente de Paul, Obras Completas, XI, 550.
(5) Paulo VI, Constituição Apostólica “Missale Romanum”, 03 de abril de 1969.

(Os artigos de opinião publicados na secção ‘Opinião’ e ‘Rubricas’ do portal da Agência Ecclesia são da responsabilidade de quem os assina e vinculam apenas os seus autores.)

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