Do Natal numa gruta em Belém da Judeia ao escondimento do facto religioso na atualidade

Em entrevista à Agência ECCLESIA, D. Manuel Clemente afirma que, como no presépio, é pela verdade que a Igreja se tem de afirmar, sobretudo num tempo em que as pessoas são poucos institucionais na prática religiosa, analisa acontecimentos sociais e projeta o ano 2019, para a Igreja Católica e para a sociedade

Entrevista realizada por Paulo Rocha

Agência Ecclesia – O Natal de Jesus aconteceu no escondimento. Hoje, o escondimento do facto religioso, desde logo do acontecimento de Belém, é um problema para a Igreja Católica?

D. Manuel Clemente – Creio que é uma caraterística constante das coisas que realmente acontecem. Isto é: nós ficamos geralmente apanhados e deslumbrados pelas coisas que têm impacto e são facilmente mediatizadas. Mas, aquilo que realmente acontece e determina profundamente as nossas vidas em geral não é assim tão patente, mas mais profundo e às vezes só com o tempo se manifesta e se repara. Creio que aconteceu isso com o Natal de Jesus.

 

AE – Mas hoje, para ser relevante para a sociedade, não é necessário dar-lhe lugar de destaque?

DMC – Mas sempre como ele foi, para não ser outra coisa…

 

AE – Talvez seja por isso que D. José Tolentino Mendonça diz que “O Natal não é ornamento, é fermento”?

DMC – E muito certo! Bela ideia porque corresponde à verdade das coisas.

Reparemos: o que sabemos dos 30 anos da vida de Jesus, a maioria to do tempo que passou neste mundo? Poucas coisas: não foi em Belém, mas na Nazaré da Galileia, na oficina de José, com pouca gente e numa terra que não dava muito nas vistas… Até se perguntava em Jerusalém se “de Nazaré poderá vir alguma coisa boa?”. Era tudo o mais discreto possível! Até que, aos 30 anos, a um sábado, vai à sinagoga, leu uma passagem que lá estava, escrita há séculos, do profeta Isaías: “O Espírito de Deus está sobre mim, enviou-me a ensinar o Evangelho aos pobres”. E, a partir dessa altura, Ele faz isso mesmo: vai para as margens do lago, com gente simples, que adere e depois se vai embora e fica um pequeno grupo… E daí a dois, três anos, em Jerusalém, foi morto numa cruz. E não foi nada de “espetacular”, porque além dele foram, pelo menos, mais dois condenados. Tudo é discreto, quase irreconhecível.

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AE – Então o que o tornou tão relevante?

DMC – A verdade que trazia! E a verdade é exatamente assim…

AE – E essa terá de ser a estratégia, hoje?

DMC – Acabou por se impor… Daí a dois três dias aquele pequeno núcleo que ficou sabe que Ele está vivo e nunca mais o deixou de dizer, como dizemos nas liturgias: “O Senhor esteja convosco! Ele está no meio de nós”. A maneira como Ele viveu, tão verdadeira e tão discreta ao mesmo tempo, é uma maneira vencedora. E porque vence convence!

 

AE – Mas foi nos lugares chave da sociedade de então…

DMC – Mas muito periférico… A sociedade de então era o grande império, que pela primeira vez reunia três continentes (Norte de África, Ásia Menor e o que nós hoje chamamos Europa) no Império Romano, com aquela figura do Otaviano César Augusto. Foi o cume da humanidade na sua organização, civilização e de certa maneira até na cultura. Mas Ele não nasceu em Roma… Porque é que não nasceu em Roma? Não nasceu em Atenas nem na Alexandria, que eram os centros culturais da época… Nem sequer em Jerusalém nasceu… Nasceu naquele lugarejo de Belém e vai depois viver e crescer num sítio ainda mais periférico, Nazaré da Galileia dos gentios, onde se juntava toda a gente… Isto dá que pensar! É tudo tão a partir da periferia que só a grande verdade, a absoluta verdade que trazia acabou por se tornar convincente. Depois, do que havia em Jerusalém, o templo caiu, passados uns anos; do que havia em Roma, o Fórum Romano, só por arqueologia;  na cultura, a grande parte do que sobrou foi o que os cristãos acabaram por veicular, quer os que ficaram na Europa como no mundo árabe…

 

Natal a desistitucionalização da Igreja

AE – E o que é que isso diz às mulheres e aos homens da Igreja Católica, hoje?

DMC – Que a grande lição do Natal é a grande discrição de Deus, o que alguns autores chamam a humildade de Deus. A realidade absoluta que chamamos Deus e que em Jesus Cristo se revela de uma maneira tão convincente, vive-se inteiramente, serenamente, humildemente. E por isso mesmo é que o Evangelho é enviado aos pobres, no sentido material e num sentido da humildade, dos que estão disponíveis para acreditar, não deslumbrados pelas grandezas deste mundo, mas percebem que a grandeza deste mundo é a que Cristo viveu e oferece.

 

AE – Isso pode ser uma provocação para 20 séculos de história de uma instituição…

DMC – Mas todos os dias…

 

AE – E a instituição que pode não propor o Evangelho nessa discrição…

DMC – Se a referência é à Igreja, a Igreja é como as palhas do presépio… Mas já agora que seja uma palha bonita…

 

AE – Mas nem sempre o é…

DMC – De vez em quando precisa de ser arejada…

 

AE – O que significam estudos como o que se realizou recentemente na região de Lisboa, onde é patriarca, que indica o aumento de crentes sem religião?

DMC – Isso tem a ver com outra coisa, com o facto de vivermos numa sociedade e numa cultura, como referem os filósofos pós-modernos, muito líquida, muito diluída, muito pouco sólida em si mesmo. E por isso também é muito pouco institucional.

 

AE – Não tem a ver com a verdade da instituição, comparativamente à verdade de Jesus?

DMC – É a instituição em si! Tudo o que seja institucional, informal, organização, que continua a ser indispensável para que nós nos encontremos e tenhamos ritmos de encontro, de transmissão. É necessária a instituição família, escola, Estado, a instituição universitária, também a instituição Igreja. Tudo o que transporta uma ideia precisa de ter uma organização. Mas hoje, a nossa apetência, a nossa sociocultura, pelo menos a que vivemos no mundo euroamericano, não é institucional. É muito desistitucional, as coisas refluem muito para cada um, para conexões que se fazem e desfazem segundo cada um, segundo a vontade, o tempo. E tudo quanto seja formal e institucional não é muito apetecido.

 

AE – Estou a ouvi-lo e a pensar que talvez Jesus tenha sido o primeiro desinstitucional, nomeadamente no Império Romano…

DMC – Mas depois cria o grupo, que imediatamente funda. É interessante que desde que começa a sua vida publica e o anúncio do Evangelho, começa também o grupo…

 

As pessoas são mais religiosas por si

AE – A fragilidade das instituições provocou também a fragilidade do fator religioso?

DMC – Não. Muda-o na maneira dele se viver, conviver e transmitir. Reparamos até nessa recente sondagem e estudo de opinião na Grande Lisboa que há uma percentagem, que ainda é maioritária, que se diz católica, depois cresce o número dos crentes sem religião, mas que são crentes, e depois há outras pertenças religiosas. As pessoas não são menos religiosas, mas são mais religiosas por si. Ou seja, menos institucionais nessa prática religiosa.

O que é que isto acarreta e nos obriga, concretamente aos cristãos católicos? Obriga-nos a ser mais convictos daquilo que cremos, mais compreensivos de como estas realidades se transmitem. E onde entra o fator institucional, ele tem de ser cada vez mais convicto e transparente. E quando isto acontece, o encontro verifica-se. Ou seja, cada um de nós que aqui se mantém sabe porque se mantém e prossegue: porque a transmissão religiosa no seu caso funcionou. Isto é, se nascemos em famílias cristãs, se temos bons encontros, com boa gente, na Igreja, no espaço religioso e até na sociedade que nos transmite Evangelho vivo, isso convence-nos. Por isso, a única maneira destas coisas prosseguirem, mesmo num tempo tão desinstitucional como é o nosso, é a convicção dos que se mantêm e que propõem.

 

AE – Acha que as lideranças católicas deveriam intervir na sociedade, propondo essa chave de leitura religiosa cristã?

DMC – É uma questão de ter mais ou menos atenção. Reparo, falando do caso português, que conheço mais concretamente, mas poderia falar em termos universais a partir do magistério dos Papas.

Não faltam indicações, aqui em Portugal, em relação às grandes questões mais fraturantes. Alguma vez faltou ou falta uma palavra clara e até pedagógica dos bispos portugueses em notas sucessivas sobre ideologia género, aborto, eutanásia? Não faltam indicações! É preciso estarem atentos… Hoje há uma possibilidade de informação como nunca houve. Depois, no que diz respeito à presença pública, ela tem de ser feita em termos de sociedade, de cidadania. E essa cidadania é protagonizada por cada cristão e por cada cristã, onde está!

 

AE – Mas sabemos da força das lideranças nos dias de hoje, contraponto à fragilidade das instituições…

DMC – Mas não são as lideranças institucionais clássicas. São as lideranças protagonizadas por quem vive a sério aquilo que está a dizer.

 

Acontecimentos de 2018 e perspetivas para 2019

AE – Para o centro do catolicismo vieram os casos de abusos sexuais por parte de membros do clero. É um momento na História da Igreja frágil, tenso, com alguma incerteza?

DMC – É uma grande fragilidade e é uma grande tristeza que tenham acontecido e é um momento de correção e purificação, como diz o Papa Francisco, que se tem de levar muito a sério para que não aconteçam e sobretudo se previnam.

 

AE – O que espera da reunião de fevereiro dos presidentes das conferências episcopais, sobre este assunto?

DMC – É uma oportunidade para se esclarecer este ponto. E isso acontecerá com opiniões balizadas de muita gente que o tem estudado e que pode dar as melhores indicações para que estas situações se ultrapassem e sobretudo se previnam.

 

AE – Podemos esperar uma posição mais concertada nos diferentes países?

DMC – Sim. As indicações que Roma tem dado são muito claras, aquelas concretamente as que seguimos em Portugal de acompanhamento dos casos e a sua resolução com a colaboração dos próprios, das vítimas, das famílias, das autoridades policiais, e tudo isto com espirito evangélico de recuperação das pessoas. Tudo isso tem sido feito e vai continuar a ser feito. Tem de ser um problema resolvido no conjunto: na religião, na sociocultura, no global. Com certeza que a reunião de fevereiro será mais uma contribuição para que isso se consiga.

 

AE – Não vamos fazer uma previsão do ano 2019, mas queria perguntar-lhe sobrealguns factos. Desde logo o que decorre do que foi falado na opinião publica apropósito da Jornada Mundial da Juventude no Panamá. O que se pode esperar queafete ou não Portugal?

DMC – As Jornadas da Juventude, desde o Papa São João Paulo II, ganharam uma força e uma presença na vida da Igreja, sobretudo na sua juventude, muito forte! E mais uma vez isso vai acontecer. Lá estaremos os que formos de Portugal e de outras partes do mundo, no Panamá! Depois, no final da jornada, como tem acontecido nas outras, o Papa Francisco há de anunciar onde será a próxima, no verão de 2022. Foi noticiado que Lisboa se candidatou e a candidatura está lá… Não foi a única que apareceu e, por isso, o Papa que decida!

 

AE – E há que esperar…

DMC – Há que esperar!

 

AE – Aguardemos então para dar essa notícia, esperando que seja, de facto, cá para Portugal… Pedia-lhe também um comentário a alguns acontecimentos que têm marcado a sociedade portuguesa nos últimos meses, nomeadamente uma onda crescente de greves. O que indicam essas manifestações?

DMC – Indicam imediatamente que as pessoas desses setores socioprofissionais têm insatisfações grandes que as levam às greves. É um direito que têm! Sabemos que, na sociedade, os direitos conjugam-se com direitos: as pessoas têm esse direito que tem de ser conjugado com outro direito. Por exemplo, no caso das pessoas que trabalham na área da saúde têm os seus direitos, lutam por eles, e há também os direitos dos utentes, das pessoas que têm doenças e precisam de ser assistidas. E é preciso conjugar esses direitos. A mesma coisa se diga das prisões nesta quadra, dos funcionários das prisões, concretamente dos guardas prisionais: têm as suas insatisfações, apresentam-nas, fazem greves, o que é um direito que tem de ser conjugado depois com o direito que têm os presos e as suas famílias à assistência, ao acompanhamento. É sempre a procura de conjugar direitos distintos, mas que só na sua conjugação se resolvem. Somos uma sociedade.

 

AE – O Papa Francisco fala da “boa política” na Mensagem para o Dia Mundial da Paz, referindo 12 vícios na política que enfraquecem a democracia e podem pôr em perigo a paz social. As greves e sobretudo as manifestações que acontecem em França podem ser um indicativo de que a política pode estar a pôr em perigo a paz social?

DMC – A política é a vida da “polis”, da cidade, da sociedade. Nas sociedades democráticas, isto faz-se pela participação de cada cidadão e faz-se pelos vários patamares de participação, desde o autárquico ao internacional, no nosso caso também a União Europeia, e só se pode fazer por representação, a todos os níveis da sociedade. Entra aqui outro fator que é muito contemporâneo: para além desta participação institucionalizada, há uma participação mediatizada e imediata, que torna difícil a conjugação democrática. Afinal, falamos com quem? Por outro lado, sabemos tudo, a partir de seleções que são feitas, o que se passa em todo o lado. O que ganha uma globalização de tal ordem que, quem sabe impor-se e tem qualidades pessoais e de apresentação e eloquência e de persuasão para isso, rapidamente pode concentrar à sua volta grandes apoios (que também rapidamente podem desaparecer). Esta desconjugação do que deveria estar mais conjugado e a desinstitucionalização do que são os modos de participação democrática, a globalização e mediatização, que ao mesmo tempo é uma individualização, porque cada um clica ou não clica no que quer ou não quer, aparece ou não aparece quando é ou não convocado… Tudo isto torna a vida democrática mais complicada e hoje em dia a vida política, que continua a ser uma nobre vocação, requer uma consistência pessoal, uma determinação, uma resiliência que dantes não eram tão precisas…

 

AE – O que tem consequências imediatas. O Brexit pode ser um desses sintomas? A tal desconjugação de que fala pode afetar até o projeto da União Europeia?

DMC – A ideia que dá é que tudo foi muito precipitado. E deram-na desde logo os próprios ingleses, no dia a seguir, uns muitos eufóricos outros muito perplexos e ainda hoje não se resolveu o assunto…

 

Eleições em 2019

AE – O que se pode esperar das eleições europeias de 2019?

DMC – Espero que não tenham grandes abstenções. Espero que as pessoas participem mesmo, que tenham consciência que o projeto europeu, com as deficiências que tem, foi uma realidade muito bem concebida na sua origem porque, tendo um desígnio grande, a Europa, começou com os pés na terra, por organizar a coletivamente aqueles bens e matérias-primas que eram necessárias para o desenvolvimento europeu, depois da II Guerra Mundial (o carvão e o aço); garantiu-nos 7 décadas de paz, o que não é normal na História Europeia, que tem sido uma sucessão de guerras civis europeias ao longo dos séculos. Que nada disto se perca! Que as pessoas tenham consciência do que está em jogo, de que o enfraquecimento da União Europeia seria uma fatalidade para todos nós e um enormíssimo retrocesso e de que se deixarmos que, por abstenção nossa, grupos mais determinados preencham o Parlamento Europeu com deputados antieuropeus, seria tremendo, com consequências muito nefastas.

 

AE – O mesmo espera para Portugal, num ano de eleições regionais e legislativas, que acontecem depois de uma legislatura que foi singular na história da democracia portuguesa?

DMC – A mesma coisa: informação, participação, discernimento, campanhas eleitorais bem feitas, programas claros, melhor ligação entre deputados e a população. E que tudo isso resulte numa votação com mais consciência e mais determinada, não só à volta deste ou daquele político que possa aparecer, mas do que realmente se dispõe a fazer e se compromete.

PR

 

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Agência ECCLESIA

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