Do Império do Ódio ao Reino do Amor

António Salvado Morgado, Diocese da Guarda

Introduziu-se a palavra lentamente ao longo do tempo na correnteza dos dias e no linguajar político da nossa conjuntura vital. Nossa e do universo dos humanos. Hoje a utilização da palavra é avassaladora. Aqui, no nosso Portugal, e no mundo, a julgar pelas impressões deixadas em nós pela comunicação social que nos chega dali e do longínquo além. Vai-se até dizendo e escrevendo que o ódio se encontra a ganhar terreno em todas as partes do mundo. E bem podemos ficar a duvidar se é a palavra que alimenta o ódio ou se é o ódio real que alimenta a palavra. Haverá, talvez, uma influência recíproca: o ódio a gerar a palavra e a palavra a gerar o ódio. E onde e como poderá terminar a competição? Haja a esperança de um fim. Ou que a competição seja transferida para a concórdia e a paz. A “concórdia” dita e a concórdia vivida. A “paz” do dizer e a paz do realizar. E da paz do realizar para a paz do ser.

Dizer é um modo de fazer e criar. As realidades induzem as palavras e as palavras induzem as realidades. No relato bíblico, Deus criou pela palavra. E tudo era bom e belo nessa criação inicial apresentada no mito adâmico. Criado à imagem de Deus, também o Homem cria pela palavra, mas as suas obras nem sempre são boas e poderão mesmo ser materialização de ódios velhos transmutados em ódios novos.

O ódio, é o que parece andar por aí, nos continentes da Terra e no ambiente caseiro do nosso viver. É o que parece andar por aí, o ódio, nos meios informáticos modernos de jogos e de redes socais onde, desenhadas para dar lucro, ele é o algoritmo que parece ir ditando as regras alimentando-se e amplificando-se a uma velocidade atómica, como a das partículas do mundo quântico.

Educado desde o berço no respeito por todos e no amor ao próximo, tenho dificuldade em admitir a existência do ódio na dimensão que se nos tem apresentado nos meios de comunicação social quando sistematicamente se fala de «discursos de ódio» aqui e ali, discursos de hoje na sequência dos discursos de ontem. Não haverá dia algum que não ouçamos falar de ódio. E de discursos de ódio, esse dizer que, clara ou disfarçadamente incita ao ódio, mesmo em discursos pretensamente contra o ódio.

Não será necessário olhar para as guerras, tantas, as muito faladas e as sistematicamente ignoradas, onde o ódio anda à solta e sem rédeas que o possam amansar, guerras de ódio e guerras que alimentam ódios novos. São ódios a gerarem novos ódios. Tão grandes e tão entranhados no espírito de tantos que dificilmente os habitantes dos tempos futuros serão capazes de esquecer os ódios gerados na nossa História. E muito menos perdoar. Também no ódio o presente é responsável pelo futuro.

Não é fácil caracterizar o ódio de modo simples, esse sentimento persistente de profunda e intensa aversão a pessoas, grupos sociais e povos, com forte desejo de os limitar, prejudicar ou mesmo de os destruir, como também não será fácil de o compreender numa sociedade que se diz alicerçada na ideia de Direitos Humanos fundada na comum dignidade do Homem merecedora da maior estima, consideração e respeito, já para não falar da fraternidade dos Filhos de Deus que, anunciada desde os tempos imemoriais da criação ou das tábuas do Sinai, passa por Belém e culmina na Cruz e na Ressurreição.

Mas ele aí estará, o ódio, no dizer e no fazer, no coração de pessoas e no coração das comunidades, ódio individual e ódio social. E ódio colectivo, como parece. Ele anda por aí a fazer parte do ar que se respira neste nosso mundo. Contradições de uma sociedade doente ou contradições que anunciam um salto da Humanidade para maior Fraternidade? Bem gostaríamos que se tratasse da segunda hipótese.

O ódio, esse sentimento complexo e multifacetado, até parece ser ponto de honra de alguns. No passado dia vinte e um de Setembro, o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, diante de milhares de pessoas que acompanhavam o funeral do activista conservador Charlie Kirk [1993-2025], disse: «Odeio os meus adversários». Estranho dizer este, do responsável máximo por uma união de Estados que a História diz ser a mais antiga democracia do mundo na modernidade. E o mundo a julgar que a democracia era a convivência de adversários na conquista do poder para servir um povo de cidadãos.

E quanto a nós, que vivemos neste torrão do limite ocidental da Europa, um jardim, diz-se, à beira-mar plantado, onde medram as plantas do maior encanto, bastará olhar para a nossa Assembleia da República onde ele, o ódio, parece saltar de bancada em bancada, de discurso em discurso, transformada ela, a Assembleia ou a nossa República, numa escola, nada exemplar, de formação cívica que se pode oferecer a crianças, adolescentes e jovens, para os quais esta instituição do supremo poder legal, secundada por outras instituições da República, engendra programas artificiosos de educação para a cidadania.

Perante alguns espectáculos que a Assembleia da República nos tem proporcionado e vincadamente transmitidos pelos meios de comunicação televisiva, poder-se-á dizer que a educação cívica, na família e nas escolas, tem de ser uma educação cívica do não. Não dizer tanto o que é, mas acentuar o que ela não é. O que não é ali a Humanidade e a Cidadania, o Respeito e a Educação Cívica, a Convivência, a Liberdade e a Responsabilidade, a Tolerância, a Comunidade, a Solidariedade e a Fraternidade, a Lei e o Direito, a Igualdade e a Dignidade, a Ética e o Bem Comum. Dizer o que não é como quem entoa os versos finais do “Cântico Negro” do poeta José Régio [1901-1969]: «Não sei para onde vou, / Não sei para onde vou / —Sei que não vou por aí!» Por aí, por onde parecem andar tantas vezes os nossos eleitos.

«Sei que não vou por aí»: as linhas vermelhas, tão reiteradamente invocadas, não podem ser traçadas em relação a pessoas como parece vir acontecendo, mas em relação a situações, ideias e projectos cujo confronto é saudável e enriquecedor.

«Sei que não vou por aí»: muitas imagens de cenas parlamentares mais parecem desenvolvidas em função das pessoas do que em função de causas prementes da comunidade. A agressão verbal e gestual, a hostilidade, a intolerância, a rejeição e o desprezo, bem parecem mais o retrato do ódio reinante naquele espaço do que a via para o entendimento desejado na resolução dos problemas de um povo. E o povo espera. E o povo somos todos nós, eleitores.

E o mais grave é que nos vamos habituando a tais cenas tristes, estas sim, que deveriam ser bem marcadas com linhas vermelhas. O pior é que estas cenas tristes se vão tornando um hábito e os discursos se vão amplificando. A sensibilidade vai-se esbatendo e o ódio vai-se tolerando, legitimando acabando por quase se naturalizar. E as linhas vermelhas são cada vez menos vermelhas onde elas deveriam encontrar-se. Desaparece a distinção entre o bom e o mau, entre o conveniente e o inconveniente, entre a educação e a grosseria. E tudo enquanto a democracia se vai enfraquecendo e o mercado livreiro vai estando cheio de obras a alertar para o fenómeno, mas que poucos se encontram dispostos a ler.

Importa saber ver. Importa saber estar. Importa saber ser. Importa atendermos aos critérios pelos quais avaliamos os nossos eleitos e os critérios pelos quais eles se orientam naquele espaço, público por excelência, sabendo que é por aí que se faz caminho. O caminho da democracia. O caminho da sã cidadania. O caminho da convivência entre humanos. O sentido de comunidade.

Saber ver, saber estar e saber ser com a fé com que Leão XIV encerra a sua primeira exortação apostólica, a “Dilexi te”: «O amor cristão supera todas as barreiras, aproxima os que estão distantes, une os estranhos, torna familiares os inimigos, atravessa abismos humanamente insuperáveis, entra nos meandros mais recônditos da sociedade. Por sua natureza, o amor cristão é profético, realiza milagres, não tem limites: é para o impossível. O amor é sobretudo uma forma de conceber a vida, um modo de a viver. Assim, uma Igreja que não coloca limites ao amor, que não conhece inimigos a combater, mas apenas homens e mulheres a amar, é a Igreja de que o mundo hoje precisa.» [120]

O ódio não é só a negação do amor. Ele opõe-se radicalmente ao amor, particularmente ao amor cristão. Aí onde há ódio há alguém que odeia e alguém que é odiado; alguém que marginaliza e alguém que é marginalizado. Opondo-se ao amor, o ódio encarna consequentemente subtis formas de pobreza. Material com certeza, mas, sobretudo, pobreza espiritual. Quando no universo humano impera o ódio, nunca será demais invocar as exigências do Reino do Amor revelado na marginalidade da cidade e na pobreza de uma cabana acalentado pelos animais. Santo Advento. Santo Natal.

(Os artigos de opinião publicados na secção ‘Opinião’ e ‘Rubricas’ do portal da Agência Ecclesia são da responsabilidade de quem os assina e vinculam apenas os seus autores.)

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