Divorciados recasados

D. António Marcelino, Bispo emérito de Aveiro O tema dos divorciados recasados foi tratado de modo especifico na Exortação Apostólica “A Família Cristã” (FC), que João Paulo II nos deu na sequência do Sínodo dos Bispos sobre a família (1980). A Igreja manteve-se sempre fiel às orientações então dadas, reagindo serenamente às pressões contínuas, vindas de diversos quadrantes da sociedade e, até, de um ou outro sector da Igreja. Nas críticas feitas tudo se reduz, praticamente, ao problema da passagem a um novo casamento canónico dos divorciados e à sua possibilidade de comungar o Corpo do Senhor. Como, na Exortação Apostólica de Bento XVI “Sacramento da Caridade” sobre a Eucaristia, voltaram a não ser contempladas as possibilidades referidas, sobejam as críticas ao Papa e os ataques à Igreja, por “marginalizarem”, assim se diz, os membros da comunidade cristã que se encontram numa tal situação matrimonial. Nesta Exortação, agora publicada e que recolhe a reflexão do último Sínodo dos Bispos sobre a Eucaristia, Bento XVI insiste (n.29) na necessidade de uma acção pastoral adequada em relação aos divorciados recasados, dado que continuam a pertencer à Igreja, afirmando tratar-se de “um problema pastoral espinhoso e complexo, que vai corroendo progressivamente os ambientes católicos”. Recomenda, em seguida, um cuidadoso discernimento das diversas situações, a fim de que os divorciados recasados possam ser ajudados eficazmente. Mantém-se a não permissão de outro casamento canónico, por exigência da indissolubilidade do primeiro matrimónio, e da não admissão aos sacramentos, porque o “seu estado e condição e vida”, uma vez que são baptizados, “contradizem objectivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja que é significada e realizada na Eucaristia”. Porém, afirma o Papa, continuam a pertencer à Igreja, que tem o dever de os acompanhar com solicitude, “na esperança de que cultivem, quanto possível, um estilo cristão de vida”. Têm para isso ao seu alcance “a participação na Santa Missa, mesmo sem comunhão euca-rística, a escuta da Palavra de Deus, a adoração eucarística, a oração, a cooperação na vida comunitária, o diálogo franco com um sacerdote ou um mestre na vida espiritual, a dedicação ao serviço da caridade, as obras de penitência, a educação cristã dos filhos”. Muitas vezes e de muitos modos se vem insistindo no que não podem, sem abrir caminho a tantas coisas que podem e que são para eles as mais adequadas, em virtude da sua opção de vida e da sua situação matrimonial e familiar. Há aqui um deficit grave na acção pastoral de muitas paróquias que é preciso colmatar, quanto antes. Bento XVI chama ainda a atenção para o que já havia dito João Paulo II, ou seja, a necessidade de um criterioso exame acerca da validade do anterior casamento canónico, a fim de que seja considerada a declaração judicial de nulidade, quando for caso. A validade é uma presunção jurídica que admite prova em contrário, o que muitas vezes acontece, aliviando, desse modo, a consciência das partes envolvidas. As Dioceses devem organizar-se para possibilitarem, aos casais que o desejarem, um acolhimento por parte de alguém competente que possa examinar o seu caso. Por vezes, as orientações que alguns sacerdotes dão aos casais, em relação à comunhão eucarística, não respeitam o que está determinado pelo magistério. Assim se estabelecem confusões lamentáveis, esquecendo-se, como sublinha o Papa que ” o ponto fundamental do encontro entre direito e pastoral, é o amor pela verdade, que nunca é abstracta, mas se integra no itinerário humano e cristão de cada fiel”. Se não se provar a nulidade do casamento anterior, os cristãos recasados devem ser encorajados e ajudados pela Igreja a viver a sua relação segundo as exigências da lei de Deus que, não sendo fáceis, mormente no seu caso, nem se sentindo a maioria chamada a uma situação de heroicidade, nem por isso se pode dizer, de ânimo leve, que se trata de um caminho farisaico impossível. “Tudo é possível ao que crê” e ninguém conhece o íntimo de cada um, para que possa decretar uma impossibilidade geral. Há situações provocadas pela facilitação das leis do divórcio que levam pessoas inocentes a ser forçadas a um caminho que não desejavam. A idade, a educação dos filhos, a fragilidade social, sobretudo da mulher jovem, mas também do homem em iguais circunstâncias, pode levar, então, à opção normal por um segundo casamento, ainda que só civil. Ninguém tem direito a julgar ninguém e o respeito que merecemos uns aos outros a isso nos obriga. Por vezes o segundo casamento resulta bem e o casal dá graças a Deus por isso. É nessa situação que ele deve procurar ir mais longe na vida cristã pelos meios ao seu alcance. Tratando-se de alguém que tinha antes uma vida eucarística regular e que, por força das circunstâncias, agora se vê numa situação que lha impede, todos compreendemos a dor que daí pode advir. Trata-se de um caso diferente do daqueles que nunca comungavam e agora se dizem marginalizados, porque o não podem fazer. Terá a Igreja, como mãe que quer servir os filhos de Deus em aspecto tão sério e importante, salvaguardando valores fundamentais da família e dos sacramentos, de procurar ver e aprofundar, em relação aos que são vitimas de uma situação de injustiça e tiveram razões ponderosas para optarem por um segundo casamento, se é caso de encontrar caminhos diferentes, dado que são diferentes as situações e os motivos que a elas levaram? Igreja cristãs orientais e ortodoxas, com base na compreensão da ” economia da graça”, foram encontrando outros caminhos que, segundo o seu critério, se inspiram na mensagem evangélica e nas suas exigências. Porém, hoje qualquer caminho na Igreja nesta matéria deve vir do magistério, apoiado numa sã reflexão teológica e tendo também em consideração a realidade que desafia os seus mais responsáveis. Por respeito às pessoas em causa e à verdade, estamos num campo onde não cabem pareceres pessoais ou soluções não aceites por quem de direito. Se todos nos empenharmos em aplanar os caminhos possíveis e já ao alcance dos casais, desde há mais de vinte anos, dado que a FC é de 1983, a margem do possível poderá alargar-se, porque Deus, se nos deixou como última palavra e definitiva palavra a expressão da sua misericórdia, não nos dispensa de perscrutar em cada tempo, de modo humilde e paciente, os seus desígnios a fim de que todos dela possam beneficiar e alcançar a Vida. António Marcelino, bispo emérito de Aveiro

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Agência ECCLESIA

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