«Dilexit nos»: Última encíclica de Francisco alertou para mundo sem «coração»

«Na era da inteligência artificial, não podemos esquecer que a poesia e o amor são necessários para salvar o humano», escreveu

Foto: Lusa/EPA

Lisboa, 21 abr 2025 (Ecclesia) – O Papa publicou em outubro de 2024 a quarta e última encíclica do pontificado, ‘Dilexit nos’ (amou-nos), em que alerta para um mundo sem “coração”, preso ao consumo e à violência.

“Hoje tudo se compra e se paga, e parece que o próprio sentido da dignidade depende das coisas que se podem obter com o poder do dinheiro. Somos instigados a acumular, a consumir e a distrairmo-nos, aprisionados por um sistema degradante que não nos permite olhar para além das nossas necessidades imediatas e mesquinhas”, escreveu, num texto dedicado à devoção ao Coração de Jesus.

Francisco sublinhava que o amor de Cristo está “fora desta engrenagem perversa”, abrindo lugar para o “amor gratuito” e contrariando a lógica da violência.

“Assistindo a sucessivas novas guerras, com a cumplicidade, a tolerância ou a indiferença de outros países, ou com simples lutas de poder em torno de interesses de parte, podemos pensar que a sociedade mundial está a perder o seu coração”, advertiu.

Além dos ensinamentos de vários pontífices, a encíclica cita Homero ou Dostoievski, reflexões de teólogos, místicos e filósofos, além de pensadores contemporâneos como Han Byung-Chul.

“O algoritmo que atua no mundo digital mostra que os nossos pensamentos e as decisões da nossa vontade são muito mais padronizados do que pensávamos. São facilmente previsíveis e manipuláveis. Não é o caso do coração”, pode ler-se.

Na era da inteligência artificial, não podemos esquecer que a poesia e o amor são necessários para salvar o humano”.

 

Num texto com 220 pontos, divididos por cinco capítulos, uma introdução e uma conclusão, Francisco aponta o dedo a “uma sociedade cada vez mais dominada pelo narcisismo e pela autorreferencialidade”, falando numa “sociedade anticoração”, sem capacidade para “relações saudáveis”.

O Papa recorda que, na piedade católica, se recorre ao símbolo do coração para “exprimir o amor de Jesus Cristo”.

O nome da encíclica vem de uma passagem da carta de São Paulo aos Romanos (Rm 8, 37), sobre o amor de Cristo.

O coração, indica Francisco, é apresentado, desde a antiguidade, como “centro unificador” do ser humano, nas suas várias dimensões.

“Neste mundo líquido, é necessário voltar a falar do coração”, assinalou.

A encíclica aponta à “verdade íntima de cada pessoa”, muitas vezes “escondida debaixo de muita superficialidade”, impedindo que se coloquem as “perguntas decisivas” da existência.

Movemo-nos em sociedades de consumidores em série, preocupados só com o agora e dominados pelos ritmos e ruídos da tecnologia, sem muita paciência para os processos que a interioridade exige”.

O Papa pede espaço para o diálogo, nas comunidades, com um coração “capaz de compaixão” para promover gestos de fraternidade e solidariedade.

A encíclica encerra-se com uma oração para que o mundo, “que sobrevive entre guerras, desequilíbrios socioeconómicos, consumismo e o uso anti-humano da tecnologia, recupere o que é mais importante e necessário: o coração”.

A encíclica, escrita originalmente em espanhol, foi publicada na reta final da XVI Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos (2021-2024) e identificou “comunidades e pastores concentrados apenas em atividades exteriores, em reformas estruturais desprovidas de Evangelho, em organizações obsessivas, em projetos mundanos, em reflexões secularizadas, em várias propostas apresentadas como requisitos que, por vezes, se pretendem impor a todos”.

‘Dilexit nos’ surge depois das encíclicas ‘Lumen fidei’ (2013), que recolhe reflexões sobre a fé iniciadas por Bento XVI; ‘Laudato si’ (2015), documento que propõe uma ecologia integral, abordando questões sociais e ligadas ao meio ambiente; e ‘Fratelli tutti’ (2020), que recolher as reflexões de Francisco sobre a fraternidade e a amizade social.

A palavra ‘encíclica’ vem do grego e significa ‘circular’, carta que o Papa enviava às Igrejas em comunhão com Roma, com um âmbito universal, onde empenha a sua autoridade primeiro responsável pela Igreja Católica.

O Papa mais prolífico neste tipo de cartas é Leão XIII, com 86 encíclicas – embora muitos desses textos fossem, nos nossos dias, classificados como cartas apostólicas ou mensagens; São João Paulo II escreveu 14 encíclicas e Bento XVI três.

A encíclica é uma forma muito antiga de correspondência eclesiástica, dado que na Igreja os bispos enviavam frequentemente cartas a outros bispos, para assegurar a unidade entre a doutrina e a vida eclesial.

Bento XIV (1740-1758) reavivou o costume, enviando “cartas circulares” a outros bispos, abordando temas de doutrina, moral ou disciplina que diziam respeito a toda a Igreja; com Gregório XVI (1831-1846), o termo encíclica tornou-se de uso geral.

Francisco faleceu hoje, na Casa de Santa Marta, onde se encontrava em convalescença desde 23 de março, após um internamento de 38 dias no Hospital Gemelli, devido a problemas respiratórios.

O anúncio foi feito pelo cardeal camerlengo, D. Kevin Farrell: “Queridos irmãos e irmãs, é com profunda dor que devo anunciar a morte do nosso Santo Padre Francisco. Às 07h35 desta manhã, o Bispo de Roma Francisco regressou à casa do Pai. Toda a sua vida foi dedicada ao serviço do Senhor e da sua Igreja”.

OC

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