António Salvado Morgado, Diocese da Guarda
De uma leitura rápida a pedir uma releitura atenta, ficam aqui umas linhas anotadas ao ritmo do tempo breve a solicitar um tempo longo para uma reflexão cuidada e virtualmente activa.
A 29 de Junho de 2013 o Papa Francisco publicou a sua primeira encíclica, intitulada “Lumen fidei” [Luz da fé]. Com ela Francisco completava uma trilogia de encíclicas sobre as virtudes teologais que Bento XVI vinha desenvolvendo. Como é sabido, o texto da encíclica sobre a Fé já se encontrava em amplo desenvolvimento quando se verificou a renúncia papal. O Papa Francisco retoma-o, completa-o e fá-lo publicar. Notam-se bem os dois estilos existentes no texto. Naturalmente, não é nesta encíclica sobre a Fé que encontramos as linhas programáticas de Francisco. Elas hão-de aparecer com clareza meridiana cinco meses mais tarde na Exortação Apostólica “Evangelium Gaudium” [Alegria do Evangelho] de 24 de Novembro de 2013.
No dia 4 de Outubro passado o Papa Leão XIV assinou em Roma a sua primeira Exortação Apostólica, intitulada “Dilexi te” [Eu te amei], «Sobre o Amor para com os pobres». O próprio título evoca de imediato a última Encíclica “Dilexit nos” [Amou-nos] publicada pelo Papa Francisco a 24 de Outubro de 2024, sobre «Sobre o amor humano e divino do Coração de Jesus Cristo». Uma Encíclica mais espiritual e uma Exortação Apostólica essencialmente de natureza social, o encontro dos dois textos é também a completude de um projecto interrompido com o falecimento do Papa Francisco. Como no caso da Encíclica sobre a Fé, publicada pelo Papa Francisco, também na Exortação Apostólica “Dilexi te” não encontramos um programa da orientação pastoral de Leão XIV, embora possamos vislumbrar a intenção de Leão XIV dar seguimento a uma linha de pensamento e acção do Papa que o precedeu, até pela utilização de muitos conceitos que fazem parte do campo linguístico do anterior Papa. Conceitos como «causas estruturais da pobreza», «periferias», «estruturas de pecado», «ditadura da economia que mata» ou «estruturas de injustiça», ocupam bem o centro da rede conceptual deste primeiro documento do novo Papa.
Leão XIV é bem claro quando, logo no início do texto, escreve: «Por esta razão, em continuidade com a Encíclica “Dilexit nos”, o Papa Francisco, nos últimos meses da sua vida, estava a preparar uma Exortação Apostólica sobre o cuidado da Igreja pelos pobres e com os pobres, intitulada “Dilexi te”, imaginando Cristo a dirigir-se a cada um deles dizendo: Tens pouca força, pouco poder, mas «Eu te amei» (Ap 3, 9). Ao receber como herança este projeto, sinto-me feliz ao assumi-lo como meu – acrescentando algumas reflexões – e ao apresentá-lo no início do meu pontificado, partilhando o desejo do meu amado Predecessor de que todos os cristãos possam perceber a forte ligação existente entre o amor de Cristo e o seu chamamento a tornarmo-nos próximos dos pobres.» [3] São palavras que dispensam comentários. Nele Leão XIV assume como seu o projecto que herdou do seu «amado Predecessor»: «o cuidado da Igreja pelos pobres e com os pobres». Ou a «a opção preferencial pelos pobres»
Para além de três parágrafos introdutórios, compõem a “Dilexi te” cinco capítulos assim intitulados: «Algumas palavras indispensáveis» [4-15], «Deus escolhe os Pobres» [16-34], «Uma Igreja para os Pobres» [35-81], «Uma História que continua» [82-102] e «Um permanente desafio» [102-121]. Esta Exortação Apostólica não trará novidades na sua substância. Passando pelos fundamentos bíblicos, pela História da Igreja com os seus Santos e Congregações Religiosas ao serviço e cuidado dos pobres e dos mais necessitados, bem como pelo século e meio de Doutrina Social da Igreja, esta Exortação Apostólica aproxima-se depois dos pobres da situação presente que continuam a constituir um permanente desafio para a sociedade e, particularmente, para a Igreja.
Sabendo que, em razão dos contextos das possibilidades reais dos momentos históricos, às antigas se acrescentam outras formas novas de pobreza «por vezes mais subtis e perigosas» [102], Leão XIV escreve: «Não estamos no horizonte da beneficência, mas no da Revelação: o contato com quem não tem poder nem grandeza é um modo fundamental de encontro com o Senhor da história. Nos pobres, Ele ainda tem algo a dizer-nos.» [5]
«Para nós, cristãos, a questão dos pobres remete-nos à essência da nossa fé.» E esclarece o Papa: «A realidade é que, para os cristãos, os pobres não são uma categoria sociológica, mas a própria carne de Cristo. Com efeito, não basta limitar-se a enunciar de modo genérico a doutrina da encarnação de Deus. Para entrar verdadeiramente neste mistério, é preciso especificar que o Senhor se faz carne que tem fome e sede, que está doente e na prisão.» [110]
Os pobres, os pobres que são família [104] e que são «sujeitos» de vida e não tanto «objectos» de benemerência, são também eles que «nos evangelizam» porque, «No silêncio da sua condição, eles colocam-nos diante da nossa fraqueza», «eles revelam a nossa precariedade e o vazio de uma vida aparentemente protegida e segura.» Será por isso também que Leão XIV acentua, logo no início, que «o cuidado da Igreja pelos pobres» é também uma Igreja «com os pobres». [3]
«Pelos pobres» e «com os pobres», duas expressões preposicionais que são também uma proposta inadiável, quer no trabalho, quer no empenho em mudar estruturas injustas, quer através de um gesto simples e pessoal de proximidade, importa sempre que o pobre sinta serem para ele, os pobres de todas as formas de pobreza, as palavras de Jesus: «Eu te amei».
Assim termina a Exortação Apostólica “Dilexi te” de Leão XIV para ser lida de papel na mão e com os olhos postos na Cruz da Fé e no mundo dos humanos. Termina, como começou, com um verbo bíblico conjugado no passado, que é, e deverá ser, um presente continuado, porque ele é do tempo da Eternidade.
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