Primeira exortação do pontificado evoca vítimas da fome e das «crescentes desigualdades», também na Europa

Cidade do Vaticano, 09 out 2025 (Ecclesia) – Leão XIV retoma as críticas de Francisco à “economia que mata”, na primeira exortação apostólica do pontificado, ‘Dilexi Te’, publicada hoje pelo Vaticano.
“Não devemos baixar a guarda diante da pobreza. Preocupam-nos, de modo particular, as graves condições em que vivem muitíssimas pessoas, devido à escassez de alimentos e água potável. Todos os dias morrem milhares de pessoas por causas relacionadas com a desnutrição”, escreve o Papa, num documento que começou a ser preparado pelo seu antecessor.
O título ‘Dilexi Te’ (Eu amei-te, em português) é retirado de uma passagem do último livro da Bíblia, o Apocalipse (Ap 3, 9). Francisco estava a preparar esta exortação apostólica, antes da sua morte (21 de abril), um projeto agora assumido e publicado por Leão XIV.
O documento pontifício destaca que, mesmo na Europa, “há cada vez mais famílias que não conseguem chegar ao fim do mês” com dinheiro.
“Em geral, nota-se que as diferentes manifestações da pobreza aumentaram. Ela já não se apresenta como uma condição única e homogénea, mas manifesta-se em múltiplas formas de empobrecimento económico e social, refletindo o fenómeno de crescentes desigualdades, mesmo em contextos geralmente prósperos”, pode ler-se.
Embora nalguns países se observem mudanças importantes, ‘a organização das sociedades em todo o mundo ainda está longe de refletir com clareza que as mulheres têm exatamente a mesma dignidade e idênticos direitos que os homens. As palavras dizem uma coisa, mas as decisões e a realidade gritam outra’, especialmente se pensarmos nas mulheres mais pobres.”
Leão XIV afirma que o coração da Igreja é “solidário com os pobres, excluídos e marginalizados”, com todos aqueles que são considerados “descartáveis” pela sociedade.
“A cultura dominante do início deste milénio impele-nos a abandonar os pobres ao seu próprio destino, a não os considerar dignos de atenção e muito menos de apreço”, lamenta.
O Papa questiona que, dentro das comunidades católicas, entende que o único dever é “rezar e ensinar a verdadeira doutrina”, desvinculando este aspeto religioso da promoção integral.
“Acrescentam que só o Governo deveria cuidar deles, ou que seria melhor deixá-los na miséria e ensinar-lhes antes a trabalhar. Além disso, assumem-se, às vezes, critérios pseudocientíficos para dizer que a liberdade do mercado levará naturalmente à solução do problema da pobreza”, adverte.
Citando a instrução da Doutrina da Fé sobre alguns aspetos da “Teologia da libertação” (6 de agosto de 1984), o pontífice escreve que “a preocupação pela pureza da fé não subsiste sem a preocupação de dar a resposta de um testemunho eficaz de serviço ao próximo e, em especial, ao pobre e ao oprimido, através de uma vida teologal integral”.
“Por vezes, nalguns movimentos ou grupos cristãos, nota-se a falta ou mesmo a ausência de compromisso pelo bem comum da sociedade e, em particular, pela defesa e promoção dos mais fracos e desfavorecidos. A este respeito, é preciso recordar que a religião, especialmente a cristã, não pode ser confinada à esfera privada”, insiste.
Leão XIV, que foi missionário e bispo no Peru, questiona o que chama de “uma pastoral das ditas elites”, segundo a qual, “em vez de perder tempo com os pobres, é melhor cuidar dos ricos, dos poderosos e dos profissionais, para que, através deles, seja possível alcançar soluções mais eficazes”.
“É fácil perceber a mundanidade que se esconde por trás destas opiniões: elas levam-nos a olhar para a realidade com critérios superficiais e desprovidos de qualquer luz sobrenatural, privilegiando relações que nos tranquilizam e buscando privilégios que nos favorecem”, indica.
O documento valoriza as iniciativas que a Igreja Católica promoveu ao longo da história, junto aos migrantes, doentes e presos, como sinal de fidelidade ao Evangelho e de maturidade social.
Entre as figuras citadas está o português São João de Deus (1495-1550), que fundou a Ordem Hospitaleira em Granada (Espanha), em 1539; foi beatificado em 1630 e canonizado em 1690.
“São João de Deus, ao fundar a Ordem Hospitaleira que leva o seu nome, criou hospitais modelo que acolhiam todos, independentemente da sua condição social ou económica. A sua famosa expressão – ‘Fazei o bem, irmãos!’ – tornou-se lema da caridade ativa com os doentes”, sublinha o Papa.
O texto dedica uma secção ao cuidado com os pobres na vida monástica, sustentando que “para estar perto de Deus é preciso estar próximo dos pobres”, a exemplo do que aconteceu nos mosteiros beneditinos que foram, durante séculos, “lugares de refúgio para viúvas, crianças abandonadas, peregrinos e mendigos”.
“A hospitalidade monástica beneditina permanece até hoje sinal de uma Igreja que abre portas, que acolhe sem interrogar, que cura sem cobrar”, assinala Leão XIV.
O Papa saúda o trabalho de religiosos e religiosas que atuam em periferias urbanas, zonas de conflito e corredores de migração.
“A tradição destas Ordens não cessou. Pelo contrário, inspirou novas formas de ação diante das escravidões modernas: o tráfico de pessoas, o trabalho forçado, a exploração sexual, as diversas formas de dependência”, precisa.
Dirijo um sincero agradecimento a todos aqueles que escolheram viver entre os pobres: àqueles que não só vão visitá-los de vez em quando, mas que vivem com eles e como eles. Esta é uma opção que deve encontrar lugar entre as formas mais elevadas da vida evangélica.”
A ‘Dilexi Te’ está dividida em 121 pontos, com quase 60 citações de Francisco, entre as 129 notas do texto.
Uma exortação apostólica é um documento formal do Papa dirigido principalmente aos católicos, sem se limitar a eles, cujo objetivo principal é orientar os destinatários sobre um tema específico – neste caso, “o amor para com os pobres”.
OC
«Dilexi Te»: Primeira exortação de Leão XIV assume legado social de Francisco