Dia Mundial do Vento

António Salvado Morgado, Diocese da Guarda

Vai havendo dias para tudo nos 365 dias do ano. Não haverá dia algum do calendário que não seja preenchido com a comemoração de um dia especial: nacional, internacional ou mundial. E não penso nos calendários nacionais com os seus feriados, nem no calendário litúrgico com os santos de cada dia e dias celebrativos. E, embora estejamos em Junho, nem sequer pensarei nos dias dos Santos Populares. Falo de outros que se foram anunciando e definindo na simplicidade – ou na complexidade – do viver quotidiano dos humanos mortais. Entre eles haverá até alguns que nos farão sorrir, sorriso só travado depois de conhecermos o arrazoado com que a fundamentação nos é apresentada que nem sempre nos deixará convertidos à causa, mesmo que sejam nobres os objectivos que se pretendem alcançar.

Tenhamos presentes alguns exemplos. Seja, para não sair do mês de Junho, o “Dia do Chá Gelado”, a 10, o “Dia Internacional do Pânico”, o “Dia Internacional do Piquenique” e o “Dia Internacional do Sushi”, todos a 18. Lá mais para o fim do mês surpreende-nos o “Dia Internacional do Piercing Corporal”, a 28. Finalmente, sirva ainda de exemplo o “Dia Internacional da Lama”, a 29, para coroar a exemplaridade de todos eles. Sim, “Dia Internacional da Lama”, leu bem. Com o objectivo de associar as crianças à natureza ligando-as à terra sujando as mãos e contribuir para o desenvolvimento do sistema imunológico. Assim li nos sítios vulgares do universo virtual mediático.

É também em Junho que encontramos o “Dia Mundial do Vento”. É a 15. Precisamente no centro do mês. Diz-se que importa descobri-lo, esse ar em movimento que, bem o sabemos, penetra todos os recantos e, se umas vezes nos enregela e refresca, outras alcança tal velocidade que produz estragos assinaláveis. Foi criado, como data europeia, pela Associação Europeia de Energia Eólica em 2007 e em 2009 passou a data mundial. Trata-se, pois, de descobrir o poder e as possibilidades do vento como recurso humano, que sempre foi, mas, recentemente, para a produção de energia renovável, designadamente energia eólica.

Desde sempre o vento terá impressionado vivamente o ser humano associando-o a forças superiores e levando-o a intuições simbólicas. E hoje ele aí está no centro das culturas, com a força do seu simbolismo antropológico, psicológico e espiritual. O vento, com a sua energia física, anuncia, culturalmente, outras energias. De poder e possibilidades físicas, transformou-se, desde os primórdios das nossas culturas, em poder e possibilidades simbólicas, se não mesmo metafóricas. A metáfora enche a nossa linguagem, o nosso dizer sobre realidades que parecem estar, ou estão mesmo, para além das realidades meramente sensíveis.

A energia do vento sentida, e tantas vezes tão ouvida, converte-se, por força simbólica, em energia do espírito. E não será difícil desvendar outras razões, para além de proporcionar energias renováveis. O vento purifica o ar quando viciado, movimenta tudo o que é leve, como o pólen e as sementes, conservando e disseminando a vida. O vento é transmissor de subtis partículas físicas que, por nós inadvertidas, virtualizam a visão, a audição e o olfato. E, finalmente, o vento penetra todos os cantos dos nossos espaços de vida, por mais pequenos que sejam. Em suma, com a energia da extensão e movimento, o vento aí está para nos guiar noutros horizontes, mentais, espirituais e religiosos.

Se bem entendi, os promotores de um dia assim não foram muito além da materialidade do fenómeno. O “Dia Mundial do Vento” aparece centralizado para lembrar as vantagens e as possibilidades da energia física, eólica. Mas o vento é símbolo do espírito. E do Espírito Santo.

Não sei bem por que razão, mas, de entre os símbolos habituais do Espírito Santo – vento, fogo, pomba -, é o vento aquele que me faz abrir mais as asas da imaginação, do pensamento e que mais me potencia a meditação. Sendo o vento uma realidade mais subtil, os símbolos “fogo” e “pomba” são facilmente representáveis com maior ou menor engenho. São eles, por isso, que aparecem nas obras de arte. Mas também é verdade que é o vento que atiça o fogo e possibilita o voo da pomba.

O vento é presença de Deus antes da criação quando «o vento de Deus pairava sobre a face das águas» (Gn 1,1-2), quando os primeiros humanos «ouviram o Senhor Deus, que passeava pelo jardim na brisa da tarde» (Gn 3,8). Será por isso que somos convidados a cantar alegremente com o salmista que «Deus passeia sobre as asas do vento» (Sl 104, 3c).

Passando ao Novo Testamento, o Evangelista João recorda-nos que «o vento sopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do Espírito.» (Jo 3,8), ele que, naquele dia, ouviu, como os outros discípulos, o sopro de um «vento impetuoso» a arrastar «uma espécie de línguas de fogo que se repartiram e pousaram sobre cada um deles» e «ficaram todos cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem (Atos 2, 1-4).»

Será atrevimento da minha parte, mas imagino o “Dia Mundial do Vento” como o prolongamento do Dia de Pentecostes, o dia litúrgico de uma espécie de aniversário da Igreja alimentada pelo Vento do Espírito Santo que penetra todos os cantos da terra e fala todas as línguas, mesmo que aparentemente confundidas numa espécie de “Torre de Babel”, como parece ser, por vezes, o que acontece no tempo corrente em que outros ventos impetuosos se levantam a confundir os espíritos. Mas daí a necessidade da Sua invocação para que nos conceda a sabedoria do discernimento.

O Papa Francisco diz que «A oração é o espaço do diálogo com o Pai, por meio do Filho no Espírito Santo.» Às vezes dou comigo a pensar – estarei enganado? – que, exceptuando as Ilhas Açoreanas onde a devoção festiva possui longa tradição, o Espírito Santo será, talvez, entre as Pessoas da Santíssima trindade, a mais esquecida na oração habitual dos fiéis. Ele será sempre invocado no início das assembleias eclesiais, sinodais ou não, e estará presente sempre que se invoca a SS. Trindade, inclusive quando nos benzemos. Rezamos ao Pai e ao Filho Jesus Cristo, mas quando rezamos ao Espírito Santo com a energia da fé para que Ele seja, de facto, o criador do «espaço do diálogo com o Pai, por meio do Filho»?

O Espírito Santo – passe mais esta atrevida linguagem metafórica – é a energia eólica do espírito humano. Julgo que importará redescobrir o Espírito Santo na oração de fiéis cristãos. Por isso, seja também o “Dia Mundial do Vento” o dia de lembrar o «ar em movimento» como Brisa ou Sopro que atiça em nós o Fogo dos dons do Espírito Santo.

Solenidade da SS. Trindade,
Guarda, 4 de Junho de 2023
António Salvado Morgado

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