Jovem de 20 anos tem uma perturbação do espetro do autismo e pede maior consciencialização e empatia para quem lida com este quadro de desenvolvimento
Lisboa, 20 mar 2024 (Ecclesia) – Maria Borges, poeta com 20 anos, diz que o mundo precisa “desesperadamente de beleza” e que a poesia que escreve quer “tocar o vazio”, abordando “coisas do quotidiano” e convidando a olhar para as “coisas pequenas”.
“ O filósofo Michael Oakeshott defende que à voz da política e da ciência devemos acrescentar a voz da poesia ao mundo tão prático e rentável que temos hoje – sinto que só o que é produtivo é que é importante e as pessoas acabam vazias. Porquê? Porque falta a beleza, falta a poesia”, afirma à Agência ECCLESIA.
“Nós já prestamos atenção a coisas tão grandes. Para citar João Luís Barreto Guimarães, que é outro poeta português que eu também gosto muito, ganhou o Prémio Pessoa recentemente, é preciso que alguém ame o banal, é preciso amar o banal, e eu sinto muito isso, é preciso que alguém escreva poemas sobre as coisas do quotidiano, porque elas também são bonitas”, acrescenta.
A jovem estudante de Línguas, Literaturas e Culturas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa elege Ruy Belo como o poeta português que mais a inspira, mas foi com Cesário Verde que redescobriu a poesia quando ao ler ‘O Sentimento dum Ocidental’ percebeu que o poeta escrevia como Maria via o mundo.
Desde pequena habituada a ir à “enorme” estante de livros do pai, onde dispunha de publicações de “religião, economia, história, poesia, banda desenhada”, Maria Borges aprendeu a ler de tudo e recorda terem sido os ‘Sonetos’ de Florbela Espanca o primeiro livro de poemas que leu.
Acho que não tinha noção do que estava a ler, porque aquilo é muito triste e profundo, mas eu gostava imenso da estrutura do soneto. Há um poeta jamaicano que diz que só por algo não ser bonito não significa que não seja belo. As coisas se calhar não são muito bonitas, mas nós, enquanto seres humanos, conseguimos imaginar beleza nelas, e eu quero fazer isso – olhar para coisas e dizer, isto é mesmo belo, isto ficava mesmo bem num poema”.
Maria Borges venceu a 3ª edição do concurso nacional ‘Voz – O Poder na Palavra’, com a declamação de poemas, uma ocasião que lhe confirmou o desejo de ser poeta.
“Eu não sei se gosto de escrever poesia, eu preciso de a escrever. Às vezes parece que as coisas só têm sentido se eu as escrever no papel, mesmo que ninguém veja. Eu começo a escrever e, de repente, o poema toma uma direção que nós não sabemos muito bem explicar porque é que ele está a ir para ali, mas está, e eu aceito, e sigo”, conta.
Numa página na rede social Instragram, «Coisas Ínfimas», Maria Borges declama poemas da sua autoria, procurando ultrapassar a dificuldade que tem com a exposição mas reconhecendo que declamar é o que mais gosta de fazer.
É também nesta página que a jovem procura consciencializar para as perturbações do espetro do autismo, que a acompanha, de forma diagnosticada, desde os 13 anos.
“Há vários níveis mas as pessoas estão habituadas a pensar no autismo como um nível mais severo, que é o nível 3, que são pessoas que muitas vezes não falam, que têm comportamentos muito estereotipados, mas há outros – eu tenho o nível 1, que é o mais ‘suavezinho’, que também era conhecido como síndrome de Asperger, mas hoje em dia já se considera um espectro do autismo”, explica.
Maria explica que teve um crescimento cerebral “estruturado de maneira diferente”, com áreas “mais desenvolvidas e outras menos desenvolvidas”: “Eu penso de uma maneira diferente e processo o mundo de uma maneira diferente, tive algumas dificuldades ao nível de desenvolvimento, comparado com outras crianças e que outros jovens não têm, eu aprendi a falar mais tarde; por exemplo, eu tenho muita dificuldade em perceber algumas coisas, a ironia, tenho muita dificuldade na interação social – coisas que para as outras pessoas são muito naturais, eu tive que aprender”.
A hipersensorialidade que lhe permite “ver muito bem, ouvir muito bem, cheirar muito bem” pode, em determinadas alturas, ser desconfortável quando confrontada com “muito barulho, por exemplo”.
Mas, Maria Borges reconhece que esta visão do mundo que lhe permite escrever a partir das experiências que tem e valoriza.
“Eu reparo em coisas que a grande maioria das pessoas não repara, e eu às vezes sinto-me tão criança, porque eu gosto imenso de coisas como saltar em cima de folhas secas, aquele entusiasmo infantil que as crianças têm ao descobrir o mundo, eu ainda o tenho, e eu acho isso espetacular! Tenho ideias que as outras pessoas consideram fora da caixa, para mim não são fora da caixa, para mim é como eu penso, se calhar, um bocadinho diferentes e criativas”, reconhece.
A jovem de 20 anos pede que a consciencialização para as perturbações do espetro do autismo possam ser mais conhecidas para que se caminhe socialmente para a “empatia” e a verdadeira inclusão.
Eu não me sinto integrada. Acho que há uma grande conversa neste momento na sociedade de inclusão e eu não me sinto incluída, porque inclusão é o grupo abrir-se e deixar-me entrar; eu sinto que tive de mudar a minha postura e muito da minha personalidade para que os outros me aceitarem. Mas a integração seria acolherem as minhas diferenças e ajudarem nos meus problemas, quando é precisamente o contrário do que está a acontecer neste momento”.
A chave, indica Maria Borges, é a empatia: “Eu tive a sorte e a grande graça de crescer numa família que me apoia e me ajudou, e que me proporcionou tudo o que é preciso, e que ainda hoje me apoia, mas a maioria das pessoas não tem essa sorte; a maioria das pessoas com autismo tem um grau um bocadinho mais severo que o meu, e portanto, essas pessoas precisam mesmo. Olharem para nós e simplesmente perguntem se precisamos de ajuda, já é bom”.
A conversa com Maria Borges pode ser acompanhada esta noite na Antena 1, pouco depois da meia-noite, ficando disponível no portal de informação e no podcast ‘Alarga a tua tenda’.
LS